O Julgamento
Aquele julgamento era esperado por muitos. Há tempos não se via o salão de audiências cheio como estava. Naquele mesmo local, há mais de vinte anos, Maurícius, o Velho, realizava extravagantes banquetes e bailes. Em seu reinado, Lacoresh havia se tornado um dos mais importantes centros de poder do mundo. Ele governava, mas as verdadeiras decisões vinham de um grupo de bruxos necromantes que ambicionavam dominar o mundo. O governo de sua sucessora, a Rainha Hana Greysnow, era diferente em muitos sentidos, embora também fosse um governo de fachada. Seu marido, príncipe Kain, e seu conselho do Dragão Negro tomavam todas as decisões que ela apenas ratificava. Tanto que é comum que ele também fosse chamado de Rei Kain, mesmo que oficialmente seu título fosse de príncipe.
O réu já estava de pé no centro do salão. Metade estava tomado por membros do clero. A Real Santa Igreja era forte e um incômodo constante para o príncipe. Principalmente a ordem dos sacerdotes de manto branco. Na parte alta do salão, estavam o príncipe, os poucos nobres e o patriarca da igreja.
A Capitã, conseguiu junto ao Prior Ormont permissão para ela e Greyhill assistirem o julgamento.
"É um sujeito assustador" ela pensou ao olhar para o príncipe. No mesmo instante, ele pareceu olhar diretamente para ela como se lesse seus pensamentos. Ela sentiu o estômago embrulhar. Era um homem magro, de postura muito ereta e rígida, seus olhos eram azuis cristalinos e vestia uma sóbria túnica negra. Sua coroa tinha uma larga faixa dourada que cobria toda a testa e na lateral via-se seus cabelos grisalhos aparados curtos, num corte militar.
– Mas que bando de gente esquisita, hein Capitã? – Greyhill disse ao seu lado.
– Já disse para ficar quieto. – ela retrucou ríspida.
– Mas tá todo mundo falando? – e era verdade.
A Capitã reconheceu o Ékzor DeGrossi saindo do meio da multidão e caminhando em direção ao réu. Yaren fazia parte da Ordem dos Naomir, que ainda existia em Kamanesh, mas não mais em Lacoresh. Havia outras diferenças entre a Real Santa Igreja e Igreja de Kamanesh, mas concordavam em pontos fundamentais. A igreja de Kamanesh angariava fiéis, mas tinha pouco poder na estrutura de estado estabelecida pelo falecido Rei Dwain.
O Ékzor não vestia o habitual manto branco, mas sim um longo manto vermelho escuro que se arrastava atrás de si. Na cabeça, um alto chapéu cilíndrico de mesma cor, ornamentado com rendas brancas. Após a reforma da Real Santa Igreja, no início do reinado da rainha, muitos trajes e rituais novos foram adotados a fim de simbolizar com maior clareza os propósitos e ideais da organização.
– Aquele cara parece um palhaço – Hégio disse ao pé do ouvido da Capitã.
Ela teve que discordar usando escárnio. – Não, Greyhill, ele é um palhaço.
Ele riu e pensou que a capitã estava começando a se acostumar com ele e que isso era bom.
Já próximo ao centro, DeGrossi falou, mas quase ninguém o ouviu. Ele fez um aceno com a mão e uma trombeta soou para silenciar os presentes.
– Peço a atenção de todos os presentes. Para quem não me conhece, sou o Exorcista Anupe DeGrossi e farei o papel de acusador neste julgamento. Podemos iniciar, príncipe Kain?
O príncipe apenas fez um aceno positivo. DeGrossi prosseguiu.
– Peço a atenção de vossas excelências para o caso do pretenso herege, Monge Yaren de Kamanesh. Este homem, veio a nossas ruas pregar inverdades e loucuras que desafiam a autoridade da nossa Rainha e de nossa Real Santa Igreja. Não apenas isto, mas segundo soubemos, em seu próprio reino de origem, suas pregações também foram condenadas pela Igreja de Kamanesh. O réu chamará alguém para fazer sua defesa?
– Não senhor. – Yaren vestia um manto beje e surrado, característico dos Naomir. Estava muito quieto e calmo.
– Muito bem! — ele fez uma pausa esfregando as mãos. — É verdade, Monge Yaren, que fez pregações nas ruas de Lacoresh?
Ele concordou com um aceno.
— Em suas pregações, afirmou que há um Deus único superior aos nossos Deuses pais, Forlon e Ecta? Que quando morremos, não se aplica o julgamento divino de Uráphenes? E que a alma, ao invés de adentrar a salvação nas Planícies Celestiais, ou cair no Abismo da Perdição, pode escolher voltar ao mundo renascendo entre os homens?
– Afirmei...
DeGrossi esboçou um sorriso, mas sua próxima fala foi interrompida por Yaren, que elevou sua voz e continuou.
– e peço desculpas a todos Lacoreses por tudo que disse.
– Desculpas? – Anupi DeGrossi soou indignado. – Acha que desculpas irão apagar as blasfêmias que proferiu?
– Não apagam, santíssimo Ékzor. Mas tenho algo a dizer em minha defesa.
– Prossiga. – impacientou-se o acusador.
Uma batalha era travada na mente de de Yaren. Desde a visita da Capitã, surgiu em sua mente, uma vontade enorme de sobreviver. Havia um grande propósito a cumprir em sua vida e para cumprí-lo, precisava encontrar um jeito de não ser condenado. Uma parte de si queria reafirmar suas convicções, aproveitar a oportunidade para questionar em público a igreja lacoresa e suas ideias ultrapassadas. Tinha fortes argumentos preparados, e desejava utilizá-los, mas não conseguia. Então disse – Eu fui tentado por demônios.
Um murmúrio preencheu todo o salão, mas logo silenciou para escutar o que ele tinha a dizer. – Eles me fizeram dizer blasfêmias. O objetivo deles era abalar a fé do povo lacorês, enfraquecê-los por dentro a fim de conquistá-los. Eles estão vindo, vocês sabem! Homenase e Kamanesh já sofreram ataques. Áxia e Griis já caíram. As trevas estão vindo sobre nós e agora estão atacando assim. Fazendo homens santos proclamar blasfêmias.
DeGrossi queria dizer algo, contra atacar, mas estava surpreso demais para fazê-lo de uma maneira elegante então apenas gritou – Mentiras!
– É verdade! Vocês me salvaram. O templo de Uráphenes me salvou. Quando fui aprisionado no solo sagrado do templo, a influência dos demônios foi enfraquecendo até que eu pude ver com clareza. Fui enganado. Aquelas ideias não eram minhas.
– Então é pior! Vejam! – DeGrossi apontou para Yaren – Ele é o instrumento de demônios. Deve ser queimado!
– Não, nossa religião oferece a misericórdia da penitência para aqueles que reconhecem e se arrependem de suas faltas. Eu me arrependo!
O Ékzor ficou vermelho, furioso e sem saber o que dizer. Aproveitando-se do hiato o príncipe Kain falou com sua voz áspera – O arrependimento me parece sincero, não acha, Ékzor DeGrossi?
Ele olhou para o príncipe, surpreso por sua intromissão. Cerrou os punhos com força e respirou fundo. – Sim, alteza, parece. Mas há uma falha tremenda em sua argumentação, Monge Yaren. Afirma ter sofrido influência de demônios, não é? Não sabe que nós, os exorcistas somos especialistas em detectar a ação e presença de demônios? Eu afirmo a todos. Fizemos um minucioso exame e não encontramos nenhum sinal disto, portanto Monge Yaren, penso que é melhor contar uma história melhor que esta se quiser realmente salvar sua pele.
Yaren olhou nos olhos raivosos de DeGrossi. Nada veio a sua mente. Devia ter pensado melhor na argumentação.
A Capitã se levantou e deu dois passos para dentro do grande círculo. – Perdoem-me minha intromissão. Sou a capitã da guarda real, comandante dos Blackwings e também, primeira exorcista de Kamanesh.
DeGrossi olhou para ela nervoso, sem saber ao certo o que dizer. Antes que o fizesse, o príncipe falou – Pois sim, Capitã, sua reputação a precede. O que tem a dizer?
– A história que o monge contou é bem próxima da realidade, mas falta revelar um detalhe para que se torne verdadeira.
– E o que seria isto? – demandou DeGrossi controlando sua ira.
– O Ékzor sabe, assim como o Prior Ormont, aqui presente, que ontem fiz uma breve visita ao monge que estava sob os vossos cuidados no templo de Uráphenes.
– E?
– Durante minha visita, tive uma breve conversa com o monge e pude percebê-lo perturbado. Ou melhor, obcecado por um repetir ideias estranhas. Decidi então, fazer um exame para detectar demônios conforme o que aprendi na academia, em Clyderesh.
– Ora isso é ridículo! A capitã trouxe uma carta de extradição que foi negada. Por isso essa conversa toda...
– Perdoe-me, Ékzor DeGrossi, mas não tenho culpa se os métodos de detecção de demônios empregados pelos senhores tenham sido insuficientes.
– Ora esta! Pode apresentar alguma prova, Primeira Exorcista de Kamanesh.
– Pois sim, o demônio que extraí do monge Yaren está neste salão. Poderia fazer o favor de detectá-lo? Ou ainda, chamar um de seus companheiros de ordem, caso não se julgue competente para tal?
DeGrossi ficou rubro e vibrou de raiva, mas logo começou a entoar o cântico para revelar demônios – Deimos corpus surgo! Deimos corpus surgo Ioném!
Repetiu o cântico algumas vezes mudando o foco de sua investigação, mas nada encontrou. – Não há nada aqui. – afirmou resoluto. – Deixemos essa farsa de lado e prossigamos para a condenação deste herege!
Mas a capitã deu um passo à frente e retirou algo de dentro de seu manto. Era uma pequena caixa de metal com inscrições de caracteres místicos em todo seu redor. Atirou a caixa na direção de DeGrossi. O recipiente quicou no chão fazendo um incômodo barulho até que parou. A Capitã murmurou algo e então a caixa se abriu. Houve silêncio absoluto e muitos estavam curiosos enquanto outros temerosos. Da caixa, uma pequena criatura, pouco maior que uma barata se esgueirou. Era feia e asquerosa. Seus pequenos olhos vermelhos pulsavam. Quando falou palavras na língua dos abismos, ninguém duvidou que se tratasse de um demônio.
A capitã sacou uma adaga que arremessou com precisão atingindo a cabeça da criatura. – Que morra, antes que cause mais algum mal.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo e não houve trombeta que os fizesse silenciar de imediato. Se pudesse, DeGrossi mataria a Capitã na frente de todos e com as próprias mãos. Sentiu-se profundamente humilhado e desacreditado.
O príncipe se levantou e foi até a capitã. – Posso ver a carta que foi mencionada?
A capitã fez mesura, ajoelhando-se sobre um dos joelhos. Retirou a carta de um bolso e entregou-a ao príncipe.
Ele fingiu ler seu conteúdo e depois disse em voz alta – Pelas provas aqui apresentadas, proclamo que o Monge Yaren de Kamanesh seja considerado inocente das acusações. Que cumpra penitência a ser estabelecida pela Igreja Kamanesa, e que retorne, com a Capitã para sua cidade natal.
DeGrossi quase rosnou para si mesmo – Absurdo! Absurdo!
Yaren ajoelhou-se e deu graça aos deuses ao se ver livre da sentença de morte.
O barulho voltou a preencher o salão e o príncipe disse apenas para a Capitã ouvir.
– Além de capitã da guarda, a senhorita é uma ótima atriz. Há um teatro na cidade, deveria vir encenar uma peça.
Ela ficou sem palavras. – Majestade eu...
– Não se preocupe Capitã. Ver as caras que o Ékzor DeGrossi fez nessa palhaçada de julgamento já foi pagamento suficiente para mim. Há tempos que não via algo ao mesmo tempo divertido e surpreendente. Agora vá, antes que ele ou seu pessoal arranjem alguma escritura para contestar o que acabou de ocorrer.
– Sim, Alteza, muito obrigada!
– E mais uma coisa, Capitã. Diga ao Kandel que o tempo está passando e que a sua indecisão poderá prejudicar a todos nós.
– Como é?
– Apenas diga-lhe para me dar uma resposta logo.
– Sim, Alteza, farei isto.
Ela foi até Yaren e puxou-o pelo manto para fazê-lo se levantar. – Vamos monge, para Kamanesh, já!
DeGrossi entrou na frente dela e disse – Isto não vai ficar assim, está me ouvindo, sua farsante!
A Capitã empurrou-o de lado e disse – Melhor não se meter conosco se gosta mesmo de sua cabeça presa ao corpo.
Ela seguiu puxando o monge para fora do salão e logo Greyhill se juntou a eles.
– Capitã! Aquilo foi incrível!
– Cale-se, Greyhill, não temos tempo para conversa mole. Precisamos deixar Lacoresh, imediatamente.
– Sim, senhora...
– Quem é ele? – Yaren perguntou.
– Nosso guia. Espero que você goste de papear, farão boa companhia um ao outro, se assim for.
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