Kímel Lorual

O demônio derrotado ainda queimava caído no chão produzindo a luz que cobria a parte central da praça, em frente da torre de Kímel Lorual. O mago insano deslizou do alto do parapeito e pousou suavemente no chão. — Hehehe — a gargalhada presunçosa e escorregadia de Kímel preencheu os ouvidos dos aspirantes provocando arrepios em alguns deles. — Ataquem crianças, o titio Lorual quer ver do que são capazes.

O primeiro a agir foi Ted Greenfield. Kímel ergueu as sobrancelhas ao examinar seu rosto. Os olhos e boca costurados com arame. Ele avançou ligeiro apesar de mancar um pouco. Ignorava a dor, mas o pé estava torcido e torto.

— Espada legal! — zombou Lorual quando Ted tentou golpeá-lo com violência. A espada parou contra o tecido do manto e ficou ali colada. Um movimento de mãos do mago fizeram o jovem cavaleiro flutuar. Kímel fechou o cara numa expressão de raiva e o par de mãozorras etéreas esverdeadas que ele comandava começaram a esmagar o corpo de Ted, produzindo sons horríveis de metal se retorcendo e ossos estalando.

— Seu merda, fela da puta! — Rulf rugiu e disparou uma, duas, três flechas certeiras contra o mago. Todas se desviavam dele como se estivesse coberto de sabão.

As mãos etéreas largaram o corpo retorcido de Ted no chão e voaram ligeiras com punhos cerrados contra o arqueiro grandalhão. Pou! Ele foi arremessado girando em torno de si mesmo e depois quicou com baques de metal se arrastando em pedra umas três vezes antes de parar.

Josselyn concentrou todas suas energias para realizar um ataque psíquico. O problema é que estava cansada por causa do combate contra o demônio que matara Will. Então calculou que um ataque de força bruta sairia fraco e provavelmente a faria desmaiar. Decidiu fazer um ataque psíquico mais sutil. Esgueirou-se lentamente até tocar a mente do mago e tomou um choque ao fazê-lo. Ela estremeceu e sentiu uma forte pontada no cérebro. Vieram imagens horríveis, sangue, criaturas, mas tudo passou num piscar de olhos. Suas pernas bambearam, mas soube que havia estabelecido contato com a mente de Kímel.

Ela leu seus pensamentos. "Essa vadia! Melhor acabar com ela antes que faça algo contra minha mente!" Isso antecedeu os movimentos de suas mãos para puxar de volta as mãos etéreas. Ela podia perceber tudo isso agora, se passando lentamente. "Vou esmagá-la como um inseto!". Viu as mãos se abrindo espalmadas e voando em sua direção. Fingiu-se imobilizada e sem ação. Viu um sorrisinho de vitória se esboçando nos lábios de Kímel enquanto as mãos já se fechavam em torno dela, vindo da esquerda e da direita. Josselyn não era apenas a mais capaz mentalista daquele grupo, e como todos os colegas, tinha ótimos reflexos sendo bem treinada para o combate corpo-a-corpo. Ela esperou até o último instante, então, projetou o corpo para frente numa salto rápido e curto. Rolou pelo chão de pedra e posicionou-se agachada dois metros para a frente encarando-o para dar sequência a seus ataques mentais. As mãos etéreas se chocaram com força fazendo soar um estalo alto como uma chicotada.

"O que?" Kímel pensou surpreso. "Ela é muito rápida! Eu nunca vou conseguir atingí-la com essa magia." Ele estava convencido disso, e nem mesmo havia percebido que era uma mentira. Uma mentira afirmada para si mesmo, com convicção. O sugestinamento mental de Josselyn havia sido bem sucedido.

Zane pensou. "É tudo ou nada!" Estava recolhido num canto, mesclado às sombras com a ajuda de um feitiço. "A barreira dele é física ou também bloqueia magias?" Avançou pelas costas de Kímel e evocou uma língua de fogo. O fogo mágico envolveu o mago e começou a queimar as roupas. Kímel deixou de sustentar as mãos etéreas que se dissolveram no ar. Sentiu ardência do fogo começando a queimar sua pele, mas agiu rápido. Estalou os dedos e convocou uma contra-magia fazendo o fogo se dispersar. Com os cantos do olhos viu Zane e disparou um relâmpago esverdeado da ponta do dedo. Zane estava suado, mas conseguiu bater seu cajado contra o pavimento provocando um estalo. Foi bem a tempo de fazer a energia do raio de Kímel ser absorvida pelo cajado e fluir para se dispersar na terra. Zane tomou a defensiva e convocou no cajado um feitiço de reflexão.

Kímel percebeu a manobra do jovem mago e preparou um feitiço que o atingiria a despeito de sua proteção, mas antes de lançá-lo, hesitou. Josselyn avançava contra ele com a espada desembainhada. "Ela é muito rápida e o maguinho está na defensiva agora". Kímel desistiu de atacar Zane. "Vamos ver como você se sai contra isso, vadia!" Jô sabia que viria um feitiço, mas não sabia qual. O chão tremeu sob seus pés e ela tropeçou caindo para frente. A lâmina de sua espada penetrou na coxa dando um talho.

— Ai! — Ela gemeu. Além daquele ferimento, queimaduras causadas pelo fogo do demônio ardiam aqui e ali. A dor fez sua concentração se romper e deixou de captar os pensamentos de Kímel. E o pior, o sugestionamento cederia. "Droga! Aposto que aquele maldito necromante fugiu".

— Morra, maldita! — Kímel apontou o dedo para ela, caída no chão, mas logo antes de disparar, sentiu uma cãibra terrível se espalhar pelo braço que se torceu de lado. O raio verde saiu, mas errou o alvo por muito. Kímel viu que um espectro havia afundado suas garras finas como agulhas no seu braço. A outra mão do morto-vivo agarrou seu pescoço fazendo-o guinchar e perder todo o fôlego. Apesar da força da contração de seu diafragma, nenhum ar queria vir para os pulmões de Lorual. Ele travou os dentes e o rosto se contorceu numa expressão furiosa.

— Está fora de forma, Lorual? — a voz abafada de Hendrish veio de algum ponto na escuridão.

Jô transmitiu pensamentos para Zane. "Ele está preocupado com sua reserva de energia!"

Isso lhe deu uma ideia. Avançou cambaleando. Estava fraco, mas viu a oportunidade de recuperar suas forças ao mesmo tempo que drenaria as do oponente. Preparou um feitiço de sifão e avançou o mais rápido que conseguia.

Kímel olhou nos olhos do espectro e conseguiu dizer entre dentes e expelindo perdigotos — Isso vale para os dois lados.

O espectro o soltou e voltou as atenções para Zane, que estava apenas a dois passos de distância.

— Não! — veio a voz de Hendrish. — Não! — repetiu com raiva.

O espectro parou, logo antes de atacar Zane e emitiu um grito horripilante. O necromante e o mago disputavam o controle sobre a entidade. Zane arriscou. Atravessou o espectro sentindo seu corpo gelar, e segurou o braço de Kímel. O calor e vigor começaram a fluir de Kímel para Zane. Hégio observava todo o desenrolar daquele combate de longe e percebeu que a perna de Kímel bambeou. Então soltou a corda do arco que produziu o zumbido característico. A flecha zuniu e se enterrou nas costas de Kímel. Ele caiu sobre um joelho se segurando as duas mãos em Zane para evitar cair. Estavam vencendo! Josselyn mal podia crer naquilo, tão pouco Hendrish.

Kímel olhou para cima com os olhos injetados e sangue rubro escorrendo pelo canto de sua boca.

— Já chega — murmurou o mago. Zane sentiu calor nos locais em que Kímel o segurava. O calor cresceu e chamas incendiaram suas vestimentas.

— Argh! — Zane gritou de dor e caiu sentado sentindo as chamas se alastrarem.

— Venham! — o grito de Kímel soou rouco e rasgado. — Venham agora, porra!

Primeiro veio um grito gélido. Depois passos, dois, uma dúzia, centenas de passos. Dos limites da escuridão que escapava do fogo do demônio caído, surgiram dúzias de mortos-vivos. Esqueletos, zumbis, carniçais, espectros, etc. Hendrish conseguiu assumir o controle de alguns e o melhor que pode fazer foi posicioná-los ao seu redor para defender-se.

Josselyn ficou de pé, mancando, tentando chegar perto de Zane. O jovem mago conseguiu repelir as chamas antes que causassem maiores estragos. Hégio surgiu na luz atirando flechas, uma depois da outra contra os mortos-vivos que começavam a fechar um cerco. Yaren, que estava próximo dele, veio correndo junto, de carona. O grupo se juntou, vendo-se cercado por um número incontável de mortos-vivos que avançavam lentamente.

— Eu cometi um erro — disse Kímel, cambaleando para longe do trio — Mas sou bom em corrigir meus erros a tempo.

Hégio disparou uma flecha certeira contra Kímel, mas ele a desviou com sua barreira restabelecida.

— Você vai trabalhar de novo para mim, Greyhill, querendo ou não, hehehe.

— Então, é verdade? Você traiu a Capitã? — Yaren indagou incrédulo.

— Quieto padreco, agora não dá para explicar!

Os carniçais de Maurícius farejaram o sangue de Josselyn e avançaram, mais velozes que todos os demais. Eram mais de dez daqueles desgraçados, ela constatou. Uma mordida e você já era.

Hégio suou frio e pôs de derrubar carniçais um depois do outro. Sacava a flecha, esticava a corda e zap! Seus tiros sempre atingindo o crânio, cruzando o cérebro e fazendo-os tombar. Derrubou quatro antes que estivessem perto demais. Zane explodiu três com uma bola de fogo bem atirada. Josselyn guardou a espada e respirou fundo. O Jii fluia através de seu corpo. O Kishar, a luta com o espírito, técnica marcial antiga e que era ensinada na academia era efetiva contra mortos-vivos. Um golpe imbuído do Jii era capaz de dissipar as energias das trevas e converter um morto vivo numa massa de carne morta e inerte.

Hégio largou o arco de lado e sacou a espada. Partiu um crânio. Josselyn chutou o peito de um carniçal fazendo o tombar para trás inerte. Zane incendiou dois com uma língua de fogo. Um agarrou Hégio e mordeu sua ombreira de armadura de couro, errando a garganta por pouco. Yaren empurrou a cabeça com seu bastão, livrando Hégio. Jô girou para escapar de outro, mas um segundo a agarrou pela cintura e os dentes podres da boca descarnada se aproximaram de seu rosto. O hálito podre provocou náuseas. Ela fechou os olhos. A mordida se fechou cortando a carne. Zane não sentiu nenhuma dor. Havia enfiado sua mão dentro da boca do carniçal para salvá-la da morte. Quantos segundos de vida ele havia comprado para ela? Chegou a se perguntar enquanto o carniçal afundava os dentes na palma e no dorso de sua mão atravessando o tecido da luva.

Hégio rachou mais um crânio, mas foi agarrado por dois carniçais. Yaren tentou ajudá-lo, mas foi agarrado por outro. Era o seu fim. Mas ao invés de ser mordido, escutou três estalos fortes e sentiu o aperto do carniçais se enfraquecendo. Hégio também foi salvo.

A silhueta feminina coberta com alguns trapos movia-se com agilidade felina. Atrás dela, um rastro de corpos de mortos-vivos que já estava sendo coberto pelo avanço de mais e mais deles. Tinha umas faixas enroladas em torno do rosto e da cabeça, deixando apenas uma faixa estreita para a visão.

— Capitã? — Hégio arregalou os olhos.

Ela estendeu um dos braços musculosos segurando-o pela garganta. — Eu devia matá-lo agora! — E soltou para girar golpeando mais dois mortos-vivos que chegavam.

Com uma mão na boca do carniçal e a outra livre, Zane sacou uma faca e cravou no olho, fazendo escorrer uma gosma amarelada.

Jô olhou para a Capitã lutando como um vendaval selvagem. "Tassip a libertou? E onde ele está?" Precisou deixar as indagações de lado. Fez fluir o Jii pelos braço e com um soco desmontou o último carniçal que os cercava. Uma grande onda de zumbis e esqueletos fechava o cerco contra os cinco. Fizeram um círculo e sustentaram os primeiros ataques. Hégio e a Capitã derrubavam dois a três oponentes sustentando a defesa naquele flanco, mas Zane e Jô conseguiram repelir a primeira linha e foram atingidos por ataques da segunda. Jô arranhada no braço e Zane recebeu um corte de uma lâmina tosca e enferrujada empunhada por um esqueleto. Yaren ajoelhou-se no meio deles, rogando a Deus que enviasse um milagre. Era questão de tempo. Estariam todos liquidados.

Um zumbido forte veio na direção deles. O som de carne cortada e ossos se partindo num ritmo frenético sugeriam uma manada de touros pisoteando e triturando aquela legião de mortos-vivos. Um borrão cruzou duas fileiras de mortos-vivos que caíam sobre Zane e Josselyn fazendo-os cair quase todos juntos com os corpos divididos pela metade.

Se alguma coisas pudesse os salvar, seria um milagre de Deus, Yaren rezava convicto. E aquela coisa, que avançava na legião despedaçando, atirando braços e cabeças para o alto era um tipo de milagre brutal e veloz. A coisa avançou circundando para o outro lado, derrubando duas dúzias de mortos-vivos do lado da Capitã e de Hégio.

— Isso é coisa sua? — Hégio indagou à Capitã.

— Não! Mas por enquanto, não estou reclamando.

— É sua reza, padreco?

Yaren deu com os ombros. — É o vento de Deus...

Um círculo foi se abrindo e fazendo tombar mais dezenas, abrindo uma grande clareira e deixando amontoados de carne contorcida sobre o pavimento da praça da Necrópole.

Os mortos-vivos começaram a se retirar. Kímel havia cruzado o portão da torre, que estava aberto, e ordenou o recuo de sua legião.

O zumbido passou a soar límpido, como se fosse uma dúzia de varas de bambu sendo agitadas contra o ar. O borrão se aproximou deles e o som foi se modificando até que puderam ver que era algo girando rápido. E que girava cada vez mais devagar até que parou. Uma espada enorme, de duas mãos, pairou flutuando diante deles. Ela flutuou para o sul e todos acompanharam o objeto com olhares curiosos. Uma figura encapuzada surgiu da escuridão. A espada flutuou e se encaixou numa bainha presa às costas do encapuzado. Josselyn sentiu seu coração afundar parecendo que queria tocar em suas botas. Algo como uma ventania psíquica a arrebatou. Seja lá quem fosse, era um mentalista poderoso. Aquilo que viram não era magia, mas sim o Jii concentrado para produzir telecinese.

Ele chegou perto e disse numa voz engrolada.

— Se eu fosse vocês, daria o fora daqui enquanto podem.

O capuz e manto negro, cobriam todo o corpo. Luvas de tira de couro negro envolviam as mãos. Não era um sujeito grande, ou corpulento. Poderia até ser alguém bem magro sob todo aquele tecido largo. A única parte do corpo que puderam ver era o queixo, a boca e a ponta do nariz. Era um queixo muito branco e pálido. Quando a boca se movia, parecia haver dentes grandes, pontudos e tortos. Com a boca fechada, uma presa saia cobrindo o lábio inferior enquanto outra, menos proeminente espetava o lábio superior.

— Quem é você? — indagou Josselyn.

— Ninguém.

— O que quer conosco?

— Nada. Digamos que estamos quites, por hora. Vocês me fizeram um favor e eu salvei a vida de vocês em troca. Agora, xô daqui. Eu tenho umas contas para acertar com o velho Kurzeki.

O encapuzado volitou em direção da porta escancarada da torre. Jô não resistiu e sondou os pensamentos dele. "A bússola! Enfim a terei!" Mas antes que ela captasse algo mais, tomou um tapa no rosto feito de puro Jii. "Nunca mais tente ler minha mente, Josselyn de WaterBridge!"

Ela levou a mão no rosto que ardia — Acho melhor fazermos o que ele disse — gemeu Josselyn.

A Capitã foi até o lado do demônio, que ainda queimava. Will estava ali no chão, todo retorcido. Ela se ajoelhou, fechou os olhos de seu tio que olhavam para o céu, vidrados. Os olhos negros dela, ocultos pela penumbra noturna, brilharam com as lágrimas. Ficou de pé e olhou com ódio para Hégio. Ela queria matá-lo. Iria matá-lo, sim, só que não agora. Ela estava endividada.

— Greyhill! — Rugiu a Capitã apontando para a porta da torre. — Me ajude com o rapaz que me libertou e vamos sair daqui.

Yaren murmurou sobre o corpo de Will — É um bom homem, Senhor. Ilumine seu caminho para o além. — completou a prece baixinho.

Atrás do portão, Kerdon Tassip estava adormecido, com uma aparência nada boa. Olhos fundos, músculos flácidos.

— Kerdon! — exclamou Jô com lágrimas nos olhos — Graças a Leivisa, está vivo! O que houve com ele?

A Capitã explicou — Tive que usar sua força para tentar ajudar vocês. Mas nem mesmo isso teria sido suficiente... — disse com amargura. Aquela figura encapuzada não era coisa boa. Detestava ter sido salva por aquilo, mas não era hora para ficar pensando. Tinham que sair logo dali.

Jô estava abalada, acariciou o cabelo de Tassip e pensou "Ted, Rulf e o Mestre Crafith, infelizmente não tiveram a sua sorte."

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