O Olho de Uraphenes

Anupi DeGrossi entrou no palácio com o nariz empinado. Atrás, veio seu secto de seguidores da Real Santa Igreja. Seu traje branco, incluindo as luvas não pareciam conter nenhuma mancha, destoava dos demais. A faixa de tecido cinzenta delineava sua cintura magra combinava com os sapatos. Examinou o ambiente com seu olhar afiado e frio. Seus cabelos loiros e longos escorriam para fora de seu pequeno gorro branco até atingir os ombros.

O novo capitão da guarda, Jarden veio recebê-los. Vestia uma armadura esmaltada de negro e o característico elmo dos Blackwings, com asas nas laterais. A capa vermelha e pesada lhe dava um ar de nobreza e imponência. O cabo de sua espada grande, bem à vista, parecia ter algo a dizer, uma ameaça, talvez.

— E Lorde Tarpin? — indagou DeGrossi.

— Ele não pode vir, mas o próprio Príncipe Edwain e seus acompanhantes o representarão. Por favor, por aqui.

Seguiram para o salão contíguo com a entrada e encontraram o príncipe, um homem em trajes simples que estava de costas e o velho Mestre Ivrantz sentado numa cadeira de aparência confortável.

— Alteza — o Capitão Jarden fez uma vênia comedida — Como prometido aqui está o Ékzor DeGrossi.

O exorcista inclinou a cabeça. — Os Deuses sabem que será um grande prazer serví-lo, Alteza.

Yaren virou-se e para o lacorês que finalmente o viu. A expressão do exorcista se modificou, não conseguiu disfarçar o desprazer de botar os olhos naquele herege que escapou da execução por um triz. Depois disso, ele procurou ignorá-lo por completo. Chegou até a ignorar o Mestre Ivrantz após sua apresentação.

— Então Alteza, podemos prosseguir? Há um serviço sagrado a ser realizado e, com a graça dos Deuses, iremos localizar esse demônio assassino e destruí-lo de uma vez por todas.

— Muito bem. — Edwain concedeu com um gesto.

— Nenhum demônio é capaz de escapar do escrutínio do Olho de Uraphenes.

Um dos ajudantes trouxe uma caixa ornamentada e fez cerimônia para abrí-la diante do exorcista. Os demais acólitos fizeram um coro de reverência ao objeto sagrado que seria revelado.

Toda aquela cena desagradou Yaren. Lamentava que os clérigos daquela religião estivessem tão ligados a rituais e aparências, ao passo que acabavam se esquecendo da verdadeira vocação de serviço desinteressado que deveria ter prioridade sobre aquilo tudo. Já Edwain, ficou surpreso com aquilo tudo e não pode deixar de admirar o que via e ouvia.

Degrossi retirou o objeto da caixa e ergueu-o no alto, proferindo uma ladainha que ninguém foi capaz de entender. O Olho de Uraphenes era um artefato sagrado e antigo que durante muitos anos, foi mantido no Altar de Uraphenes na Catedral de Lacoresh. Era um orbe de pedra polida esverdeado, preso a garras de ouro e que podia ser segurado como um curto cetro.

DeGrossi girou pela sala com os olhos fixos na esfera, fazendo seu manto esvoaçar num efeito teatral. Finalmente disse — Por aqui!

Seguiu na frente de todos dando passos largos e confiantes. Sentinelas que guardavam portas abriam-nas para dar passagem àquela comitiva. Depois de cruzar um labirinto de corredores, atingiram um dos pátios internos do palácio. O vento frio soprou, mostrando que um inverno rigoroso já havia chegado. O chão estava um pouco molhado, pois a neve do dia anterior já havia derretido. O manto de DeGrossi era curto o suficiente para não tocar o chão. Abaixo dele podia-se ver o par de sapatos de bico fino cinzentos e as meias brancas do mesmo tecido aveludado das luvas. Ele andou com cautela para evitar que os passos fizessem a água barrenta respingar em seu traje impecável.

— Essa entrada aqui dá para onde? — quis saber DeGrossi.

Jarden não sabia, mas olhou para um dos sentinelas que respondeu — Para as velhas catacumbas, senhor. Mas estão fechadas há anos. Vou providenciar as chaves...

— Não precisa — anunciou DeGrossi e avançou para torcer a maçaneta enferrujada. A porta abriu rangendo.

— A luz de Leivisa — o exorcista pediu a um dos sacerdotes.

— Acti Luminen Estil Limpir! — o velho sacerdote evocou os sagrados ofícios e uma bola de luz coruscante surgiu na ponta de seu cajado.

— Devo levar mais homens? — o Capitão Jarden indagou ao ékzor.

— Não será necessário, Capitão.

Então puderam seguir pelo corredor que tinha um cheiro rançoso e os cantos tomados por teias de aranha.

Jarden liderou o grupo, seguido pelo sacerdote que portava a luz. Depois vinham DeGrossi, seus outros seguidores e, no final, vieram Edwain, Ivrantz e Yaren. Logo tiveram acesso a uma escada curva que descia para um nível subterrâneo. Estava um pouco escuro na retaguarda, então Ivrantz estalou os dedos e fez surgir uma pequena chama flutuante que mantinha ao seu lado.

— O Rei Dwain fez bem em fechar este lugar. — o mago comentou com o príncipe. — Durante o reinado do Velho Maurícius, muitas atrocidades foram cometidas aqui.

— Atrocidades que contaram com o aval da Real Santa Igreja — acrescentou Yaren.

Havia celas abandonadas à esquerda e à direita. Dezenas delas. Restos de grilhões e correntes presas às paredes. Então DeGrossi entrou em uma das celas e apontou para o canto. Era uma das grandes, podia ser usada para prender uma dúzia de pessoas. Um cheiro forte e repugnante de algo podre invadiu as narinas de quem conseguiu se aproximar dali. Num dos cantos, havia um monte de entulho e ossos. No meio daquilo, podia se ver algo, era uma pele rugosa e escura. A criatura não era muito grande.

— Está adormecida, mas ainda assim pode ser perigosa — DeGrossi disse baixinho. — Nós invocaremos os sagrados ofícios para paralisá-la. Então, Capitão, corte a cabeça.

— Não — veio a voz de Ivrantz. — Devemos capturá-la viva para interrogá-la.

— Desculpe-me, mago, mas já vimos o que aconteceu no passado quando magos de sua ordem estabeleceram diálogo com os entes das trevas... Nada de bom pode vir disto, o máximo que conseguirão é um monte de mentiras que irão confundir ainda mais as coisas.

— O imundo deve ser destruído — disse um dos sacerdotes e teve aprovação em coro dos demais.

— Eu devo discordar — interveio Yaren. — Acho viável boas extrair informações da criatura.

DeGrossi o encarou, os olhos faiscando e retrucou com desprezo nos lábios — É claro que discorda. Discorda de tudo, não é mesmo, seu herege! Este novo Naomirismo não chegava a ferir os dogmas centrais da Real Santa Igreja. Mas você teve que ir além, não é mesmo? Apenas cale-se de uma vez!

— Eu quero de ouvir o que ele tem a dizer — afirmou o príncipe Edwain.

DeGrossi teve que engolir o orgulho e não retrucar.

— Todo ser inteligente tem algo de bom, ou ao menos a razão em seu âmago. Estou certo que com diálogo caridoso e perdão possamos tocar seu âmago e convencê-lo a colaborar.

— Perdão para com um demônio? Para com um assassino? Francamente, Alteza! — DeGrossi descontrolou seu tom de voz. As rugas de seu rosto contorcidas numa expressão irada.

O demônio se revirou no meio do entulho e abriu dois olhos escuros que refletiram o brilho das luzes presentes. Ele saltou, com incrível velocidade, para cima do príncipe. Ivrantz agiu antes e um feitiço de proteção fez com que o demônio de desviasse do alvo se chocando contra uma parede lateral.

— Matem-no! — berro DeGrossi — e dois de seus sacerdotes sacaram maças sem pontas e partiram para o ataque.

O Vanush era um demônio pequeno, não maior que um cão, mas muito ágil e maleável. Olhou-o com seus olhos negros e pequenos enquanto avançavam e sibilou. A ponta metálica da maça atingiu a parede com o som de uma marreta sobre pedras. O demônio correu, agarrado às paredes como um lagarto e circulou a cela em direção à saída.

— Está fugindo! — o velho sacerdote alertou.

— Não mesmo! — disse Ivrantz ao liberar um de seus feitiços. Um raio amarelado fluiu da ponta de seus dedos e atingiu o demônio no meio de seu caminho. As suas seis pernas travaram e ele caiu no chão, estremecendo.

— Mate-o! Mate essa cria dos abismos! — DeGrossi empurrou Jarden na direção do demônio. O campeão de Jenesh ergueu sua espada de lâmina larga, pesada demais para qualquer outro ali naquela cela carregar e avançou contra a criatura. Edwain colocou-se em seu caminho no último instante.

— Eu o quero vivo, Capitão, o monge Yaren irá interrogá-lo. — Edwain foi firme em sua instrução de comando. E então ele obedeceu, baixando a espada.

— Pode amarrá-lo, Mestre Ivrantz? — indagou Edwain.

— Está feito, Alteza. — Uma nova onda de energia fluiu das mãos do mago e envolveu o demônio, fazendo-o se contrair. Seu tamanho se reduziu para o algo semelhante a um gato franzino.

— Está cometendo um erro, Alteza! Não deve confiar num Herege! Não deve estabelecer diálogo com uma criatura das trevas. É certo que a desgraça irá recair sobre sua casa se o fizer. — argumentou DeGrossi, procurando controlar sua ira.

— Agradeço profundamente sua ajuda para localizar este demônio, Ékzor DeGrossi. O reino de Kamanesh fica endividado para com o senhor e os valorosos membros da Real Santa Igreja. Esteja certo de que vou argumentar com a Rainha a respeito do pedido da igreja lacoresa para operar de modo permanente em Kamanesh.

DeGrossi sorriu adorando ter tais notícias.

— Mas não posso negar ao meu povo uma chance de descobrir informações sobre essa ameaça que recai sobre todos nós. De quanto tempo acha que precisa, Monge Yaren?

Yaren engoliu seco, pensou em argumentar que não era mais monge, mas deixou isso de lado. — Duas semanas, Alteza.

— Assim será feito. Se em duas semanas Yaren não obtiver resultados, entregarei o demônio a seus cuidados, Ékzor DeGrossi, para que o despache do modo que julgar adequado.

— O meu dever é servir, mas não se engane Alteza, nada de bom poderá vir dali. — disse olhando para Yaren. Edwain não teve certeza se ele se referia ao demônio ou a Yaren.

— Mestre Ivrantz, leve-o para a Academia para que seja interrogado pelo monge.

— Pois sim, Alteza.

DeGrossi acompanhou a saída de Yaren da cela com ódio nos olhos. Sim, agora ele sabia onde o maldito estava se escondendo...

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