Lições amargas

Uma guerra estava em andamento. Havia muita especulação, mas não se conhecia os motivos. O mestre Farkas estava atrasado para a aula e isso deu um tempo para Eduard e Tíghas colocarem alguns assuntos em dia.

— Olha lá, Tíghas... Lá vai aquele idiota do Tarpin.

Tarpin cercou Arifa para contar vantagens sobre como era bom morar no palácio. Ela perguntou coisas a respeito do príncipe Edward.

— Cai na real, Arifa! A filha de um cavaleiro não tem nascimento elevado o suficiente para ser uma pretendente do príncipe.

Ela corou, e retrucou raivosa — E quem disse que eu quero alguma coisa com alguém da nobreza? Só estava perguntando por curiosidade... — mentiu.

Tarpin deu uma gargalhada alta e teatral. — Sei! Olha, Edwain está fora do seu alcance, mas agora eu também sou praticamente um príncipe. Eu poderia tê-la como uma de minhas concubinas... O que me diz?

Arifa bufou, chutou a canela de Tarpin e foi ligeiro para o canto do pátio.

Tarpin riu sem graça e comentou alto, como se fosse o centro de atenções da classe — Mulheres! Vai entender?

Ele deu uma olhadela raivosa para Eduard e Tíghas e foi para outro canto conversar com Francel.

— Olha só aquele bosta, Ed. devia ter concordado em empacotá o sujeito.

— Eu vou lá falar com a Arifa.

Tíghas o deteve.

— Vai não Ed. Isso vai só piorá as coisa pro cê. Uma hora dessa o desgraçado vai te apunhalá pelas costa, tô falano... Seja como Edwain, ou como Eduard. Se prepara que ele tá aprontano alguma pra cima d'ocê. Já vi outros alunos olhando ocê enviesado. Tão querendo te pegá só porque é de Whiteleaf.

— Eu nem acredito que estamos aqui, tendo aulas enquanto uma guerra está acontecendo lá fora. Eu acho que o Mestre Farkas nem vem. Acho que vão cancelar todas as aulas, isso sim.

— Pode . Ontem escutei umas coisas na taverna. Diz que Tanir também foi toda queimada. E que as tropa do Rei Aaron tão cercano Situr.

— É verdade. Eles querem quebrar o abastecimento de Kamanesh. Nós não temos muito excesso. Tudo depende do que vem do interior. Nossa tropa principal vai partir hoje. Ontem, no palácio, estavam discutindo os detalhes. Eu vou te contar, mas é para ficar de bico fechado.

Tíghas concordou com um aceno.

— Ontem chegaram tropas de Jenesh, Greenfield e Upperwoods. Hoje vão chegar mais homens de Waterbridge e de Lersh. Juntado com as tropas aqui de Kamanesh, estaríamos em superioridade de quatro para um. O general quer fazer um avanço massivo e esmagar as tropas de Whiteleaf. Eu sugeri que enviassem apenas metade das tropas, mas não me deram ouvidos. Penso que há muitos espiões aqui... Está parecendo uma solução fácil demais. Kamanesh ficará desguarnecida.

Tendi... Ouvi dizê que o Rei deles tem pacto com demônios e que quer também tomá Lacoresh... O desgraçado quer ser o comandante de tudo.

— É, mas esse negócio de demônios... Tenho uma outra ideia a respeito. E se os demônios tiverem se infiltrado em Whiteleaf? O maldito Vanush que anda assassinando no palácio ainda não foi pego.

— Lacoresh tomou partido?

— Não me surpreenderia se eles estiverem por trás de tudo. Eles vão nos pressionar para a ajoelhar de novo para eles. Ajoelhar para a Real Santa Igreja.

— É mas...

Um funcionário da academia entrou no pátio e anunciou.

— Atenção, alunos. O Mestre Farkas não vai dar aula hoje. Ele foi alistado para comandar um batalhão no exército.

Antes que alguns alunos ficassem animados com a perspectiva de ter um horário livre, ele continuou.

— Vocês devem se dirigir ao outro pátio imediatamente para instrução com a Mestra Ailynn.

— A Capitã? Nusga! — Tíghas cochichou com Eduard. — Um carinha do terceiro ciclo teve aula com ela ontem. Ele disse que ela é uma carrasca! Fica esperto e não caia na errada de chamar ela de Capitã.

Seguiram, apreensivos, pelos corredores laterais da academia, cheios de colunas e arcos de pedra cinzenta. E lá estava ela, de pé, no meio do pátio pavimentado num padrão de tijolos losangulares. Estava de costas e sem sua armadura e elmo, parecia outra pessoa, menor, de contornos mais femininos. Vestia uma roupa de tecido negro folgada. Faixas de couro marrom e flexível deixavam finas as canelas, antebraço e a cintura. Cabelos negros, lisos e lustrosos pendiam até o meio das costas amarrados por uma fileira de grampos, formando uma espécie de rabo de cavalo.

Os alunos chegaram, do outro lado do pátio, ainda cochichando entre si. "É mesmo a Capitã? Dizem que ela foi capturada pelo inimigo... Ela tem um focinho de bestial. O rosto dela é desfigurado, coberto de cicatrizes. Ailynn? Essa nome não combina com ela, né?"

Ela se virou, num movimento lento, calculado e um tanto rígido. Não dava para ver seu rosto. Usava um véu diferente, algo que não se usava em toda região de Lacoresh. Algo que se usava no oriente, talvez em Keldor, ou mais além. Era uma combinação de um lenço, vermelho escuro que cobria o rosto abaixo dos olhos, uma faixa que cruzava a testa cobrindo também as sobrancelhas e presa nesta um tecido escuro cheio de furinhos que cobria os olhos. Suas orelhas ficavam à vista e pareciam bem normais. Isso também eliminava a teoria de alguns que acreditavam que ela fosse uma silfa.

Os alunos se aproximaram com certa timidez, exceto por Tarpin que caminhou resoluto, Arifa o seguia, mais devagar, mas com um brilho de admiração nos olhos. Era a mulher guerreira mais famosa de todo o reino.

Os demais chegaram e formaram uma linha desajeitada. Então ela disse com uma voz dura, fria e num tom de acusação.

— Então, vocês gostam de cochichar, não é?

Ficaram em silêncio, alguns engolindo seco, outros com as mãos suando.

Deu um um passo na direção de um deles.

— Você acha que tenho um focinho de bestial, é?

O rapaz estremeceu — Não, eu...

— Quieto! Não mandei ninguém falar. E você. — virou-se para Francel — Acha que eu tenho um rosto horrível, sim? É, talvez eu tenha.

Virou-se bruscamente para Tíghas e disse — Ah, você acha que eu tenho uma audição incrível, é? Não... É muito pior que isso. Eu posso escutar o pensamento de cada um de vocês.

Ao dizer isso, Tapin murchou um pouco sua postura e suou frio. Ele não vinha pensando coisas boas ao respeito dela. Já Eduard arrepiou-se com a possibilidade dela descobrir sua identidade. Começou a cantarolar algo, mentalmente. Um dos blackwings havia lhe dito que isso pode ajudar a esconder pensamentos.

Ailynn balançou a cabeça e suspirou.

— Muito bem. Meu nome é Ailynn — e olhou para um aluno — mesmo que você pense que não combina comigo. E quero ser chamada de Mestra Ailynn. A Capitã, ficou no passado. Compreenderam? Vou assumir, daqui para a frente as aulas de Kishar no lugar do Mestre Crafith. Sim, ele está morto. — A imagem de seu tio, ensanguentado, retorcido, com os olhos vidrados nas estrelas voltou. — Ele me ensinou o Kishar, desde que tinha sete anos. Na idade de vocês, já sabia o suficiente para me graduar no sétimo ciclo. — Ela se virou para Tíghas e respondeu ao pensamento — Não, eu não entrei na Academia antes do tempo. Ele me ensinou por que era meu tio. — disse aquilo sem nenhum traço de emoção na voz. Quando não usava um tom neutro e monótono, usava um tom gélido e rancoroso.

— Agora, chega de conversa e vamos começar com um teste. Vocês vão fazer uma sequência básica de concentração e liberação do Jii, com três avanços e um soco final. — Ergueu a palma da mão — Devem acertar minha mão liberando o máximo do Jii que puderem através do soco. Francel! Você primeiro.

O garoto tremeu um pouco, mas fez conforme o seu antigo mestre lhe ensinara. Inspirou e expirou fundo, concentrou-se e executou os movimentos. Passo curto e soco, passo alto e soco para baixo, e finalmente, passo longo e soco. Terminou um pouco para trás, mas acertou a palma da mão da Capitã, produzindo um fraco estalo.

— Certo. — Ela apontou e disse — Para a direita.

— Arifa.

Ela já respirava suavemente. Deu passos curtos calculando a distância ideal. Executou os movimentos com precisão e o golpe fez soar um forte estalo, como um chicote.

— Bom! Para a esquerda.

— Redwall.

Eduard executou bem os movimentos, mas o resultado final foi um fraco estalo.

— Para a direita.

— Tíghas.

O baixinho conseguiu ter um resultado mais fraco que o de Francel.

— Direita!

— Tarpin.

A cabeça dele doia. Havia bebido e comido muito, na noite anterior. Ainda estava extasiado com os luxos do palácio real. Sua execução foi ruim. A Capitã voltou-se para ele e disse.

— Volte e repita.

Ele o fez se esforçando. Um pouco melhor. Olhou para ela com medo nos olhos. Medo de que ela pudesse ler seus pensamentos. Ele nem viu o golpe atingir seu peito. Caiu rolando totalmente surpreso.

— Levante-se! — ela rugiu com rispidez. — Se você não é capaz de evocar nem um traço de Jii, não significa que não pode executar os movimentos direito.

Ele estava de pé, curvado com uma das mãos massageando o peito dolorido. Tíghas, Eduard e outros que já haviam executado os movimentos seguravam o riso. Os que ainda aguardavam, tremiam, ou suavam.

— Vamos, de novo!

Tarpin tremia e suava como um porco. Seu rosto e orelhas, estavam vermelhos. Sentia-se humilhado, cheio de raiva. Especialmente quando cruzou olhares com Eduard e Tíghas que tinham um risinho irritante nos lábios.

Ele deu uns pulinhos para relaxar e disse a si mesmo — Vamos lá... Vamos lá!

Sua terceira execução foi bem melhor, mas ao invés de acertar a mão da instrutora, o soco acertou o ar, ao lado. Antes que ele percebesse seu erro, ela agarrou seu braço esticado. girou-o no ar atirando-o de costas no chão.

— Uma falha miserável! De pé! De novo! E é melhor acertar desta vez.

Tarpin gemeu baixinho. Tíghas deixou escapar uma risada, mas Eduard sentiu um pouco de pena do fanfarrão.

Tarpin tinha poeira colada no rosto. Sentia as costas doer e se arrastou para tomar a posição. Começou a fazer os movimentos e entre segundo e terceiro passo, tropeçou e caiu de joelhos, diante de Ailynn. Ela respondeu à sua falha com um chute que o fez virar de costas.

Ele ergueu a cabeça com raiva e deixou escapar. — Sua vagabunda! Não pode fazer isso comigo. Eu sou o filho do Arquiduque de Jenesh. Meu pai vai...

Um chute no rosto de Tarpin fez ele girar e cair de lado. Sangue brotou do nariz e da boca.

— Desculpe, Mestra! Eu não devia ter...

Um chute no estômago o fez rolar e vomitar ali. Depois de sujar o piso com aquela gosma fétida misturada com sangue voltou-se para ela, ajoelhado e disse.

— Me perdõ... — A sola da bota de Ailynn empurrou o rosto dele fazendo-o tombar para trás.

Eudard detestava Tarpin, mas aquilo já era demais. Ela ia acertá-lo novamente, mas antes que o fizesse, teve o golpe bloqueado por ele. "Estou defendendo o Tarpin? Não acredito!" Foi tudo que Eduard conseguiu pensar, pois precisou de toda sua concentração e de alguma sorte para se desviar de mais dois golpes dirigidos a ele. Subitamente, ela parou. Olhou-o por um longo momento. Eduard sentiu que aquele olhar sob o véu perfurava sua alma.

— Muito bem! Ao menos alguém aqui nesta turma tem colhões e algum espírito de equipe. Para a esquerda, Redwall.

Eduard sentiu certo alívio e foi andou para ficar ao lado de Arifa. Não conseguiu deixar de pensar que a Capitã havia exagerado em sua conduta com Tarpin por que seu pai havia a destituído de seu posto. Eduard não conseguia confirmar suas suspeitas, mas uma coisa era certa, a Capitã nutria profundo desprezo pelo Arquiduque de Jenesh.

— Vou deixar bem claro. Nenhum de vocês merece algum privilégio por causa de dinheiro, posição social ou nascimento elevado. Nem que o próprio neto do rei frequentasse esta instituição, seria favorecido por mim.

Aquela alusão fez Eduard gelar. Ela já saberia sobre sua identidade? Seria possível esconder isso de uma mentalista poderosa como ela?

Tarpin ficou curvado no chão, tossindo com ódio da Capitã. Quanto a Eduard, Tarpin sentiu um misto de confusão que oscilava entre raiva e agradecimento.

— E vocês, em posição. Ainda precisarão fazer o teste.

Os demais fizeram o teste. Apenas mais um foi selecionado para o grupo da esquerda, se juntando a Eduard e Arifa.

— Muito bem, todos os do grupo da direita, exceto Tarpin, passarão por mais um teste. Tarpin, levante-se e vá para a enfermaria. Na próxima aula, espero que você seja capaz de mostrar mais empenho e algum respeito.

Tíghas voltou a esboçar um sorriso, mas o escondeu quando ela se virou. Adiantava esconder alguma emoção ou pensamento dela?

— Vejo que alguns de vocês acharam o desempenho miserável de Tarpin engraçado. — Olhou para Tíghas, que tinha perdido o controle anteriormente e abafado uma gargalhada.

— Pois então, vocês vão fazer um teste. Um teste de eliminação. Como vocês sabem, cada mestre tem a prerrogativa de eliminar os alunos inaptos. Eleger apenas os melhores a se formar nesta respeitada instituição. Então, hoje, — ela apontou para o grupo que a olhava apavorado — um de vocês será eliminado da academia.

Tíghas engoliu seco. Ele não era muito bom em Kishar. Seria o mais fraco entre eles?

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