Espírito Protetor

Entre as crenças esquisitas do Monge Yaren estava a ideia que cada pessoa dispunha de um ou mais espíritos protetores capazes de inspirar a mente com bons pensamentos e prevenir e afastar o perigo. Muitos achavam aquela ideia tola, pois se todos realmente contasse com tal ajuda, o mundo não estaria sucumbindo ao caos e ao mal da forma que estava. Era mais fácil acreditar em antigos deuses que estavam ausentes e que de muito longe, conseguiam favorecer, vez por outra, apenas a alguns indivíduos cuja fé fosse forte e robusta.

O fato é que Yaren estava diante de um grande perigo, algo para o qual nenhum espírito protetor seria capaz de intervir diretamente. Yaren corria pelas ruas de Kamenesh na esperança de localizar a Capitã. Sentia que ela precisava de seu auxílio. A sorte fez com que cruzasse com os dois soldados que traziam o cavalo dela de volta. Não que ele fosse capaz de reconhecer o animal, mas a sorte fez com que ele ouvisse claramente um deles comentando.

— Dá para acreditar minha sorte? Encontrar com a Capitã e receber semelhante missão?

Yaren resmungou — Capitã? Missão?

— Guarda, você disse que encontrou a Capitã? — indagou num sorriso simpático.

O guarda se voltou para Yaren com a cara feia, mas ao encará-lo a má disposição se dissipou.

— Sim, por que pergunta?

— Sou Yaren, estou ajudando-a numa investigação.

O guarda ergueu as sobrancelhas em compreensão. Sim, havia ouvido uma conversa na guarnição sobre a Capitã e o tal ex-monge. O guarda não sabia o porquê, mas sentiu o ímpeto de colaborar com o monge dando informações detalhadas.

— Bem, se se apressar pode alcançá-la. Ela foi para o portão leste, disse que tinha algo a resolver lá fora. Como não levou o cavalo, imagino que ela não deve ter ido muito longe. Talvez tenha ido até Posto de Arroz. Se perguntar, terá boas chances de encontrá-la.

— Obrigado! — Yaren seguiu agradecendo a Deus por guiar seu caminho.

Yaren apreciava sair de Kamenesh. Os ares do campo lhe faziam bem e adorava observar a beleza da natureza. A estrada até Posto de Arroz era movimentada. Encontrou-se com uma pessoa ou outra no caminho e perguntou sobre a Capitã. Ninguém deu uma resposta positiva, mas também nenhuma negativa convicta. Estaria no caminho certo? Pedia a Deus para lhe iluminar o caminho. Seguia a passos largos e sem a menor preocupação, de forma que não viu que vinha sendo seguido por um trio de estrangeiros desde que saíra de Kamanesh.

Por onde passava, havia muitos agricultores trabalhando e a vários afluentes do Montiguá vinham para ali da região de Hillside, tornando aquele vale a leste de Kamanesh um ótimo campo para o cultivo de arroz. Ao longe, finalmente avistou as construções de uma pequena vila, Posto de Arroz.

Ali o trio encontrou a oportunidade que esperava. Ninguém estava à vista naquele trecho.

— Monge Yaren! — um deles chamou. Era um sujeito forte, barbudo, sujo, desleixado.

Yaren parou e olhou para trás. De cara, não gostou nada do que viu. Eram três homens muito mal encarados. Como sempre, Yaren reagiu com um largo e sincero sorriso de boas vindas.

— Sim, em que posso ajudá-los?

O segundo homem era baixo, magro e tinha a boca torta e queixo encolhido. Ele sorriu de volta, seu sorriso era de pura malícia exibindo dentes tortos e amarelados.

— Nós, nós.. é... só queremos sua benção, santo monge!

— Isso não posso fazer, pois quem abençoa de verdade é Deus.

Nisto eles se aproximavam, mais e mais. O terceiro tinha o rosto quadrado e cara fechada. Era um estrangeiro. Via-se pelas roupas e tipo de penteado que usava. Yaren já havia tratado de refugiados de inúmeros reinos e reconheceu-o como sendo um Yrquoniano. Era o mais distante dos reinos conquistados pelo antigo Império Lacorês. Via-se um enorme cabo de espada por cima de seu ombro esquerdo. Yaren não pode deixar de notar que os outros dois tinham espadas presas às bainhas.

Yaren ergueu os braços para acolhê-los com uma benção. Sentiu que talvez fossem hostis, talvez bandidos, mas ele nem tinha nenhum dinheiro para lhes dar. O que havia falado primeiro ficou muito incomodado com aquela recepção calorosa. O que logo se converteu em irritação. Sacou sua espada e caminhou resoluto em direção ao monge.

— Quer que eu abençoe sua lâmina? Se seu propósito for enfrentar seres maléficos como mortos-vivos e espectros, estou certo de que uma bênção assim pode vir a calhar.

— Ora cale-se, seu mongezinho de merda! A única coisa que queremos mesmo é levar sua cabeça e pegar o nosso prêmio.

Yaren gelou por um instante, seu coração acelerou. Mas logo relaxou sob pensamento reconfortante. "É minha hora. Vou me encontrar com o criador. Melhor seguir para o Caminho sorrindo e alegre, do que chorando em desespero".

— Espera, Zak, deixa eu estripá-lo primeiro. Depois você corta a cabeça. — disse o baixinho e feioso deixando escapar também umas risadinhas cruéis.

O grandalhão sacou uma enorme espada de duas mãos disse com um sotaque carregado — Se vocês dois fizerem merda, vou cortá-los ao meio.

Yaren ficou quieto, fechou os olhos e colocou-se em oração. "Deus, que seja feita a sua vontade. Se ainda houver trabalho para mim aqui, envie ajuda. Se não, que me envie os espíritos protetores para receber minha alma".

— Nada de estripar, Mollon, fique aí que eu vou fazer um trabalho limpo.

Zak mirou a espada no pescoço de Yaren. Pretendia decepá-lo com um único golpe. Tinha uma lâmina bem afiada e força suficiente para tal.

"Deus misericordioso, que minha morte seja rápida".

A prece de Yaren estava pronta para ser atendida quando Zak levou a mão à garganta ensanguentada. Uma flecha atravessou o pescoço e ele tombou aos pés de Yaren para morrer.

Mollon e o Yrquoniano se viraram para ver um homem sacando outra flecha e preparando seu arco de caça para mais um disparo. Mollon correu para fora da estrada a fim de embrenhar-se nas plantações.

Yaren abriu os olhos e reconheceu Hégio Greyhill com seu arco a uma distância de cerca de cinquenta metros.

O Yrquoniano avançou contra o arqueiro berrando de maneira selvagem e correndo com tudo que tinha. Aquela visão chegou a deixar Hégio tenso por uns instantes. Sua mão tremeu, mas respirou fundo, e mudou a mira. Queria ter o mínimo risco de errar. Então, quando o oponente já estava a apenas quinze metros disparou contra seu abdômen. Hégio soube que tomou a decisão acertada em aguardar. Talvez tivesse errado se disparasse antes. A flecha penetrou na barriga e o grandalhão soltou um urro.

Hégio arregalou os olhos e não acreditou quando ele continuou correndo em sua direção. Um monte de besteiras passou em sua cabeça. Seria um morto-vivo? Feiticeiro?

Flecha ou espada? Precisava decidir. Largou o arco e sacou a espada a tempo de defender-se do golpe pesado do Yrquoniano. O som das espadas colidindo ressoou pela planície. O estrangeiro, furioso, brandia a espada contra Greyhill que agora via a morte de perto. Defendeu três vezes, mas sabia que se não fizesse algo, um golpe iria ceifar sua vida.

Um blefe. Olhou para trás do oponente e disse — Agora, Yaren!

O Yrquoniano hesitou, não atacou e deu uma olhadela para trás. Hégio saltou para cima dele com tudo e enterrou a espada em seu ombro. O contragolpe do grandalhão foi ineficiente, mas tirou sangue de Hégio.

— Merda! — o guia levou a mão ao braço cortado e que ardeu ao derramar sangue.

O Yrquoniano cambaleou e caiu com a espada de Hégio cravada no ombro.

Só então Yaren veio ao encontro de Hégio.

— Deus o abençoe! Parece que ainda há trabalho para mim aqui entre os vivos.

— Deus abençoe meu arco, minha espada e sua bunda sortuda, monge.

O estrangeiro caído ainda gemeu. Hégio sorriu. Pisou na flecha empurrando-a de lado.

— Quem contratou vocês!

O homem gemeu.

— Não faça isso, Deus...

— Ora, cale-se monge! Já falei mil vezes que não creio em merda de deus nenhum.

— Fale, desgraçado e vou te dar uma morte rápida. — Então torceu a espada que estava cravada nele.

Yaren ficou quieto, absorto em orações.

— Fale, seu monte de merda Yrquoniana! Quem contratou vocês!

— Foi o.. paa, padre.

— Padre? Que padre?

— Não sei o nome... do filho da...

— Foi DeGrossi, não foi?

— Sim.

Hégio cravou uma faca no coração e ele morreu em instantes.

— E o outro? — indagou Yaren.

— Não passa de um covarde! — Hégio gritou para que ele ouvisse. Mas depois falou baixo com Yaren.

— Mas é bom ficarmos de olho. Agora a recompensa não é mais apenas um terço. A tentação poderá lhe conferir alguma coragem.

— Como é?

— Será que tenho que explicar tudo a você, seu miolo mole? Eles iam dividir a recompensa pela sua cabeça em três partes. Agora que dois estão mortos...

— Ah sim, entendi. E obrigado por me salvar.

— Não me agradeça, agradeça à Capitã. E por falar em agradecimentos, você pode curar meu braço, monge?

Yaren sorriu. — Com prazer.

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