Assassinado!

 A sala ficava no segundo andar, no final de um longo corredor. O local era movimentado e havia jovens e adultos na condição de alunos circulando. Eduard observou que a cor das golas dos uniformes indicava que os alunos pertenciam a anos letivos diferentes. Entraram em silêncio e foram se acomodando nas carteiras duplas. Eram de madeira escura e desgastada e não havia muitas delas. Cada qual foi procurando seu lugar de costume e se assentando. Eduard ficou parado sem saber onde se sentar. Três pares de janelas de madeira com painéis de vidro esmaltado permitiam entrada de luz suficiente para uma boa leitura.

– Muito bem, classe, abram na página 32 de Oração e Devoção. – disse com voz sonolenta o velho e gordo Monge Naomir. Antes de se recostar para cochilar, apertou os olhos e viu Eduard olhando-o com seus grandes olhos curiosos.

– Ah, um aluno novo?

– Sim, senhor, sou Eduard Redwall.

O velho monge usava um manto bege bastante esticado na região da barriga. Os cabelos brancos já falhavam e a pele era rosada, tinha um enorme papo sobre o queixo e os olhos cansados, de pálpebras caídas. Ele examinou Eduard por alguns instantes, como se querendo reconhecer a fisionomia.

– Certo, senhor Redwall. Fique depois da classe para que eu indique os livros que precisa ler. Sente-se com a senhorita Arifa e faça a atividade.

– Atividade, senhor...

– Ah, sim, claro. Meinard, vocês aqui devem me chamar de Mestre Meinard, ou apenas, mestre.

– Sim, mestre, mas a atividade?

– Oh, sim! Ler a oração, meditar sobre seu significado. E... sim, realizar a oração, por quinze vezes, e então, iremos discutir.

Arifa já tinha o livro aberto sobre a mesa e empurrou-o um pouco de lado, sem olhar para Eduard. Ele sentou-se em silêncio, sentindo-se encabulado. Naquele momento, evitava olhar diretamente para ela, mas suas feições já estavam gravadas em sua memória. Ela tinha cabelos louros tendendo ao castanho, muito lisos e presos num coque. Sua pele era branca, mas quando a viu pela primeira vez, seu rosto estava muito vermelho devido ao esforço dos exercícios. Seus olhos pareciam mudar de cor, ora eram castanhos escuros, mas sob iluminação, assumiam uma bela tonalidade cor de mel. Era magra, mas seu corpo já estava mudando para tornar-se uma mulher.

Eduard olhou para trás e notou, que por alguma razão, Mark, Tíghas e vários outros não estavam naquela classe.

Antes que Eduard pudesse colocar os olhos sobre o livro para iniciar a leitura, assustou-se com um ronco que veio da frente. Arifa achou graça no sobressalto do novato, mas segurou o riso. Ele inclinou a cabeça e sussurrou.

– É sempre assim? Nós lemos e ele dorme?

Arifa olhou-o de soslaio e acenou positivamente. Começou a ler a oração e sentiu-se frustrada. Então resolveu falar – Essa aula é um tédio, a pior de todas. O Mestre é até engraçado quando não está exausto. Está trabalhando como professor substituto.

– Ah, entendi.

– Ele é o proprietário de uma taverna no centro. O professor titular dessa classe é muito exigente e difícil, mas está muito mal.

– Por que Mark, e outros, não estão aqui?

– Estão frequentando o nivelamento. Leitura, escrita, aritmética, essas coisas.

– Eles não frequentaram escola, antes daqui então?

– Isso, mas ainda assim, lhes é dada uma chance.

Meinard continuava a roncar e também babava recostado em sua mesa na frente da classe. Outros alunos começaram a conversar e um zum-zum-zum preencheu a sala.

Eduard foi ficando mais à vontade com Arifa e estava animado com a conversa. Mas então, fez uma pergunta sobre a família da moça e ela ficou rígida e respondeu.

– Acho melhor estudarmos a lição. Quando o mestre acordar é melhor que estejamos prontos. – colocou os olhos sobre o livro e calou-se. Ficou claro para Eduard que família era um assunto sensível para ela. O mestre eventualmente acordou, tomou a lição e até contou umas duas anedotas. Meinard achava os alunos e mestres da academia sérios demais, e sentia um pouco de pena deles.

A aula acabou, e vieram outras duas depois. História e fundamentos arcanos, mas os alunos não fariam magia de verdade até que estivessem no segundo ciclo. Eduard ficou fascinado com a aula de introdução à magia e o velho Mestre Ivrantz. O conceito de que havia magia, ou energia manótica, em tudo e o mago era aquele capaz de primeiro ver, sentir e finalmente comandar tais energias finalmente fez sentido. Por que haviam dezenas de subtipos energéticos e seus padrões, entrelaçados entre si em tramas complexas. Compreendê-las e manipulá-las através de várias técnicas de ativação levaria tempo. Em dado momento, ficou com medo que um mago como o Mestre Ivrantz pudesse ver sua magia de camuflagem e desmascará-lo. Depois pensou que Kandel era muito criterioso e não o teria enviado para ser facilmente descoberto.

A última aula do dia era esperada por muitos. Falavam do Mestre Crafith nos intervalos e sobre o Kishar. Esta aula não acontecia em salas, mas num pátio pavimentado, nos fundos da academia. O Mestre aguardava a chegada da classe numa pose de meditação, de olhos fechados. Era um homem maduro, grisalho, com cabelos longos e barba farta. Era forte. Seus músculos pareciam ter sido esculpidos por um artista. Quando os alunos se aproximaram, ele abriu os olhos, cumprimentou-os levando o punho cerrado ao ombro e fazendo uma suave e curta vênia. Eduard reconheceu aquele tipo de cumprimento. Seu avô, gostava de contar sobre suas visitas aos silfos de Shind. Ele costumava gesticular e representar certos movimentos.

Eduard sentiu um frio na barriga, já se preparava para mais uma conversa do tipo, você é novato, meu nome é Redwall, mas foi ignorado pelo mestre que simplesmente disse.

– Farei uma demonstração. – E começou a movimentar o corpo naquela dança que ao mesmo tempo era uma arte marcial. Mexia pernas e braços com movimentos vigorosos e dava pequenos saltos. As mãos e os dedos também dançavam, a cada postura uma nova inflexão. E no final dos movimentos emitiu um sonoro "Rá" e um vento quente passou por entre os alunos agitando seus cabelos por um instante.

As demonstrações do mestre sempre deixavam a classe empolgada.

– Dentre os poucos de vocês que conseguirão se graduar nesta academia, saibam que uma proporção ainda menor terá condições de desenvolver o Kishar em toda sua extensão. Não obstante, a prática do Kishar básico é a primeira e mais fácil porta de entrada para a prática de outras disciplinas do Jii. A prática de hoje será de acúmulo e liberação de energia. Eu vou fazer a sequência de movimentos lentamente e vocês precisarão de máxima atenção para a respiração correta. A manipulação de energias no Kishar advém do correto respirar e da correta atitude mental. Vocês tem que se esquecer de quaisquer problemas, medos, preocupações enquanto estiverem na prática.

Eduard imitou os movimentos, mas fazer o que o mestre pedia parecia impossível. Havia muito em sua mente. Suas inseguranças quanto a assumir o trono, o fato de estar se escondendo. O que aconteceria se fosse apanhado? Poderia isto ser motivo para o conselho encontrar outra pessoa para assumir o trono?

Depois de praticarem por meia hora, um auxiliar do mestre trouxe algumas velas acesas e colocou-as sobre o balcão de pedra, em um dos cantos do pátio. Demonstrou uma sequência simples que terminava com um soco. Seu punho ficou à uma pequena distância da vela, e sem tocá-la, veio um sopro que a apagou. Chamou os alunos, um por um para tentarem. Apenas quatro conseguiram resultados, entre eles, Arifa e Tarpin. Quando Ive conseguiu fazer a chama da vela vibrar, virou-se para Eduard e deu um sorrisinho em provocação. Já Arifa, foi a única a conseguir apagar a vela.

O sino da torre da academia tocou, indicando que era o final de mais um dia de estudos.

Eduard já ia saindo com os demais quando o Mestre Crafith o chamou. – Ei, Redwall.

Ele hesitou, pois tinha de retornar ao castelo sem mais demoras.

– Escute rapaz, pude perceber que sua mente está muito agitada. Não vai conseguir avançar se continuar assim.

Eduard ficou cabisbaixo. – Eu sei...

– Como você perdeu as primeiras aulas, me procure amanhã, no intervalo após o almoço. Vou lhe passar alguns exercícios.

– Muito obrigado, Mestre Crafith. – ele disse com um misto de gratidão e admiração.

– É apenas minha obrigação.

***

Eduard andou ligeiro e logo estava de volta em Kamanesh. Estava apreensivo. Na medida em que caminhava, passou a sentir-se melhor. Seu primeiro dia na academia havia sido ótimo. Mas seu dia de estudos ainda não havia acabado. Foi direto ao sobrado do velho Lorcas. Entrou pelo portão lateral que dava para o quintal. O local já estava escuro, mas conhecia o lugar muito bem. Apanhou uma fruta do pé para tapear a fome e foi até o cômodo dos fundos, perto do banheiro. Ali encontrou a caixa contendo as poções que revertiam o feitiço de disfarce. A roupa que vestiu, logo cedo, também estava ali. Depois cruzou o quintal e entrou na casa de Lorcas pela porta dos fundos. Toda sua casa fedia a mofo, em especial, o salão onde ficava sua biblioteca. Foi lá que reencontrou o velho Lorcas, sentado atrás de sua imensa mesa de madeira, cheia de documentos e livros.

Sua voz era rouca e baixa – Boa noite, jovem príncipe. E então, como foi?

– Foi incrível, Sr. Lorcas! Eu derrotei o Tarpin...

O velho ergueu sua mão magra, de dedos nodosos e suja de tinta. – Poupe-me dos detalhes. – Venha aqui, isto é o que tem para estudar hoje. – Indicou um livro sobre a mesa. Lorcas era muito idoso, desdentado, seu rosto era cheio de rugas e manchado, olhos cansados, olheiras escuras e possuía um pequeno tufo de cabelos brancos no alto da testa que parecia uma bolota de algodão transparente, pois não impedia de ver diretamente a curva de sua careca.

Edwain chegou perto de Lorcas, e fez uma careta. O velho fedia, mas muita coisa também fedia em Kamanesh. Edwain pegou o livro e foi ler numa poltrona no canto do salão, perto da lareira. Tirou os calçados e colocou os pés perto do fogo. Estavam latejando. Lembrou-se da época em que Lorcas ainda ia ao castelo ver seu avô. Olhou para ele, salvo a dificuldade de caminhar que agora tinha, parecia o mesmo. Nunca teve coragem de perguntar, mas achava que ele devia ter uns cem anos. Lorcas havia trabalhado com os papéis de Kamanesh desde a época de seu bisavô, o Duque Edwain, de quem herdara o nome. Lorcas tinha inteira confiança do Rei Dwain, de quem era amigo, e ainda fazia trabalhos para o reino. Há dois anos, sua dificuldade de locomoção o confinou em sua casa, mas o Rei, vinha visitá-lo algumas vezes por ano e Edwain sempre vinha, mas ficava a maior parte do tempo no quintal, brincando. Ao invés de ler, Edwain ficou pensando naquilo e sentindo o calor da lareira aliviar as dores nos pés até que em instantes pegou no sono.

Lorcas viu que o rapaz adormecera. Tamborilou os dedos sobre a mesa e deixou um pouco de tempo passar. Finalmente, puxou um cordão preso à parede e com isso, fez soar em outro cômodo uma sineta. O criado surgiu vindo da porta que dava para a frente da casa. O velho o chamou com um gesto para perto de si.

– Faça-me o favor de derramar um pouco daquela água sobre a cabeça daquele preguiçoso.

O criado buscou a jarra e antes de executar o pedido virou-se para Lorcas e disse – Mas este é o príncipe...

Lorcas irritou-se subindo parte do corpo sobre a mesa – Eu sei bem quem ele é. Apenas faça o que mandei!

O criado obedeceu e Edwain acordou num sobressalto.

– Ora, não disse para dormir e sim para estudar!

Edwain voltou-se para Lorcas assustado e o criado deu saiu de fininho com medo de ser repreendido pelo príncipe.

– Oh, desculpe senhor. – Ele endireitou-se e desta vez leu um trecho do livro indicado. Lia as palavras, mas não conseguia se concentrar nelas. Sua mente divagava. Pegou-se pensando em sua colega de classe, Arifa. Poucas mulheres saiam de seus papéis ligados ao lar para fazer algo diferente de suas vidas. Lembrou-se então de sua mãe. Ela logo irá querer saber onde ele esteve. Kandel disse que ela ficaria surpresa, mas se convenceria dos benefícios dele estudar com o Sr. Lorcas. Assim, Edwain virava as páginas, lendo as palavras, mas sem ter ideia do seu sentido.

Os sinos da igreja matriz soaram chamando os fiéis para o culto noturno, ou para as orações a serem feitas onde quer que as pessoas estivessem. Edwain calçou seus sapatos e deixou o livro sobre a mesa de Lorcas. Desta vez, era o velho que estava cochilando com a cabeça pendendo para trás, roncando baixinho.

"Como alguém pode dormir desse jeito?" Foi até a porta e pensou "Nos vemos amanhã..."

***

Edwain retornou ao castelo com passos apertados. Seu estômago roncava. Um dos sentinelas o reconheceu. Edwain percebeu que ele tinha o semblante pesado, mas deu pouca atenção àquilo. Nos corredores, viu que havia uma movimentação atípica. Muitos cavaleiros caminhavam para lá e para cá e membros dos conselhos pareciam circular em maior número que o de costume.

– Alteza, aí está! – disse um dos cavaleiros.

E que coincidência, era o irmão de Mark.

– Zeff! – Edwain queria lhe perguntar sobre a academia e sobre seu irmão, mas se deu conta que não poderia.

– Fico contente que se lembre de meu nome, Alteza. Venha comigo, deve ficar em seus aposentos.

– Mas o que houve?

– Ainda não localizamos o assassino, então é melhor que o senhor seja conduzido a um lugar seguro.

– Assassino?

O Cavaleiro Zéfiro olhou-o sem entender. – Como pode não saber disto?

– Eu estava fora, acabei de chegar.

Zeff ergueu as sobrancelhas. – O Cavaleiro Nathannis foi assassinado. Seu corpo foi encontrado nesta manhã.

O coração de Edwain disparou – Nathannis? Assassinado? Mas como?  

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top