Encontro e despedida
Era tarde da noite e estava tudo muito quieto no mosteiro dos Naomir, exceto por um visitante que insistia em ter com Yaren. O jovem monge queria que Will fosse embora. Disse que não era hora de ninguém entrar lá. Will ameaçou dar uma surra nele levantando-o no alto pelas golas da indumentária. O jovem monge, assustado, levou Will atá o pátio dos fundos, nos estábulos, onde Yaren dividia espaço com animais de carga e alguns cavalos.
Yaren pode ouví-los se aproximando, uma vez que ainda não havia pegado no sono.
— Olá rapaz — Will acenou — seu bilhete chegou até nós na academia.
— Ah, sim. Não esperava que alguém viesse aqui por causa disso, ao menos não tão rápido.
— Pois, sim, meu nome é Will Crafith, sou um dos mestres da Academia — e estendeu a mão para cumprimentá-lo.
O monge que conduziu Will resmungou — Ótimo! Já estão se falando. Vou aguardar ali, mas não demorem. Não quero ficar aqui fora muito tempo, está esfriando.
— Obrigado, irmão. — Yaren agradeceu. E de fato, o clérigo estava certo, estava esfriando e muito. O inverno poderia estar se adiantando. Talvez em alguns dias, pudesse até mesmo nevar.
— Posso ajudá-lo, Mestre Crafith?
— Sim, já ouvi muito a seu respeito. Na minha opinião, o que fizeram com você foi injusto. Não cabe a alguém como você dormir assim com os animais.
— Ora — Yaren riu — sinceramente: há momentos que prefiro a companhia deles.
Will riu também, foi bom para quebrar o gelo, uma vez que Will parecia muito tenso e sério.
— Como eu dizia, não sei bem o que está fazendo aqui... Mas poderia prestar um serviço maior à sua cidade e ao povo de Kamanesh se vier comigo. Estou preparando uma expedição e partirei no final desta madrugada.
— Mesmo?
— Já deve imaginar para onde. — e diminuiu o tom de voz — Não vou falar nisso aqui, quanto menos pessoas souberem disto, melhor. Acho que será uma ótima oportunidade para você pagar sua dívida para com a Capitã, afinal, ela o salvou de uma morte horrível nas mãos daqueles fanáticos lacoreses.
— De certo. Compreendo. Eu não sou nenhum guerreiro...
— Não, mas sei que é muito versado nos Sagrados Ofícios. Precisaremos de fortes bênçãos divinas se quisermos ter sucesso em nossa empreitada. E então?
— É claro que irei. Estava certo que Deus me enviaria um sinal logo e ele me coloca onde devo estar. Penso que poderei ser útil nessa jornada, pois sou seu instrumento. Além do mais, o meu destino está cruzado com o da Capitã, posso sentir isso.
— Então pegue suas coisas e vamos.
Yaren riu e deu dois passos para a frente. — Vamos, já estou com tudo que tenho aqui.
A dupla se aproximou do clérigo.
— Ah, já não era tempo — o monge esfregava as mãos e soprava, seu hálito tornava-se visível devido ao frio.
Seguiram rapidamente até a saída. Yaren despediu-se do irmão, pediu desculpas, mais de uma vez pelo incômodo e solicitou que ele agradecesse muito ao irmão Teol por tê-lo recebido.
— Que Leivisa os ilumine! — recomendou o clérigo.
Will ofereceu uma carona a Yaren em sua montaria.
— Vamos beber alguma coisa quente para espantar o frio. Eu estou agitado demais para dormir.
Em pouco tempo, chegaram ao Gigante Hilário. Era comum que a taberna e restaurante funcionasse noite adentro. Havia música no lugar, fumaça e cheiro de bebida e comida misturados. Will entrou e procurou por um lugar nos cantos, longe da agitação e de olhares curiosos.
— Uma jarra de vinho quente com especiarias, pães e um pedaço de carne — Will pediu à senhora que veio serví-los.
Yaren observou Will por alguns instantes. Ele estava muito inquieto. Tamborilava os dedos na mesa e seu rosto tremia um pouco, em tiques de nervosismo. Era um homem de meia idade, de cabelos grisalhos, mas sua expressão pesada e olheiras pareciam acrescentar mais uns bons dez anos de idade.
— Você e a Capitã são amigos? — Yaren indagou.
— Pode apostar, mais que isso.
Yaren erguem as sobrancelhas, surpreso.
— Não, não é nada assim. Na verdade, somos parentes, mas ninguém sabe disso. É uma espécie de segredo, mas sinto que posso confiar em você, rapaz.
— Obrigado por isso.
— Ela é como uma filha para mim, mas temo que as chances dela sejam poucas, a esta altura.
Tinham que falar um pouco alto, porque um grupo de pessoas embriagadas cantava numa mesa próxima, totalmente desafinados.
— Sabe onde ela está?
— Infelizmente, sim. Num lugar terrível: a necrópole. — Will coçava os cabelos nervosamente.
— Sim, já ouvi falar.
A bebida e a comida chegaram. Will gostava muito do serviço ali, sempre rápido, se soubesse as coisas certas para pedir.
— Imagino que partiremos cedo e acompanhados de uma grande tropa.
Will deu uma risada de desgosto — Nada disso! O maldito Galdrik recusou ajudá-la. Com toda essa confusão, foi feito capitão dos Blackwings, mas só por isso já sei que foi uma escolha ruim. Ele alegou que há grandes ameaças pairando sobre o reino, e que não podiam dispor de homens para uma missão tão arriscada.
Yaren se espantou — Iremos só nós dois?
— Ora, não! Isso seria suicídio. Eu dei meu jeito. Como mestre na Academia, tenho também minhas possibilidades. Escalei um grupo de alunos do sétimo ciclo. Não obriguei ninguém a vir, mas todos eles precisam de experiência de campo antes de terminarem os estudos. Um resgate bem sucedido poderia ser para eles a porta de entrada para a guarda real, muitos deles almejam a honra deste serviço.
— Sim, já ouvi dizer que seis meses antes da formatura eles são enviados para trabalhos perigosos em todo o reino.
— Amanhã os conhecerá. É um grupo pequeno, mas muito capaz e promissor.
Comeram e beberam um pouco mais. Yaren gostou muito de Will, e falou um pouco sobre sua vida. Falou também sobre as andanças com a Capitã e sobre Hégio Greyhill.
— Greyhill? Esse nome não me é estranho.
— Hégio me contou que seu avô vivia no antigo Condado de MontGrey.
— Ah sim, isto mesmo. É curioso, pois a necrópole fica justamente por lá.
— Como é exatamente essa necrópole?
— Eu peguei alguns mapas na academia, deixe eu lhe mostrar.
— Não parece grande, menor que Situr, talvez do tamanho de Tanir.
— Sim, na superfície não passa de uma vila, mas não se engane. O lugar é enorme. Há uma grande rede de túneis e catacumbas. Eu já estive lá, no passado, como prisioneiro. Acho que teria morrido lá, se eu não tivesse sido transportado para uma outra base dos necromantes próxima a Xilos. Durante o meu transporte fui salvo pelos membros da antiga rebelião.
— Então o senhor conheceu os rebeldes?
— Não só isso, me tornei um deles. Foram anos duro de luta contra um regime opressor que no final acabou trazendo ruína para toda Lacoresh, e como dizem, agora, para todo o mundo.
Falar daqueles tempos trouxe algumas memórias ruins à mente de Will. Yaren pode perceber algo mudar em sua expressão.
— Foram tempos difíceis. — não era uma pergunta.
— Sim. Eu quase morri em mais de uma ocasião e vi dezenas de companheiros perecerem. E outros tantos sucumbirem às trevas, fosse por ambição, ou porque foram torturados até cederem.
— Mas o senhor resistiu e superou tais provações.
— Acho que, em muitas situações, tive sorte. O que me faz pensar no que encontraremos naquele lugar maldito. Os alunos que virão conosco, descobriram o covil de um necromante na floresta de Shind. Trouxeram cartas que mostram que ele se correspondia com outros necromantes remanescentes do regime de Maurícius e que continuam agindo nas trevas. O que esta correspondência revelou é que há um outro necromante na Necrópole que eles temem. Um inimigo. Alguém que eles consideram louco. E que parece ser muito poderoso.
— É possível encontrar luz escondida nas trevas. Eu já consegui encontrar... Só gostaria de conseguir fazer isso sempre, pois já falhei também, muitas vezes.
Então a comida e a bebida chegaram ao seu fim. Will se levantou satisfeito, pagou a conta e deu uma boa gorjeta.
— Venha, vamos descansar um pouco. Amanhã bem cedo encontraremos os demais e partiremos.
Foram para a casa do mestre. Will mostrou a Yaren o quarto onde Ailynn costumava dormir. O monge achou a cama bastante confortável. Will passou na cozinha e encontrou a velha Dora cochilando em sua cadeira de balanço. Ele passou as mãos com ternura nos cabelos ralos e encrespados da senhora de idade.
— Kiorina, minha minina? Seu Gálius? — ela disse ao despertar confusa. Will já escutara muito a respeito dos antigos patrões de Dora.
— Ah, Seu Will. Eu cunchulei... Mi disculpi.
— Não dona Dora, não tem do que se desculpar. Antes de se recolher, por favor, venha aqui comigo um instante.
— Que quiá, Seu Will?
Ele a conduziu até seu pequeno escritório. Tirou de um pequeno armário sobre a mesa dois baús.
— Dora, preste atenção. Eu vou fazer uma viagem perigosa. Se não voltar em...
— Num fala um troçu dessi não, Seu Will!
— Se eu não voltar — ele retomou com firmeza, segurando os braços da criada e olhando dentro de seus olhos esfumaçados pela catarata. — Quero que fique com o que está nesse baú pequeno. São as minhas economias. Poderá viver bem com isso, por muitos anos.
Os olhos delas se encheram de lágrimas — Num fala assim não, Seu Will!
— Falo sim. Se encontrar forças, pode ir até Lacoresh e contratar um navio para levá-la até Tleos. Para ver sua patroa, Kiorina. A senhora sempre fala nela. Eu tenho certeza que ficará muito feliz em revê-la.
Dora limpou uma lágrima, antes que escorresse.
— Mas antes — abriu o outro baú, um pouco maior — esses papéis aqui. Preciso que os leve à academia e os entregue ao mestre Dornall. Os papéis são importantes. Eu vinha os guardando para Ailynn. Ficarão bem em suas mãos.
Dora deu um abraço em Will. — Num fale assim, meu fio. Cê vai voltá, tenho certeza.
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