Reencontros

A cavalgada até as proximidades da Necrópole foi quase sem obstáculos. Encontraram alguns mortos-vivos errantes, mas que não tiveram dificuldades para eliminar. Yaren pôde notar que aqueles jovens eram muito capazes e destemidos.

Estavam sob a sombra do planalto de Or. Havia um pequeno bosque e um riacho. O sol ainda iluminava o dia, mas não tardaria a se esconder. Will desmontou e disse.

— Deixaremos as montarias aqui. A Necrópole não está longe. Seguiremos à pé.

Nenhum dos alunos questionou a decisão do mestre. Apearam e amarraram as montarias com cordas longas.

— Que bom! Estava mesmo precisando dar uma mijada — disse Rulf e foi urinando ali, sem se afastar dos demais.

Yaren franziu a testa para o grandalhão e Josselyn apenas desviou o olhar.

— Que foi monge? Homens santos não mijam? — e caiu na gargalhada.

Tassip aproveitou para brincar — Urinam água benta e cagam sachês com perfume de incenso.

Rulf se torceu de rir e acabou molhando a mão e fazendo a urina respingar no pé — Mas que merda, Kerdon! — E parou para rir mais um pouco — Não dava para esperar um pouco pra fazer essa porra de piada?

Will observava sério. Os alunos sempre estavam por perto para fazê-lo se lembrar de quando fora jovem. Will já não ria tão fácil quanto em sua juventude. Ao longo dos anos, muito peso vinha se acumulando em suas costas. Não pode deixar de pensar que talvez, nem ele, e nem aqueles jovens, viveriam para ver o sol nascer no dia seguinte. O que pretendiam fazer era muito arriscado e beirava o suicídio. Ainda assim, algo dentro de si sinalizava que era a coisa certa a fazer.

Yaren captou a tensão de Will e indagou.

— E agora?

— Vamos descer por ali. — Estava com o mapa em mãos — Existe um acesso para os túneis num moinho ao sul da Necrópole, naquela direção. — Apontou.

Josselyn parou entre Will e Yaren. — Sinto energias terríveis emanando de lá.

A dupla assentiu, cada um de seu jeito também podia captar aquilo. Josselyn era habilidosa com o Jii, mas Will também o dominava em parcela mais modesta. Quanto a Yaren, fora treinado nos sagrados ofícios.

Zane, parecia cansado e disse — Ao contrário de Rulf, eu tenho modos, vou até ali e já volto. — indicou uma moita na qual pretendia urinar. Mas na verdade, seu corpo estava quase seco. Se fizesse força, poderia encher um copinho de aguardente com sua urina que era tipicamente escura e viscosa.

Agachou-se atrás da moita e puxou a luva, revelando sua mão esquerda. Era negra, nodosa e atrofiada. Ele olhou para a mão torcendo os lábios. Notou as veias negras que avançavam através do antebraço. A maldição seguia seu curso e não havia nada que pudesse fazer para por fim nela. Mexia os dedos, mas não tinha nenhuma sensação de tato, na verdade, não era capaz de sentir nem dor, pois sua mão estava mesmo era morta. Tocou o uma planta com a mão ruim e sussurrou um feitiço que fora ensinado pela mestra, Arze Termatus. Em questão de segundos, a pequena planta murchou até tombar enegrecida, totalmente morta. Zane emitiu um longo suspiro aliviado. A única coisa que podia fazer era retardar o avanço da maldição. Vestiu a luva novamente e retornou para os demais. Era muito próximo deles, mas ninguém conhecia seu segredo, exceto a sua mestra. Ele lhe devia a vida, mas não sabia por quanto mais tempo conseguiria se manter vivo.

— Eu te ouvi suspirando, cara. Você tava se masturbando, né? — zombou Rulf. — Aposto que estava pensado na Mestra Termatus... Mas você não tem coragem de se declarar para a velhota, né zé virgem?

Zane girou os olhos e torceu a boca com desprezo — Você come cocô todo dia no desjejum, não é Rulf? Por isso é que passa o dia inteiro falando bosta.

— Ai, mestra Termatus, quero pegar em suas pelancas... — Rulf gesticulava e continuava com as zombarias.

Ficaram ali atrás discutindo, enquanto Kerdon Tassip examinava os mapas que estavam com Will.

— Talvez eu possa ir na frente para sondar os perigos... — sugeriu Tassip.

Josselyn retrucou — Se Ted estivesse conosco, ele já teria ido na frente e a esta altura estaríamos no meio de uma luta.

Tassip riu daquilo. Todos estavam nervosos e tentavam espantar a tensão com piadas.

— Zane, Rulf — chamou Will — venham de uma vez. Vamos descer.

Quando iniciaram a descida, todo bom humor daquelas piadas evaporou. Mesmo aqueles que não eram sensitivos, como Rulf, pareciam sentir um clima opressor na medida em que se aproximavam da Necrópole. O sol se escondeu nas colinas a oeste de Or, mas ainda havia claridade suficiente para ver os contornos arruinados do moinho abandonado.

— Ali está, vamos rápido, antes que a noite chegue de uma vez. — disse Will e apressou o passo.

Era um velho moinho de água, construído bem ao lado do riacho que corria caudaloso, fazendo se ouvir na medida em que pequenas quedas d'agua, se formavam aqui e ali, por entre rochas que cobriam sua passagem. O que restava da roda do moinho era um pouco apodrecida que não girava mais. Havia um vão escuro onde antes ficava um sólido portão de madeira. E foi do meio da escuridão que viram surgir pontos de luz e esverdeada e bruxelante. Aquele pontos estavam se movendo. As duas grandes luas, cheias naquele início de noite refletiam com vigor a luz do sol poente. A luz amarelada delineou contornos duros que se moviam para fora do moinho.

— Mais daquelas porras de esqueletos pretos! — Rulf deixou escapar. Fazia pouco tempo, ele e seus companheiros estiveram numa incursão na floresta de Shind, e confrontaram esqueletos de ossos negros, que pareciam carvão torrado, e que emitiam das órbitas vazias, assim como do meio das costelas, uma luz esverdeada que dançava como fogo queimando sobre aguardente.

Rulf sacou uma flecha, tensionou seu poderoso arco longo e disparou contra o primeiro que saiu do moinho. A flecha penetrou certeira no buraco do nariz e fez soar um estalo na medida em que jogou a cabeça do esqueleto para trás. Outros dois avançaram flanqueando o esqueleto decapitado, mas este, ao invés de tombar, ergueu os braços finos e ossudos, segurando uma espada enferrujada e avançou contra o grupo.

Will concentrou as energias do Jii em seus braços que, em instantes, assumiram um tom escuro fazendo reluzir a luz das luas, como se fossem feitos de ébano polido. Usava a técnica do caminho da montanha, ensinada pelo Silfo Modevarsh. Quando Will confrontou um dos esqueletos, aparou no antebraço o golpe da espada. Aquilo produziu um som semelhante a metal se arrastando em pedra e pequenas fagulhas. Seus contragolpes, na forma de uma sequência insanamente veloz de socos quebrou os ossos duros de seu oponente até que caísse desmantelado.

Dois vieram para cima de Yaren, que os observava atordoado.

— Atrás de mim, monge! — disse Josselyn tomando a frente do rapaz. Os dois golpes desviaram dela ao atingir uma espécie de redoma invisível a menos de dois palmos de seu corpo. Ela tremia os pulsos e pressionava os lábios numa expressão de grande concentração.

Zane defendeu dois golpes seguidos com sua espada, mas não a usava para contra-atacar. No lugar de uma ação física, murmurava as palavras de um feitiço complicado.

Tassip era apenas um espadachim mediano, mas não teve dificuldades para defender-se dos ataques do esqueleto e também contra-atacar. Porém, sua espada atingia os ossos escuros e duros sem causar mais danos do que extrair pequenas lascas. O problema todo é que mais esqueletos saíam do moinho e logo estariam todos lutando em desvantagem numérica.

Rulf acabou deixando o arco de lado e avançou com sua espada em mãos. Ele era enorme e forte. E diferente de Tassip, seus golpes causavam algum estrago nos esqueletos. A magia de Zane, finalmente fez efeito e o esqueleto que o assediava foi atingido. A chama esverdeada que o animava escapou pelos olhos e pelas costelas fluindo para a mão livre do mago e em seguida, o esqueleto desmantelou-se inerte. Outro tomou o lugar do que tombou e Zane teve que aparar seu golpe com a espada. Era uma confusão, muitos esqueletos surgindo e atacando ao mesmo tempo. Zane sentiu um calafrio, mas forçou-se a reativar o feitiço e eliminar mais um oponente.

Will avançava, e já havia quebrado três esqueletos além do primeiro. Manter os braços com uma couraça de pedra não era algo que ele poderia manter por muito tempo.

— A porcaria desse moinho é um armazém de esqueletos. — reclamou Tassip com seu forte sotaque homenaseano. — Temos que recuar!

Josselyn conseguia afastar os ataques de três esqueletos com seu escudo psicocinético, mas não conseguia conter o avanço de mais deles que passavam por ambos os lados flanqueando-a.

— Corra, monge Yaren, corra!

Aquilo custou a ela sua concentração e um dos golpes passou pelo seu escudo atingindo-a e talhando seu braço, penetrando um pouco além de sua armadura.

Yaren não se moveu. Ele tinha fechado os olhos entrando num transe de oração. Murmurava palavras no idioma antigo, usado para ativar as fórmulas dos Sagrados Ofícios.

— Protos narnil, protorus sceptu! — sua voz se ergueu vigorosa. Os esqueletos que avançaram contra ele, de modo selvagem, bater em algo e caíram sentados no chão. Yaren ergueu a voz mais ainda e ao abrir os olhos, eles brilhavam com uma luz branca.

— Protos narnil, protorus sceptu!

Os esqueletos que atacavam Josselyn também foram atirados para trás enquanto ela pressionava o ferimento com a mão. Esta ficou vermelha com o sangue que escorria.

Ela percebeu o que ocorria e chamou os demais.

— Rápido! Para dentro do círculo de proteção do monge!

Tassip deu as costas para dois esqueletos que o cercavam e rolou pelo chão, desesperado, deixando sua espada cair no processo. Conseguiu entrar no círculo e respirou aliviado.

Will destroçava mais alguns esqueletos adiante, mas viu-se cercado. Rulf avançou em seu auxílio, enquanto Zane recuou para penetrar no círculo de proteção, mas sentiu seu corpo queimando ao tentar fazê-lo.

— Ai! Só faltava essa! — ele contornou o círculo até ficar na parte de trás. Um esqueleto avançou para ele, mas antes que o atingisse, teve sua energia sugada pelo mago.

Will estava em apuros, mas com a ajuda de Rulf e Josselyn, conseguiu se livrar de alguns golpes que certamente o atingiriam. Josselyn, protegida pelo círculo de Yaren, projetou seu escudo para perto de Will e bloqueou um dos golpes que vinham pelas costas. Finalmente, todos estavam dentro, ou atrás, de proteção de Yaren.

— Por quanto tempo será que ele consegue manter isso? — indagou Tassip.

— Porra! Caraleo! São mais de trinta desses palitos malditos! — resmungou Rulf ao mesmo tempo.

Will respondeu — Sei que Yaren é muito abençoado, mas já vi muitos monges lutando como ele na guerra. Nunca vi ninguém aguentar algo assim por mais de dez minutos.

— Eu carrego ele, de volta para os cavalos. — sugeriu Rulf.

— Podemos tentar isso. — concordou Zane, desesperado, enquanto se defendia de mais um ataque.

— Entra aqui, seu merda! — chamou-o Rulf.

— Não posso!

— Como assim não pode?

Antes que aquela discussão continuasse, os esqueletos, todos, ficaram inertes.

— O que houve? — indagou Tassip?

— Oh, merda! É o porra do necromante da floresta, o que matou o...

— Ted! — Josselyn gritou.

O colega de classe deles, que julgavam morto no confronto que tiveram, surgiu. Não podiam vê-lo bem, mas seu modo de caminhar e a silhueta eram inconfundíveis. Ele avançou para derrubar os esqueletos com sua espada e escudo.

O tal necromante se aproximou. Zane acendeu uma luz na ponta de seu cajado. Puderam ver uma figura sinistra que vestia um manto negro justo, mostrando que era muito magro. Sobre o rosto, uma máscara de metal escuro com expressão medonha. Pálpebras de metal semicerradas, um nariz esculpido à perfeição, narinas à vista e com a fenda da boca costurada por rebites de metal.

Sua voz rouca, como uma faca raspada numa pedra, soou abafada sob a máscara — Vocês são loucos se acham que teriam alguma chance contra o Kímel Lorual.

Enquanto o grupo encarava aquela figura com perplexidade, Ted seguiu desmantelando esqueletos de modo incansável.

— Quem é você? — indagou Will?

— Mas não se lembra de mim, rebelde?

Aquela voz, estava um pouco diferente, mas era familiar.

— Hendrish?

— Prefiro minha outra alcunha — ele se inclinou fazendo uma vênia teatral — Mestre da Dor, ao seu serviço. — E emendou uma risada asquerosa.

Will sentiu um calafrio na espinha. Recordou-se de uma ocasião em que foi feito prisioneiro. Ele e outros tantos foram questionados, na verdade, torturados por Hendrish. Um necromante louco obcecado pela dor.

Hendrish removeu a máscara mostrando seu rosto velho e deformado, com uma centena de agulhas penetrando a pele. Will se recordou que todo o corpo dele era assim, coberto de espetos e agulhas.

Quando Ted terminou sua tarefa, Yaren finalmente relaxou e curvou-se para descansar ofegante. Ted se aproximou para revelar sua nova face ao grupo que o olhou horrorizado.

— O que fez com ele? Desgraçado! — Josselyn guinchou.

Ted parecia o mesmo, exceto pelo fato de sua boca e olhos estarem costurados de modo grosseiro com arames retorcidos. Na testa, havia uma tiara com uma gema negra.

— Ele está funcionando bem melhor desta forma. Não me aborrece com suas reclamações e enxerga bem melhor através do Olho de Trivorak.

Josselyn tocou-o no rosto, esperava o toque frio de um morto-vivo, mas sentiu a pele de Ted quente e suada. Ele estava vivo, ao menos.

— Como você está, Ted?

O aspirante não esboçou nenhuma reação ao escutar a voz da amiga. Estava duro como uma estátua.

— Não adianta falar com ele, querida. — zombou Hendrish.

— Seu monstro!

— Obrigado pelo elogio, mas não vim aqui para trocar gentilezas. Entendo que temos um inimigo em comum. Já é hora de acabar com o reinado de loucura de Kímel. Penso que podemos trabalhar juntos neste propósito. E então?

Will segurou o braço de Rulf a tempo de impedir que ele agredisse Hendrish.

— Ora, esse merda! — rugiu o grandalhão.

— Não temos alternativa. Se quisermos resgatar a Capitã, precisaremos de toda ajuda que pudermos conseguir.

Hendrish deu uma gargalhada de satisfação. — Quem diria? Nós trabalhando juntos, hein? — e deu uns tapinhas no ombro de Will.

— Vamos. Se formos depressa, talvez ainda possamos obter o elemento da surpresa.

— É, talvez... — retrucou o necromante descrente.

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