Investigação

Kandel e Galdrik entraram na cela onde estava o corpo de Yourdon. Eles trocaram olhares entre si. O velho tinha a adaga com o símbolo do ducado cravada em seu peito. O sangue escorrido já estava endurecendo.

— Recebi um relato de um guarda que pensa ter visto a Capitã deixar a cidade ontem, numa embarcação. — disse Kandel.

— Isso não significa que ela não possa ter retornado — retrucou Galdrik, que desconfiava que a autora dos assassinatos fosse a Capitã.

— Verdade. Está pronto?

Galdrik precisou de apenas um passo e meio para chegar ao lado do cadáver. Era uma cela pequena. Kandel empurrou uma banqueta para ele.

— Sente-se.

O cavaleiro agradeceu e sentou-se ao lado de Yourdon. Procurou manter os pés afastados da poça de sangue. Coçou sua barba loira e curta, tirou a luva e curvou-se para tocar o cabo da adaga. Novamente, as imagens vieram... Por algum motivo, não conseguia enxergar claramente. Viu uma cristaleira e uma mão, talvez feminina, retirando uma das adagas. As imagens ficam nítidas num instante, e escuras e borradas no instante seguinte. Houve uma luta com dois homens. Sim. Eram Cwen e Gavin. Via as imagens da perspectiva do assassino. Goruk norulda. Um sussurro se repetia. E uma risadinha fina. Era uma voz afeminada. Até onde a visão indicava, poderia ser mesmo a Capitã. Galdrik se convencia disto. Imagens de escuridão se seguiram até que viu os contornos de Yourdon, adormecido. As duas mãos se juntaram para segurar a adaga com força que mergulhou contra o peito da vítima.

Yourdon acordou com os olhos arregalados. Soltou um gemido horrível e gorgolejante com sangue subindo na garganta.

— Você? — ele disse de modo débil.

Em resposta a voz feminina, ou ainda, infantil soou.

Goruk norulda.

E assim que a adaga foi solta a visão cessou.

Galdrik olhou para Kandel que aguardava ansioso.

— Que diabos significa goruk norulda?

Kandel deu com os ombros. Não parecia sílfico. Ele sabia falar um pouco.

— O que viu, conte-me?

— Vi as ações da assassina, mas fiquei com a impressão que era uma pessoa mais baixa.

— Como soube que era uma mulher?

— Sua voz era fina, as mãos delicadas, mas ao mesmo tempo... Não sei. Algo parecia errado. Algo que não se encaixava. Começo a pensar que... bem, investiguei junto à academia. Pode haver um vanush escondido no palácio.

— Vanush?

— Há um livro que fala de demônios. Estou com uma cópia na minha casa. Pode ser a explicação.

— Era disso que Nathannis desconfiava. — Kandel relutava em acreditar numa hipótese que excluísse intriga política. Todos os assassinatos anteriores sugeriam uma lógica assim. A descrença estava em sua face.

— Sei que você não acredita, mas estou começando a ver uma lógica nisso. O maldito pode ser muito inteligente e se estiver escondido por aí, pode estar escutando todo tipo de intrigas e usar essas informações...

— Por outro lado, há necromantes que conseguem dominar, ou mesmo fazer acordos com demônios. É difícil que haja algum em Lacoresh, mas não sei se poderiam haver alguns deles sendo usados por Whiteleaf.

— Vou até a academia falar com Arze. Ela poderá saber o que significam aquelas palavras.

— Por que não, Ivrantz? — Kandel não confiava em Arze Termatus.

— Posso procurá-lo primeiro, o senhor confia nele, certo?

Kandel assentiu. Gladrik tirou um livrinho de notas e entregou a Kandel.

— Fiz algumas anotações sobre o que descobri. Acho bom ler isto logo. É preciso estarmos atentos e preparados para agir caso se confirme a hipótese de termos um demônio entre nós. Em especial, um tipo capaz de possuir corpos.

Edwain estava tenso, pois não podia perder aula naquele dia. Haveria um teste. Preferiu não falar nada com sua mãe àquele respeito. Disse a ela que precisava fazer suas necessidades e saiu. Foi até a guarnição e requisitou escolta para ir até a casa do velho Lorcas. Os cavaleiros não o questionaram. Com ou sem assassinatos, a vida continuava em Kamanesh. Ele se trocou e chegou ainda antes do horário, graças a ser acordado em plena madrugada. Cedo assim, poucas pessoas circulavam pelos corredores. Sua cabeça doía e para seu azar, surgiu uma boa oportunidade para Tarpin ter com ele uma nova conversa.

O grandalhão puxou-o para um canto, e de modo nada gentil pressionou-o contra a parede.

— Melhorou, vira folha? — ele tinha um olhar irado.

— Me solta, Tarpin! — Eduard sussurrou.

— Um amigo viu você, e aquele rato lacorês com a minha Arifa, ontem. Pensei ter ordenado a você para ficar longe dela.

— Escute, eu não a procurei. Ela e Tíghas vieram me visitar e depois...

— Vocês foram beber juntos?! — Tarpin apertou o braço de Eduard com força, provocando dor. — Acha que isso é aceitável, seu moleque?

— Não, não Tarpin, eu não pretendia...

Ele puxou Eduard e depois bateu o corpo dele com força contra a parede. Aquilo doeu.

— Sinto-me generoso hoje. Então, vamos deixar assim. Mas se eu souber que esteve com ela novamente...

Tarpin o soltou e fez um gesto, passando o dedo no pescoço de Ed. Então, quando Ed achou que ele se afastaria, Tarpin olhou para os lados, só para se certificar e, num movimento rápido, pegou os bagos de Ed e esmagou com força. Depois saiu dizendo.

— Ninguém vai examinar aí, não é Ed?

O menino se agachou no chão sentindo muita dor. Lágrimas escorreram de seus olhos e seu rosto queimava de raiva. Como ele podia deixar que aquele idiota fizesse aquilo com ele? E o pior de tudo, aquela maldita dor de cabeça. Eduard pensaria mil vezes antes de beber novamente. Nunca teve uma ressaca assim tão forte. Ao mesmo tempo, ideias terríveis começaram a lhe invadir os pensamentos. Poderia trazer uma arma para a academia e acabar com a raça de Ive Tarpin. Sim! Era isso que ele merecia! Uma faca enterrada no coração. E então, uma ideia maligna surgiu em sua mente. Ele, como príncipe, poderia convocar Tarpin para uma visita no castelo. Poderia insistir para que se hospedasse. Sim, sua mãe adoraria convidar uma família de nobres e oferecer um jantar. E quando ele estivesse dormindo, Edwain o apunhalaria. E todos iam pensar que era apenas mais um daqueles assassinatos. Eduard se levantou com um sorriso sinistro nos lábios, aquele plano parecia muito atraente. A ideia de vingar-se de Tarpin lhe parecia irresistível.

— Que cara é essa, Ed? — Tíghas vinha de um corredor lateral.

— Ah, nada!

Eduard sacudiu a cabeça.

tá muito estranho, Ed.

— Deixa de ser chato, Tíghas! — Eduard empurrou o amigo.

Qué isso cara! pirado?

— Olha, só não vem me encher o saco, legal?

— Você é meio doido, Ed? Aconteceu alguma coisa?

— Sim, aconteceu! Encontrei aquele bosta do Tarpin, foi só isso.

— Nós vamos dar um jeito nele.

— Não precisa se preocupar. Eu...

Havia algo diferente na fala e no modo de se expressar de Ed. Isso deixava o rapaz intrigado.

— O que?

— Nada, deixa para lá. E esse teste com o Mestre Crafith, já soube de algo?

Tíghas deu com os ombros.

— Ouvi dizer que ele tem o coração mole. Quem quase nunca alguém é eliminado nos testes dele.

— Bom, tomara que isso seja verdade. Ser eliminado é só o que estaria faltando...

Naquela noite, Kandel estava sozinho em seu escritório. Ele não disse nada a ninguém, mas depois de examinar com mais atenção tudo o que ocorrera naquele dia, cresceu nele uma terrível convicção: O príncipe Edwain havia sido possuído por um demônio, ou alguma força mágica que o conduziu para cometer aqueles quatro assassinatos. Era difícil ignorar as evidências dos rastros de lama. O trajeto realizado e outros detalhes da visão. Depois do que leu nas anotações de Galdrik, aquela história toda de demônio infiltrado começava a fazer total sentido. Se isso fosse mesmo verdade, seria possível evitar que o príncipe fosse incriminado? Ou ainda, teria a possessão demoníaca algum efeito colateral? Será que ele seria obrigado a prender, ou então, matar o herdeiro? Se as coisas chegassem em tal extremo, quais seriam as consequências para Kamanesh?

A porta de seu escritório se abriu retirando-o de tais divagações funestas. Entrou ali, seu amigo, o Mestre Ivrantz. O olhar do velho transparecia preocupação vincada em suas muitas rugas faciais.

— Que bom que pôde vir! Sente-se.

— Sua cara não está nada boa, Kandel. — Ele colocou alguns livros sobre a mesa. — Trouxe os livros que pediu.

Então, ajeitou a faixa alaranjada que apertava sua cintura magra e tomou um assento.

— Ótimo! — o conselheiro puxou os livros para si. — Galdrik foi procurá-lo?

— Sim.

— E então? — Kandel coçou o braço demonstrando ansiedade.

Goruk Norulda. As palavras parecem mesmo fazer parte de um dialeto demoníaco. Eu arriscaria dizer que significam: Derrota ou queda. Ou Cairão, serão derrotados.

— Está claro que alguém quer nos eliminar, mas quem? E por quê?

O velho Ivrantz soltou um longo suspiro. — Eu não sei, mas é melhor descobrirmos isso antes que a derrota chegue para nós.

Houve silêncio entre os dois e Kandel folheou um dos livros.

Ivrantz puxava a barbicha branca pensativo e indagou — Parece certo que há um Vanush aqui no palácio. O que pretende fazer?

— Nada que crie alarde. Não queremos que ele escape. O senhor tem alguma sugestão?

— Bem, a criatura continuará atacando, mas não me convenci de que todos os problemas sejam causados por um demônio. Há mais coisas acontecendo... Ah sim, seus hábitos são noturnos. Precisamos pegá-lo no ato, então. Eu poderia colocar uns feitiços de alarma, mas o palácio é grande demais.

Kandel ficou pensativo. Precisava proteger o príncipe, mas confiava em Ivrantz.

— Tenho uma boa ideia de um foco para trabalharmos. Na Ala Real, em especial, em torno dos aposentos do príncipe.

Ivrantz ergueu as sobrancelhas e lançou um olhar de compreensão. Por fim completou.

— Vou ver o que consigo descobrir junto ao rapaz, Redwall, na academia.

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