Perdão

O recente ataque de demônios a Kamanesh foi fraco, se comparado ao que ocorreu meses atrás, mas o estrago foi maior, uma vez que as defesas da cidade estavam muito desfalcadas em função dos confrontos contra Whiteleaf. E o pior, encontraram quatro carcaças de vanush na região do palácio, para Ivrantz isso sugeria um objetivo tático para aquele ataque. Os demônios deviam saber que seu espião no palácio foi descoberto e capturado. Enviaram mais para garantir o prosseguimento de algum tipo de plano.

 Houve notícias que Lacoresh também estava sob constantes ataques de hordas. Estariam tentando infiltrar espiões por lá também? Havia a expectativa de mais ataques, assim, as aulas da academia foram finalmente suspensas e grupos de defesa foram improvisados com alunos somados a novos recrutas para a Guarda da Muralha, convocados entre a população da cidade.

 No lugar das aulas especializadas voltadas para os alunos da academia, os pátios dela foram convertidos num centro de treinamento para os novos recrutas. Fora de lá, os mestres Ivrantz, Darnell, Ailynn, Erza, e alguns alunos do sétimo ciclo, como Josselyn, Zane e Tassip formavam uma força tarefa que vasculhava a cidade em busca de demônios infiltrados, e especial, os vanush. Já no segundo dia de buscas, conseguiram localizar e destruir um deles.

A mão quebrada de Eduard, recebeu cuidados de feiticeiros, mas ainda assim, precisava ficar enfaixada e imobilizada por uns poucos dias até que, pudesse voltar a usá-la normalmente. Eduard, Arifa e os demais alunos do primeiro ciclo, exceto Tíghas e Tarpin, foram postos numa mesma unidade da Guarda da Muralha. Responderiam ao Sargento DiBrec, o responsável pela guarnição das torres Centro e Oitenta e Sete a Cento e Noventa. A região coberta por elas era no noroeste da cidade. Além dos alunos, foram alocados quatro recrutas tirados de trabalhadores da cidade. A unidade, normalmente era composta por vinte homens, mas seu número atual eram menos que a metade.

Eduard seguiu para o local para receber instruções, mesmo sem poder usar o braço.

— Ora, mas que merda! Já não bastava me mandarem uns tecelões velhos e um bando de garotos, agora me chega um garoto ferido? — o Sargento DiBrec era um homem de meia idade, careca, de barba grisalha, pançudo, mas vigoroso.

— Como eu dizia, a guarnição que cuida dessas quatro torres e três trechos das ameias é conhecida como Saltadores.

— Saltadores? — indagou um dos novos recrutas.

— Sim, há alguns anos, um espectro visitava as ameias e fazia os sentinelas enlouquecerem e saltarem para o lado de fora. Cinco morreram durante meses até conseguirem espantar a criatura.

Eduard não disse nada e se juntou aos demais, ao lado de um pequeno descampado lamacento ao lado da casa de guarnição. Era um pequeno posto militar com um escritório, uma cozinha e alguns depósitos. Dali, tinham acesso às escadarias que davam acesso às ameias e às torres. Para a surpresa de Eduard, reconheceu seu ex-colega de classe, Mark, vestindo um uniforme da Guarda da Muralha e atada ao braço, uma faixa que indicava sua função: mensageiro.

Imediatamente Ed se recordou de uma das conversas que tiveram numa taverna. Ele havia falado um pouco sobre seu chefe, que tinha o apelido de Sargento Pança. Ao mesmo tempo que ver Mark, trouxe uma boa sensação, veio uma sensação ruim de culpa. Seu irmão, o Cavaleiro Zéfiro havia sido assassinado e desde então, Eduard pensava em arranjar uma oportunidade de estar com Mark para conversar. Ele até esteve com ele brevemente, mas como Príncipe Edwain, durante o funeral de Zéfiro. Mas Mark nada sabia sobre sua identidade como Eduard Redwall.

Depois das explicações iniciais dadas por DiBrec, Eduard e Arifa tiveram oportunidade de conversar um pouco com Mark.

— Sinto muito por seu irmão — disse Ed.

Mark torceu os lábios e encolheu os ombros — Tudo bem... O que houve com seu braço?

Ele parecia mais alto e magro. Os cabelos castanhos estavam raspados rente à cabeça, não era o mesmo sem aquele topete, e os olhos verdes pareciam mais pesados e sofridos do que outrora.

— Eu quebrei a mão lutando contra um demônio. — Eduard explicou com uma careta.

— É? — Mark arregaçou a manga do casaco e mostrou o antebraço enfaixado e manchado. — Rasgaram meu antebraço, tive sorte de sobreviver. E você Arifa, tem algo a nos mostrar? — Mark indagou assanhado.

— Que tal um soco no nariz? — ela mostrou a mão fechada coberta por luvas cinzentas.

Ele riu. — Parece que a turma toda veio aqui para os Saltadores. Cadê o pirralho do Tíghas?

Arifa olhou para baixo — Os curandeiros não deram certeza de que ele vai se recuperar. Ele sofreu ferimentos graves combatendo as bestas. Está na enfermaria da academia, desde então.

— Estava com você, Redwall?

— Sim, a coisa toda foi feia. Ele só acabou indo por minha causa. Eu achei que podia ajudar, mas acho que mais atrapalhei do que ajudei.

— Não seja tão duro consigo mesmo, Ed — Arifa tocou seu ombro. Ele sorriu. Estava feliz por poder estar na companhia dela e sem o idiota do Tarpin por perto para atrapalhar. Devido à influência de seu pai, fora designado como auxiliar dos Blackwings na guarda do palácio.

— De qualquer modo — disse Mark esboçando um sorriso. — É bom vê-los novamente. Venham comigo, o sargento me pediu para mostrar o lugar para vocês. Que tal subirmos?

Eduard seguiu-o aliviado. Ele não havia demonstrado nenhum rancor por não terem tido a chance de conversar antes, ou mesmo por ter perdido sua vaga na academia. Arifa o havia visitado depois da morte do irmão, assim como Tíghas, mas ao que parece ele não tinha essa expectativa de ser visitado por todos ex-colegas de classe.

***

Depois de mais um dia de buscas pelos vanush, Ailynn retornava à academia para uma rápida visita ao jardim, antes de retornar à casa de seu tio, ou melhor, agora, sua casa. Lá chegando, havia uma garotinha que a aguardava no portão.

— Oi, senhora Capitã...

Ailynn a olhou desconfiada. Quem era aquela menina?

— Pode me chamar de Mestra Ailynn.

— Desculpe, isso mesmo. — Ela deu um sorriso pálido. Era magra e tinha uma aparência frágil, ainda assim, tinha grande força em seu olhar. Aquele olhar, parecia familiar...

— O que quer comigo?

— Eu só vim lhe trazer esses biscoitos. Eu mesma fiz. — entregou uma trouxinha de pano para Ailynn.

— Por quê?

— É para agradecer por ter salvado minha vida.

— Não me lembro de tê-la visto antes.

— Sim, não viu. Mas meu pai me disse que devo minha vida à senhora.

— Eu o conheço? — sim, poderia ser o motivo daquele olhar familiar.

— Acho que sim, digo, não sei. Na verdade, ele não me disse muito...

— E sua mãe? Eu a conheço?

Os olhos da menina ficaram aquosos. Ela respondeu sem chorar. — Mamãe morreu. Faz muitos anos. Mas papai sempre cuidou de mim até que aquele homem horrível... — E a expressão da menina se contorceu e desabou num choro contido.

Ailynn ficou sem reação. Não fazia parte de sua vida ter conversas com garotinhas chorando. Ela simplesmente não sabia o que dizer, não sabia como agir.

— Desculpe, eu não queria incomodar... — ela disse enxugando as lágrimas.

— Tudo bem. Não tem problema. E seu pai, como se chama?

— Hégio — ela respondeu fungando.

Aquilo fez uma cortina de gelo desabar sobre Ailynn. Ela estremeceu, sentindo algo estranho e que não conseguia compreender. Não era possível. Hégio? O mesmo Hégio Greyhill que a traíra? O mesmo por quem se apaixonara. Olhou novamente nos olhos dela e teve certeza. Sim! Eram os olhos do pai.

— Como se chama, menina?

— Lumerinda, mas todos me chama de Lume.

— Lume, você falou sobre um homem horrível. Por favor, me conte sobre ele.

— Eu tinha visto ele uma vez. Ele e meu pai estavam discutindo. Meu pai bateu nele, com força, mas ele riu. Gargalhou. Uma risada asquerosa. Um sujeito horrível. No mesmo dia, meu pai disse que íamos nos mudar. Pegamos nossas coisas para viajar, mas ele retornou. Ele era um mago, ou algo assim. Deu uma surra no meu pai e depois, me levou com ele para aquele lugar... — seus olhos se arregalaram e ela voltou a chorar.

— Eu achei que... Que nunca mais... — soluçou. — Mas então, um dia ele veio, parecia diferente. Feliz até. Disse que iria me devolver para meu pai. Ele falava coisas horríveis, falava sobre agradar seu mestre, que meu pai tinha feito um bom serviço. Sempre dando aquelas risadas asquerosas.

E então, Ailynn compreendeu. Ele a traíra para salvar sua filha. Examinou seus sentimentos e percebeu que não conseguia perdoá-lo, mas agora, ao menos, o compreendia.

— Obrigada por me contar, Lume. E obrigada pelos biscoitos. Diga-me, seu pai sabe que você veio aqui?

— Não! Ele me contou sobre você, mas me disse para eu ficar longe. Mas sabe como são os filhos, não é? Desobedecemos...

Ailynn simpatizou com a menina. Ela era adorável. — Bom, diga a seu pai para vir me ver. Quero conversar com ele.

— Pode deixar, senhora Ailynn. Farei isso.

Ailynn se despediu da menina e foi para o jardim. Despojou-se de seu véu, sentou-se sob a árvore sagrada, abriu a trouxa e começou a comer os biscoitos de Lume. Não conseguia parar de pensar em Hégio. Comia os biscoitos e chorava. Chorava com toda intensidade de sua alma. E de repente, conseguiu ver, diante de si, as figuras espectrais do casal de silfos. Os Nan-lu de Lourish e Lalith sorriram para Ailynn.

— Finalmente, nossa menina! — disse Lalith. — Conseguiu afastar um pouco do ódio que impregnava seu coração.

O velho Lourish assumia a imagem de um silfo magro com longos cabelos e barbas brancas. Ele explicou — Estávamos sempre aqui, mas sua mente estava muito pesada, por isso, não podia nos ver nem ouvir.

Ailynn sorriu para a dupla. Depois parou uns instantes examinando os próprios pensamentos. "Será que isso significa que eu o perdoei?"

— Esperamos que sim, minha filha. — Lalith respondeu a seus pensamentos. — Yaren tem razão nisto, minha filha. Não haverá progresso, antes que se desenvolva o espaço para o perdão.

— Eu devo perdoá-lo?

— Sim, mas não significa que deva ficar com ele. Quanto a isso, é melhor aguardar para ver como seu coração irá reagir. Dê um tempo ao tempo.

— Será que temos tempo, Vó Lalí? As trevas cercam Kamanesh a cada dia mais depressa.

Lalith e Lourish trocaram olhares. Ela tinha razão quanto aquilo, mas também sabiam que as lutas não ocorriam apenas no plano físico. Ela e Hégio poderiam morrer, em breve, mas seus Nam-lus continuariam trabalhando depois disso. O tempo no eterno, ainda tinha longas perspectivas, mas o tempo a que ela se referia, estava de fato escasso.

— Talvez haja pouco tempo, querida. Talvez, um melhor conselho seja de aproveitá-lo ao máximo, enquanto ainda pode.

O coração de Ailynn estava disparado. Certamente ainda havia grande mágoa, mas ao mesmo tempo, vinha sentido vontade de estar perto de Hégio novamente.

— Filha — disse Lourish, trazendo-a de volta ao assunto da proteção de Kamanesh — os demônios estão infiltrados na cidade. Uns poucos deles, mesmo para nós, são difíceis de localizar. Eles se escondem junto aos homens. Ocultam seus pensamentos e suas emanações malígnas. Infelizmente, são especializados nisso.

— Sim, estamos procurando em toda parte, mas só conseguimos achar um até agora.

— Continuem procurando. Kamanesh poderá se perder, em breve, assim como Lacoresh. Se os dois reinos sucumbirem, não haverá mais esperanças.

— E quanto a Whiteleaf?

— Infelizmente, minha filha, parece que este reino já sucumbiu. A ambição desmedida do Rei Aaron o fez aliar-se com as trevas.

Ailynn e outros mestres haviam discutido suspeitas a esse respeito, mas agora, sendo informada por Lalith e Lourish, vinha a certeza sobre aquilo.

— Nós descobrimos há pouco tempo. Revelamos isto a Dornall e os outros, um pouco antes dessa nossa conversa.

Aquela revelação trouxe novos pensamentos a ela. Quando Ailynn deixou a academia para retornar para casa, já era noite. Na saída do portão de Clyderesh foi surpreendida por Greyhill.

— Minha menina disse que queria falar comigo.

Ailynn deu um pequeno salto. Como ele podia ter chegado tão perto sem que ela o percebesse? Estaria tão distraída? Ou ele teria algum tipo de poder? Alguma capacidade do jii? E aquilo lhe ocorreu: ela nunca havia conseguido ler pensamentos superficiais de Hégio. Mesmo querendo ignorar, era comum para ela captar pensamentos de pessoas, mesmo de mentalistas treinados como Josselyn ou seu mestre, Dornall.

— Você? — ela estava sem ação, um misto daquelas ideias que lhe passavam pela cabeça e a confusão de seus sentimentos para com ele.

— Eu.

Ela ficou em silêncio, ainda sem saber o que dizer.

— Que tal uma bebida? Não vamos conversar aqui no meio da rua, certo?

— Não, nada de bebidas! — Havia hostilidade em sua voz. Na noite em que ele a traiu, ela havia bebido, aquilo trouxe péssimas memórias.

— O que quer conversar então? — ele indagou.

— Não aqui. Venha comigo.

Eles andaram num silêncio desconfortável. Ele se sentia culpado, ela confusa. A breve caminhada os levou até a casa de Ailynn. Ela destrancou a porta e disse — Entre.

Havia um candelabro com velas iluminando a sala. Agora ela pode vê-lo melhor. Aquele mesmo rosto bonito, o olhar que parecia sincero, só que não. Ele era um ótimo mentiroso, foi a conclusão que ela tomou. Mentiroso ou não, sua atração por ele, era inegável. E a dele por ela, era recíproca.

Ela tirou o véu, colocando-o sobre a mesa, a seu lado. Seus olhos se cruzaram. Os olhos de Hégio se perdendo no poço escuro que eram os olhos dela. Olhos que seriam assustadores para a maioria das pessoas, mas que para ele, não eram. Tinham uma expressão doce, suave. Então Ailynn agarrou Hégio num beijo súbito e violento. Lalith tinha razão. Não havia tempo a perder. Eles se beijaram, afagaram e no meio daquilo, ele disse.

— Me perdoe, eu...

Ela colocou o dedo sobre seus lábios — Shhh! Eu sei... — e voltou a beijá-lo, levando-o mais para dentro da casa. Deu uma olhadela para dentro da cozinha e viu Dora roncando com a cabeça baixa, sentada em sua cadeira de balanço. Subiram as escadas aos trancos e entraram no quarto despindo-se com pressa. Aquilo que não concretizaram naquela noite e que seus corpos tanto queriam, agora era inevitável.  

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