Quatro estrelas
Ficava bastante claro quando as três maiores luas ficavam cheias no céu. Era mesmo como se o alvorecer já fosse pleno, mesmo que ainda faltasse meia hora para isto. Estava frio e apesar das poucas horas de sono que tiveram, Will e Yaren estavam bastante despertos, sentindo antecipação pelo dia que estava diante deles.
Chegaram ao portão oeste após uma pequena caminhada atravessando toda a cidade. Quase não havia pessoas nas ruas, tão cedo assim. Vieram mastigando os deliciosos biscoitos de queijo e manteiga feitos por Dora. Will os adorava. Tinha trazido uma generosa porção na sacola a tiracolo.
Yaren avistou algumas pessoas e uns cinco ou seis cavalos próximos, no vão livre, ao lado do portão. Uma delas se adiantou para recebê-los.
— Ótimo, Tassip. Teremos um cavalo para cada. — comentou Will ao ver que o rapaz tinha conseguido seis montarias.
— Bom dia, Mestre Crafith. — cumprimentou-o o jovem com sotaque claramente homenaseano.
Kerdon Tassip olhou para Yaren desconfiado e sorriu. Tinha um rosto simpático, apesar de olheiras que indicavam que havia dormido pouco. Vestia-se com roupas escuras que pareciam ser uma armadura de couro. Tinha quase a altura de Yaren, mas não tinha o corpo que se esperava de um militar. Em especial, o corte de cabelo, um pouco grande demais e desarrumado.
— Quem é este?
— Este é o mon... Digo, é Yaren. Virá conosco. Esteve com a Capitã no dia em que ela foi raptada.
Tassip ergueu as sobrancelhas em reconhecimento. Ouvira muitas histórias a respeito do monge doido que quase foi executado como herege pelos religiosos lacoreses.
— E aí, doidão? Tudo bem? Pode me chamar de Kerdon. Já deve ter notado, não nasci por aqui.
— Ah, sim, pude perceber. De Homenase, certo?
— O melhor dos reinos.
Seguiram para se encontrar com os outros.
— Olha gente, quem vai viajar conosco. O famoso Monge Yaren. — disse Kerdon animado.
— Eu não sou mais um... — ia protestar Yaren.
— A benção. — pediu um grandalhão que parecia um pequeno ogro. Além de alto, era gorducho e muito forte.
— Deus te abençõe.
Ele virou de lado para uma jovem e sussurrou alto demais — Ele disse Deus, Joss?
A garota deu com os ombros e disse — Sou Josselyn de WaterBridge, prazer em conhecê-lo, Monge Yaren.
— Eu não sou...
— Onde está o Zane? — indagou Will.
— Ainda não chegou, sabe como ele é... Sempre se atrasa... — informou Josselyn ajeitando os cabelos num coque. Yaren notou que ela usava uma pequena faca para prendê-los. Notou também que tinha um rosto atraente, quanto ao corpo, eram altíssima para uma mulher, e só perdia em altura para o grandalhão.
— Vambora logo! — disse o grandalhão impaciente. Yaren percebeu que sua fala era a de alguém de origens humildes. Não era comum haver alunos pobres na academia. Com a claridade do dia aumentando, Yaren pode perceber que o trio usava, por baixo das outras peças de roupa, uma blusa com golas vermelhas denotando o sétimo ciclo da academia.
— Calma, Rulf, é preciso que esperemos o Zane. — retrucou a jovem que tinha um jeito de falar próprio da nobreza.
— Ah, ele nos alcança... Qual é... Quero sair logo daqui. Essa cidade fede, caraleo.
Enquanto isso, Tassip mostrava os cavalos a Will.
— Este aqui era o do Ted. — mostrou um belo corcel marrom com manchas brancas.
— Tiveram alguma notícia dele? — Will estava esperançoso.
Kerdon olhou para baixo, triste.
— Pelo que sabemos, pode estar apenas perdido. — disse Josselyn, mais otimista.
— Não sei, Mestre Crafith, acho que aquele necromante o pegou. Ele pode bem estar morto, ou pior, ter sido transformado num morto-vivo. As criaturas que enfrentamos em Shind eram medonhas.
— Vamos, anime-se. Temos uma importante missão a cumprir. — Will deu um tapa no ombro do jovem. Ele sentia muito orgulho daquele grupo. Há muitos anos não se via um grupo de alunos tão talentosos. Alguns professores os chamavam, entre si, de cinco estrelas da academia. Não era comum, mas aqueles alunos eram os favoritos de algum mestre na escola, em particular. Darnell, por exemplo, disse a Will que Josselyn um dia seria sua sucessora. Mestre Bjürk estava sempre criando desafios para Tassip, na esperança de que falhasse. Will não sabia se o espião trelinense ficava satisfeito, ou incomodado toda vez que Tassip passava em seus testes mirabolantes. O fato é que Will e Bjürk não se bicavam muito. Sam Hokker, o mestre de arqueria, certa vez elogiou Rulf conversando com Will.
— Este rapaz é o melhor arqueiro que já treinei. Não apenas sua pontaria é precisa, o alcance é também incrível. Fiz um arco composto de zabreira para ele, puxa, que alcance. Ele tem um olho de feiticeiro.
E Zane há dois anos tornara-se pupilo de Arze Termatus. Que Will soubesse, era a primeira vez que ela tomava algum aluno como seu pupilo. E o rapaz não deixava a desejar nas outras disciplinas. Não só era um feiticeiro talentoso, como também era um guerreiro competente. E tinha o Ted... Enfim, agora eram apenas quatro estrelas. Will olhava de um lado a outro. "Mas que droga, onde está o Zane?"
O rapaz, cuja tez tinha uma cor doentia, surgiu como que do nada, saindo das sombras da grande muralha. Yaren não gostou nada do que viu. Era alto e forte, mas movia-se de modo lento e sombrio, como uma aranha. Seu olhar não inspirava nenhuma confiança.
— Não gosto de crentes — foi logo dizendo a Yaren. — Mas ouvi dizer que os crentes não gostam de você, então, talvez, pode ser que você não seja tão mau... Sou Zane. — Ofereceu a mão coberta por longas luvas pretas. Era o único aluno que usava luvas.
Rulf olhou-o torto — Caraleo, Zane, cê tá de sacanagem? Tava aí o tempo todo, seu filho da puta? Vambora?
O mago ignorou a falação de Rulf e após um sussurro, fez o cavalo se ajoelhar para que ele montasse.
— Porra, Zane, tu é o cara! Que tipo de cavalo que ajoelha para um cara subir? Já viu uma merda dessa, monge?
Yaren ficou olhando para Rulf boquiaberto. Tentava se lembrar de alguém que pudesse falar tantos palavrões...
— Você está embaraçando o monge com seu linguajar, Rulf — disse Tassip.
— Não ligue para ele, Monge Yaren — disse Josselyn — tem a boca suja, mas é honesto e cônscio.
Will montou o cavalo de guerra que era de Ted e deixou o outro, menos parrudo para Yaren.
— Obrigado por aceitarem vir comigo — disse Will aos jovens.
— Nós é que agradecemos sua confiança em nós — disse Josselyn.
— De acordo. — disse Tassip.
— Porra, Mestre. Você é o cara dos caras. No meio dessa merda toda que tá rolando, só um sacudo dum fela que nem tu pra encará uma missão tão escrota. Os outros viadinhos tão tudo com o rabo entre as pernas, um bando de cagalhões, isso sim! E nossa Capitã vai fazer falta quando essa porra toda esquentar por aqui, a Jô mesmo já falô que vai chover demônio nessa cidade. Caraleo! Não vejo a hora!
Yaren demorou um pouco para processar o que Rulf havia dito, mas assim que fez, abriu um sorriso, conseguindo achar graça naquele jeito de falar e em tantos palavrões.
Zane não disse nada, mas pensou. "Nós somos é um bando de gente dispensável. Vamos morrer. Bom, antes cedo do que tarde. E para mim, pode ser que encontre na necrópole algo que me dê alguma esperança. Algum livro, talvez?"
Seguiram até os portões e Will pediu ao sentinelas.
— Abram.
— Mas senhor — um deles disse — ainda faltam quinze...
— Porra! Falta quinze caralhos enfiados no seu cu, seu bostinha! Abre logo essa merda antes que eu resolva descer a abrir a sua fuça no lugar... Caraleo!
O sentinela estremeceu e correu para a roda e juntos giraram o mecanismo ruidoso que fez o enorme portão de madeira e metal ranger e deslizar.
— Finalmente, Caraleo! Vambora!
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