Revelação
Felear, o sócio de Meinard na taverna e restaurante, O Gigante Hilário, adorava lucrar e tinha um faro especial quanto a como ganhar dinheiro. No passado, fora um cavaleiro, mas os anos como comerciante o converteram num sujeito bem informado e cheio de contatos e conexões. E então, naquela noite, O Gigante tinha gente saindo pelo ladrão. Era noite de promoção, a cada duas cervejas, uma de graça, mas também, era noite de pregação e lá estava no palco onde músicos ou mambembes costumava se apresentar, um clérigo. Não qualquer servo dos deuses, mas o mais famoso monge de Kamanesh: O Monge Yaren.
Convencer Yaren a ir pregar em seu estabelecimento foi mais fácil do que imaginava. Meinard não gostava muito daquilo, mas também, estava curioso para ouvir o que o monge tinha a dizer. Além do assassinato do Cavaleiro Nathannis, o retorno de Yaren a Kamanesh era o assunto do momento.
Após ser resgatado de Lacoresh pela Capitã dos Blackwings, o monge estivera recluso e em oração no templo de Leivisa. Sempre escoltado por dois blackwings e sob olhos inamistosos por parte de muitos sacerdotes da Igreja de Kamanesh, Yaren parecia ter abandonado suas famosas pregações nos espaços públicos de Kamanesh. Estava dormindo no castelo e foi visto, por mais de uma vez, reunido com membros do Alto Conselho. Corria o boato de que havia sido proibido pelo conselho de fazer pregações nas ruas da cidade.
A notícia de que ele iria falar no Gigante, se espalhou, e pela primeira vez, o estabelecimento cobrava moedas para o ingresso. E mesmo com um preço elevado, a casa estava lotada.
No meio de toda aquela gente, estava a Capitã, disfarçada. Seu disfarce era muito simples, um vestido comum e capa com um capuz. Sempre cabisbaixa, com a face parcialmente coberta, evitava mostrar seu rosto, mas também, ninguém parecia especialmente interessado nela. Além dos cavaleiros que escoltavam o monge, notou que havia alguns outros, sem seus uniformes e armaduras. Viu também, bebendo e travando uma conversa animada com alguns estranhos o guia, Hégio Greyhill.
Ficou apreensiva quando viu chegar o conselheiro Kandel acompanhado de mais três cavaleiros uniformizados e à serviço. Felear veio receber o conselheiro pessoalmente, cumprimentando-o com um caloroso abraço. Levou-os a um lugar que estava reservado. O barulho de conversa era tão alto, que mal dava para escutar a música que um grupo produzia no palco. Um grupo de monges Naomir havia chegado bem cedo e ocupava lugar próximo ao palco, logo ao lado de onde Kandel e os cavaleiros se acomodaram.
E de um instante para o outro, fez se um relativo silêncio. As pessoas murmuravam aqui e ali, mas isso não as impediria de ouvir o monge falar.
Os músicos desceram enquanto ele subia. Olhou para todos, com olhar sereno e disse – Boa noite a todos! Que os deuses os abençoem! O Supremo Deus, criador de tudo, os ama.
Algumas pessoas vaiaram, pois rejeitavam a ideia de um Deus, superior aos demais, mas foram silenciadas por um número maior de pessoas que simpatizavam com aquelas ideias, ou simplesmente queriam escutar Yaren falar.
– Deus ama seu traseiro santo! – alguém zombou. Muitos riram, Yaren acompanhou as risadas, mas depois ficou sério e prosseguiu.
– Como sabem, estive em Lacoresh. Estive para ser condenado. Mas Deus foi ao meu resgate. Me salvou de uma condenação certa, porque Ele tinha um propósito para mim. Um propósito que eu não tinha sido capaz de enxergar. Eu estava cego. Achava que meu propósito era pregar e convencer a todos, a todo custo, a respeito das verdades que me foram reveladas pela luz divina de Deus. Mas não era isto que Deus queria de mim. O que ele quer de mim, eu não darei a ele através de palavras, promessas. Palavras dissipam-se no vento e promessas são baratas. Meu propósito, agora sei, é mostrar ao povo de Kamanesh, através de ações, o caminho da salvação. Eu não falo aqui da salvação prometida das Planícies Celestiais ou de como escapar dos Abismos da Perdição. Eu falo da salvação de nosso povo, que está ameaçado de ser destruído, escravizado pelas forças demoníacas que vêm do leste. Nosso povo é forte, resistiu ao flagelo final do Velho, a praga necromante, resistiu à enganação das Crianças do Eclipse. Resistiu à loucura das guerras contra reinos distantes que o Velho em sua loucura queria conquistar. Então, meus amigos, meus irmãos e irmãs, não vou mais pregar a respeito das verdades ocultas, da Nova Revelação. A Nova Revelação irá se fazer através do que iremos enfrentar. As profecias são claras, haverá uma era de trevas. Os demônios estão crescendo e irão cobrir toda a terra. Caberá a nós resistir, sermos os portadores da luz, para quando as trevas tomarem o mundo, ainda exista um farol de luz crescente e pronta para iluminar o mundo.
– Monge – alguém disse – O senhor não diz coisa com coisa. Palavras são vento e tudo o que fez aqui hoje foi soprar uma maldita brisa chata em nossas caras.
– Sim! Você tem razão! Não esperem de mim qualquer coisa através das palavras. Mas vejam! Vejam! – ele girou os olhos e o ar em torno dele se iluminou sutilmente. Seu rosto se transfigurou e três pontos de luz, muito tênues surgiram em sua fronte. A Capitã e outros sensitivos presentes puderam ver uma grande luz que penetrou o ambiente e entrou no corpo de Yaren. Uma voz, diferente da dele, potente e serena falou.
– O povo de Kamanesh será testado. Haverá traição e conflito interno. Tropas marcharão. Antigos aliados se revelarão como novos inimigos. Quando a discórdia dominar toda esta região, o teste final virá. A grande escuridão cairá sobre a capital. Somente os que seguirem a luz, serão capazes de resistir e vencer essas provações. A luz nada mais é que o perdão. A reconciliação. A força de união daqueles que superam suas diferenças.
Ninguém esperava ver algo assim. Nunca em suas pregações o monge havia mostrado algum sinal concreto de contato com a divindade.
O transe terminou e o monge caiu de joelhos. A multidão ficou atônita e logo vieram dezenas de perguntas encavaladas. Quem irá nos trair? Quais são essas inimigos? Lacoresh ou Whiteleaf? O que é essa escuridão? Haverá novo ataque de demônios? Quanto tempo temos? O que devemos fazer?
Yaren se esforçou para ficar de pé. Seu rosto estava pálido e coberto pelo suor. Os lábios descorados, tudo girava. As perguntas vinham uma atrás da outra até que mas suas forças começavam a retornar.
– Desculpem, mas não faço ideia do que acabei de dizer.
– Mas o senhor disse antes que iria mostrar o caminho da salvação.
– Sim, farei isso, mas não com palavras. Apenas palavras nada podem.
– Foi Deus que falou através de você?
– Não, foi o seu enviado, um anjo do Senhor.
– Anjo? O que é isso?
– É um mensageiro, é como um dos deuses, mas que não tem carne e osso.
– É um espectro? Por que ele não nos diz o que fazer? Por que não aponta o traidor?
– O Pai que faz tudo pelo filho, tira a oportunidade deste de aprender por si mesmo. Que valor algo tem na vida, se não conquistarmos com o suor próprio? As provas são um sinal de Sua bondade, são a oportunidade que temos de aprender e crescer.
Hégio bateu palmas e assobiou. – Belo espetáculo, Monge! Valeu as moedas! – De algum modo, o guia incentivou os demais e logo todos estavam aplaudindo o clérigo, alguns por admiração, outros por medo e alguns por considerarem tudo que ocorreu como um tipo de espetáculo.
– Monge, monge, então é errado queimar os bebês de Olhos Negros?
– Sim, meu filho, é errado.
– Mas não são eles enviados do demônio, ou próprios demônios?
– Mesmo aos demônios Deus reserva sua parcela de perdão e se Deus perdoa, nós também não deveríamos perdoar?
– Francamente – disse um dos Monges Naomir – muitas das coisas que você fala, irmão Yaren, são belas e sublimes, mas tudo tem limite, não? Perdoar demônios? Ora, como tem coragem de dizer isso para pessoas que tiveram parentes mortos por estas bestas do inferno há tão pouco tempo?
– Para Deus, meu irmão, nada tem limites! Sua misericórdia é infinita, saiba disso.
A Capitã ficou enjoada. De repente, sua barreira psíquica enfraqueceu e todos os pensamentos daquela multidão invadiram sua mente. A cabeça explodiu de dor e ela segurou-se em alguém com medo de desmaiar.
– Você está bem, moça?
– Estou sem ar... Me ajude a sair...
O rapaz, que era um comerciante de tecidos ficou preocupado, pois viu o rosto suado e pálido. Os olhos estavam semicerrados e pesados. O toque das mãos dela era frio e então ele se empenhou em ajudá-la a cruzar a multidão em direção à saída.
Chegando lá fora ela vomitou, mas foi apoiada pelo rapaz. Estava escuro e ele puxou o capuz para evitar que ela se sujasse. Ela vomitou mais e mais e quando terminou, sentia-se um pouco melhor, mas zonza.
O rapaz então pode olhar para ela diretamente e perguntou – Está bem?
Ela fez que sim. Mesmo sob a penumbra, o rapaz pode dar uma boa olhada em seu rosto e sentiu um calafrio. A Capitã cobriu o rosto prontamente, lançou um fraco ataque mental de sugestionamento contra o homem e saiu. Deixou-o para trás, esfregando os olhos e a imaginar se tinha enxergado direito. As quatro cervejas que tinha tomado afetaram seu julgamento? Ficou atordoado, sem noção do tempo. Por fim, ele deu com os ombros e retornou ao estabelecimento. Ficou um pouco decepcionado, pois o monge já havia descido do palco. Não pode ver onde estava e soube que ele tinha saído pela portas dos fundos.
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