Progresso

— Está escutando, humano? São os doces sons da batalha. Logo vocês todos estarão no seu devido lugar. — a voz do demônio era sibilante e baixa.

Yaren olhava-o como se quisesse desvendar um enigma. "Qual o plano de Deus para você, criatura?" Ele se perguntava.

— Está com medo, não é? — arriscou o demônio.

— Nem um pouco. — Yaren estava bem calmo. Já havia se habituado a dialogar com o demônio e andar em círculos, sem chegar a lugar nenhum.

— Você sabia sobre este ataque, meu caro?

— Não sou seu caro, nem bosta nenhuma seu, humano idiota e falastrão. Essa sua merda de fé só vai levá-lo ao túmulo.

— Ninguém precisa de fé para encontrar a morte.

O demônio ficou quieto, sem retrucar por um momento. Novamente, Yaren dizia uma coisa que fazia sentido. Tinha aquele hábito irritante, e isso fazia com que ele quisesse argumentar, queria vencê-lo de algum modo, já que estava amarrado e não podia matá-lo com seus próprios dentes.

— Você bem sabe que a morte não é o final, não é mesmo?

— Não sei nada sobre isso.

— É, pensei que os demônios conscientes soubessem mais sobre si mesmos. Soubessem que um dia, já foram almas comuns, animando corpos de homens, ou até mesmo, de elfos.

— Elfos! — o demônio cuspiu. — Que nojo! Só tem uma coisa que detesto mais que humanos e são essas porras de elfos. Tão bonitos, tão corretos, tão perfeitos. Odeio-os! Malditos filhos...

— É, já entendi. Tudo em sua vida parece se resumir ao ódio. Que vantagem há de se viver assim?

O demônio ficou quieto, pensando um pouco. "O maldito e suas perguntas! Eu queria rasgar sua garganta, calar essa boca. Chato! Irritante!" Mas o fato é que o demônio não pensava e nem conversava assim há muitos e muitos anos. Pensar tanto, estava o deixando confuso. Era melhor não pensar demais. Seguir ordens e cumprir missões para seus superiores era ao menos confortável. Ele não estava ferido, apenas amarrado, mas o desconforto de redescobrir pensamentos incomodava mais que os gruilhões.

— Eu sou recompensado quando cumpro missões para meu mestre.

— É mesmo? Me fale dessas recompensas.

— Ele... ele... — o demônio não se lembrava de nada de bom. Em sua existência, parecia não existir nada de realmente bom. — Ele me deixa em paz um tempo, deixa de me torturar. — acabou confessando.

— Não ser torturado não me parece uma recompensa boa para mim. Parece para você?

O demônio ficou quieto. Ruminando.

— Deus...

— Não fale nessa porra de Deus! E nem de deuses. Onde estavam eles quando eu precisava?

— Então você ouviu falar nos deuses?

O demônio ruminava. O que ele sabia mesmo sobre deuses? De onde vinham aqueles pensamentos. O que ele sabia? Quem ele era? Aquelas perguntas começavam a fervilhar em sua mente.

— Sei lá... São nossos inimigos, é isso. Já pegamos um monte deles.

— É verdade. Mas não todos. É por isso que estão de volta? Vieram procurar os deuses que restam e matá-los.

O demônio riu — Antes pudéssemos. Esses porras são imortais.

— Então, o que fazer deles?

Ele gargalhou — Prender e torturar... O que mais?

— Eu sei que você não quer ouvir, mas o Senhor tem um plano para você.

— Ah, merda. Pare com essa pregação maldita. Isso é quase pior que as torturas de Grevos.

— Será mesmo?

Não. Preferia ficar ali conversando mil anos do que passar um dia nas câmaras de tortura de Grevos. Yaren conseguia ler bem os sentimentos da criatura. Sentia compaixão por ela.

— Eu sei bem como procedem os demônios. Eles pegam uma alma, e apagam dela quase toda sua história, quase toda sua vontade. E então, usam o que restou para realizar seus planos ególatras.

— Não para de falar merda. Você não sabe nada sobre isso, humano nojento. Como saberia?

— Sei, por que há muito tempo atrás, eu também já fui um demônio.

O monstro colocou-se a gargalhar.

— Você é louco, isto sim! Maldito humano pirado! Nenhum demônio deixa de ser o que é... Isso é impossível.

— Você está certo.

— Estou certo?

— Sim, um demônio não deixa de ser o que é, porque antes de ser um demônio, ele é uma alma. Uma alma que se perdeu de si mesma. E que mergulhou nas trevas. Mas é possível sair de lá. É como mergulhar ao fundo de um lago. Se você nadar para cima, vai atingir a superfície.

— Conta outra, seu humano pirado.

— Então me responda você mesmo. Quem o fez? Quem foi sua mãe?

— Isso é fácil. Minha mãe é uma porra duma rainha demoníaca gorda e zangada que coloca mil ovos de demônio todos os dias.

— Sim, mas as larvas já não nascem dotadas de pensamento? Quem colocou esses pensamentos ali? Me explique uma coisa. Por que você odeia os elfos?

— Por que eles são nojentos!

— Já viu um? Matou algum?

Não se lembrava de sequer ter visto um elfo, mas ainda assim, tinha imagens em sua mente. Imagens que não entendia bem.

— Eu... eu não me lembro.

— Sabe o que eu acho? Acho que você foi um elfo, um elfo que confiava nos deuses. Alguém que sofreu muito numa guerra e perdeu tudo, até a vida. E em sua morte, restando apenas revolta, foi conduzido pelos demônios até uma de suas rainhas. Sua alma foi colocada num de seus ovos e você renasceu demônio. É isso que eu acho.

O demônio arregalou os olhos para Yaren. Queria xingar, queria negar, mas de algum modo, aquelas palavras o tocavam. Havia verdade naquilo, mesmo que não quisesse admitir.

— Como... como... você saiu? Do fundo do lago, eu digo?

— Não foi fácil. Eu tive que morrer. Mas antes disso, eu mudei. Eu recusei seguir meu antigo mestre. Eu lutei na guerra. E morri cinco vezes, como demônio antes de me libertar. Quando você morre, como demônio, sua alma é levada de volta às rainhas. E você nasce como servo, novamente. É um ciclo difícil de quebrar. Sei que para muitos, são incontáveis os renascimentos nas trevas. Mas eu quebrei e nasci humano. Muitas vezes fiz isso antes de chegar aqui. E só hoje eu vejo, foi Deus que me ajudou a trilhar esse caminho.

— Mentiras! Seu maldito! Está querendo me enganar, sei disso. Você só quer que eu conte os planos do mestre e depois, vão me matar. Eu sei disso. Eu escutei o que vocês disseram.

— Pode ser... Eu posso estar mentindo, mas se você quiser, eu posso lhe mostrar. Eu sei como. Gostaria de se lembrar? Saber seu verdadeiro nome? Quem você era, antes de mergulhar no lago das trevas?

— Como?

— Apenas, olhe nos meus olhos. Eu o guiarei.

— Não! Isto é um truque! Eu pertenço a Grevos. Somente a ele.

— Eu penso que antes disso, cada qual deve pertencer a si mesmo. O que é você então, senão um nada? Um objeto? Uma espada?

O demônio ruminou atormentado pela dúvida.

— Deixe-me mostrar. Eu prometo que não é um truque, que não pretendo controlar sua mente e nem torná-lo meu servo.

Era justamente disso que ele desconfiava. Mas de algum modo, os olhos do homem demonstravam sinceridade. O que era aquilo, sinceridade? Ele só conhecia dor, sofrimento, engano, truques. Mas algo, lá no fundo reconhecia aquilo. Sinceridade.

— Como?

— Olhe nos meus olhos.  

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