O guia
O grande Portão Sul de Kamanesh tinha a altura de três homens e abria-se pela manhã para fechar logo antes do pôr do sol. A muralha que contornava a cidade, levou dezoito anos para ser concluída e tinha cerca de duas vezes a altura do portão. Torres de defesa estavam dispostas a cada sessenta metros havendo centenas delas formando um bolsão, quase completo, que se interrompia apenas no trecho da cidade que tocava a beira do rio.
O Portão Sul era o ponto de encontro da Capitã com o guia indicado para levá-la até Lacoresh. Bem cedo já chegavam carroceiros advindos das vilas próximas para abastecer os mercados da capital. Assim, formava-se uma longa fila de espera para que os sentinelas e seus cães farejadores inspecionassem aqueles que desejavam entrar. Todas as pessoas e animais deviam ser verificados em busca de sinais da Praga do Imperador. Ocasionalmente, havia encontros com mortos-vivos errantes em toda a região e um mero arranhão, ou mordida de um morto-vivo, passavam adiante a praga. Eram os cães farejadores que melhor conseguiam localizar os sinais da maldição.
A Capitã já se impacientava, pois seu guia estava atrasado. Sentia-se contrariada e até irritada por ter que sair de Kamanesh abandonando sua investigação do paradeiro do demônio que havia penetrado o castelo, dias antes. A ideia de ir a Lacoresh a desagradava, achava-os um bando de esnobes de mentes atrasadas e até, meio birutas. Sua conversa com o conselheiro Kandel, no dia anterior, ainda estava viva em sua memória.
Estavam no escritório do conselheiro, um cômodo amplo, bem iluminado, e minimamente decorado. Além da grande mesa, cheia de papéis, havia apenas um retrato do rei na parede, ainda jovem, quando ainda era duque.
– Mas conselheiro, a investigação...
Kandel era um senhor de idade, mas que ainda mantinha vigor físico de alguém que fora um cavaleiro, quando jovem. Seu rosto era severo, com muitas rugas e cicatrizes. Tinha olhos verdes muito compenetrados e grossas sobrancelhas grisalhas.
– Não pense que irei negligenciar isto. A possibilidade de um demônio infiltrado em nossa cidade, ou até mesmo, no castelo, é muito grave, já compreendi. Darei continuidade às investigações pessoalmente. Já consegui a dispensa para o Cavaleiro Nathannis me acompanhar e dedicar-se integralmente às buscas.
A capitã suspirou e deu-se por vencida. – Mas afinal, por que trazer um padre biruta de volta é tão importante assim?
– Você não deveria falar do Monge Yaren assim.
– Mas todos sabem...
– Capitã – Kandel foi severo – você mais que outros, deveria aprender a refletir melhor antes de expressar julgamentos apressados.
Ela se irritou com a bronca e o que ela implicava. – Eu não ligo para o que os outros pensam, ou dizem de mim!
– É... posso ver isso. – o conselheiro foi sarcástico. – É de vital importância para o futuro de Kamanesh que Yaren seja trazido de volta.
– Por Uraphenes! E o senhor não vai me explicar mesmo o porquê disto?
– Os assuntos do conselho tem motivo para serem mantidos sob sigilo.
– Mas o senhor não confia em mim?
– É claro, é justamente por isso que escolhi você, e nenhuma outra pessoa para cumprir esta missão. Mesmo que ainda não esteja plenamente recuperada é a você que o conselho confiou esta importante incumbência. A carta deve ser suficiente para libertá-lo, mas é possível que haja resistência. Você deve estar atenta aos fanáticos e dissidentes.
– Pode explicar melhor?
Kandel suspirou – O caso do julgamento do Monge Yaren, por heresia, poderia reacender um confronto entre nós e Lacoresh.
– Mas nossos reinos são aliados...
– Não é uma aliança tão sólida quanto parece. É um momento de vulnerabilidade para nós... Um conflito com Lacoresh, mesmo que de pequenas proporções, é a última coisa de que precisamos.
– Compreendo.
– Amanhã, no horário da abertura do Portão Sul, Greyhill, o guia que contratamos, irá procurá-la.
Dois cães começaram a latir loucamente para um homem que vinha de dentro da cidade. Usando coleiras de couro, puxavam atrás de si dois sentinelas.
– Ora, seus malditos pulguentos, deem o fora! – disse o homem encapuzado chutando água lamacenta na direção dos cães. Mas eles, continuavam, ora latindo, ora ganindo.
Aquilo atraiu a atenção da Capitã, que passou a observar com interesse. O homem era alto, de constituição robusta, com um dos braços expostos, bronzeado, e com músculos bem delineados. Seu traje era escuro, mas não negro. Puxava atrás de si, um par de cavalos.
A Capitã percebeu que além de latir, os cães abanavam os rabos.
– Isso é extorsão! – ele disse aos cães e tirou uma coisa peluda da sacola que trazia à tira colo. Atirou a lebre e com isso, os cães silenciaram, disputando a iguaria.
Um dos sentinelas disse – Já disse para parar de mimar nossos cães, Greyhill!
Em resposta ele tirou uma garrafa da sacola entregou ao sentinela, dando uma piscadela. Aquilo também o silenciou.
Ele disse, ao vê-la, ainda a meia distância – Ah, Capitã, bom dia!
– Você está muito atrasado! – seu mau humor transparecia na voz.
– Atrasado? Ora não! Me disseram para encontrá-la no portão após a primeira hora.
– Você mente mal.
Ele deu com os ombros de cabeça baixa buscando algo em sua sacola.
– Para a senhora – estendeu a mão com uma rosa amarela semi desabrochada.
Foi só então que ela pode ver seu rosto em detalhes. Ele tinha a barba por fazer, queixo largo e bem masculino e um lindo sorriso. Os olhos eram cinzentos e sua expressão era de muita simpatia. Mas a Capitã não era muito sensível a simpatias.
– Deixe de bobagens! – retrucou a Capitã segurando as mãos tensas atrás do corpo.
– Mas é um presente.
– Inútil, pode guardar isto.
– Espero não tê-la ofendido – ainda estendia a flor para ela e isso fez as orelhas da capitã esquentarem, envergonhada pela situação.
– Não por isso, senhor Greyhill – ela deu um tapa derrubando a rosa na lama – mas me ofendi por seu atraso. Inaceitável!
– Peço desculpas – ele disse fazendo uma vênia.
Ela não respondeu e dirigiu-se para a montaria que estava sem bolsa de bagagem, assumindo que seria a sua.
– Esta é a Neca – Greyhill indicou a égua de pelo marrom.
A Capitã resmungou baixinho, o som abafado sob seu véu – Um guia cheio de conversinha, é só o que me faltava!
– Muitos me chamam de Greyhill, mas meu primeiro nome é Hégio.
– Já perdemos tempo demais, senhor Greyhill! – Disse já montada no cavalo.
– Pode me chamar de Hégio. – ele disse enquanto montava em seu garanhão, um cavalo esguio de pelo cinzento.
– Prefiro Greyhill...
Ele deu com os ombros. – E o seu primeiro nome?
– Meu primeiro nome é Capitã, como todos sabem. – disse ao cutucar Neca para trotar.
– Espere Capitã, eu sou seu guia, lembra?
– Sei a direção geral de Lacoresh. Quero chegar lá ainda hoje.
Hégio a alcançou e disse – Nada disso. Não vamos viajar a noite, mesmo que por algumas horas. Passamos a noite em Wuri e pela manhã seguimos para Lacoresh.
– Como quiser, senhor Greyhill.
A cavalgada até Tanir levou menos que duas horas e Hégio tentava, de maneira insistente, estabelecer algum assunto com a Capitã, que passou a resmungar de maneira monossilábica. Greyhill gostava de conversar, mas na falta disso, um monólogo também o atendia.
– Melhor contornarmos a vila – ele disse. – Perderemos menos tempo assim.
– Se estivesse realmente preocupado com tempo, teria chegado no horário combinado.
Ele riu. – Gosto do seu senso de humor.
– Não é humor.
– Então, gosto do seu mau humor.
A Capitã virou o rosto em resposta.
– Sabe, minha família veio do velho Condado de MontGrey. Vivíamos no norte, em Xilos. – Quando ela não falava nada, ele prosseguia falando – Meu avô contava que Xilos foi uma cidade muito próspera. Infelizmente, toda a região está abandonada. Ouvi dizer que os bestiais vivem lá. E que até eles possuem um rei.
Veio o silêncio e ele pensou "Bestiais também não... Ela vai falar sobre alguma coisa, eventualmente".
Muita fumaça subia da direção de Tanir, e dali podiam ver duas de suas torres de observação. Eram torres de madeira, assim como a muralha que circundava a vila. Quase todas as vilas do reino de Kamanesh possuíam muralhas modestas, se comparadas com a da capital e as que não tinham, eram circundadas por fossos e pontes levadiças. Aquela era uma região perigosa, afinal.
– E você, Capitã, de onde é sua família?
– Não é da sua conta.
– Verdade... Ser Capitã da Guarda Real deve ser difícil.
– É uma grande responsabilidade.
– Tinha oportunidades de conversar com o Rei? — perguntou coçando a barba.
– Sim.
– Sobre o que ele gostava de conversar?
– Não é da sua conta.
– Sim, não, e não é da sua conta... São suas três frases favoritas, não é?
– Sim.
– Viu? Você tem um senso de humor.
– O senhor não se cansa?
– Cansar de quê?
– De ficar tagarelando?
Hégio riu – Eu gosto só de conversar.
– Pois, eu não.
– Mas o que há de melhor para se fazer?
– Apreciar a vista. — de fato, passavam por um local de natureza exuberante. A trilha era circundada por mato e algumas poucas árvores jovens. No passado, toda aquela região era usada para plantações, contudo, depois da Praga do Imperador, os campos de cultivo passaram a ser muito mais restritos.
– Posso muito bem apreciar a vista e conversar.
– Apreciar a vista, em silêncio.
– Acho chato. Quando cheguei em Kamanesh ontem, achei que havia acontecido um motim. Pensei que tivesse sido uma luta interna pelo trono. Só acreditei mesmo na história dos demônios quando vi uma das carcaças. Coisinhas horripilantes, não?
– Queria vê-lo falar com esse tom se tivesse que enfrentar um deles.
– Contam que você matou um dos grandes.
– Fiz parte do trabalho.
Hégio ajeitou os cabelos – Aprendi muito sobre demônios.
– Duvido.
– Posso não ter frequentado a Academia, mas o mundo de verdade está fora daquelas paredes. De qualquer maneira, esse ataque foi uma surpresa para todos nós. – Ela não disse nada e ele prosseguiu – Podia jurar, quando vi a fumaça em Kamanesh que aquilo era obra de Whiteleaf.
A Capitã olhou-o com interesse. – Como assim?
– Bem, eu viajo, sabe Capitã. Eu converso, eu escuto. E, depois do Velho Maurícius, está para nascer um rei mais ambicioso que Aaron de Whiteleaf. Tem gente que acredita que ele vai reunificar Lacoresh, mais cedo, ou mais tarde.
– Duvido.
– O exército dele é o mais forte...
– Não mesmo. Números não são o mesmo que força.
– Os cavaleiros deles podem não saber fazer magia, ou aquela coisa mental, mas eles também tem lá seus feiticeiros...
– Nós somos mais bem preparados. E além do mais, somos reinos aliados...
– Muita gente pensa assim... Mas também há quem chame vocês de Cavaleiros Patos.
– Patos?
– Andam, nadam e voam, mas não fazem nada direito.
– Ridículo.
– Outra coisa que falam, é que sem o Rei Dwain, Kamanesh irá ruir. Que o jovem príncipe Edwain não tem fibra, nem mesmo a sabedoria do avô para governar. E isso, já ouvi de gente de Lacoresh, Whiteleaf, Homenase e até mesmo daqui, de Kamanesh.
Lá no fundo, ela também tinha suas dúvidas a respeito, mas pensar naquilo, constituía um conflito para com sua lealdade ao príncipe, deixando-a irritada – Acho bom parar com essa conversa, senão vou ter que dispensá-lo como meu guia!
Com isso, a Capitã finalmente conseguiu que Hégio Greyhill silenciasse por algum tempo. Ainda era um longo caminho até chegarem à Situr, onde pretendiam almoçar. Antes disso, ele, para o desgosto da Capitã, voltaria a tagarelar.
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