A Linhagem de Lacor
Ailynn seguiu junto com a comitiva de Lacoresh até as proximidades do palácio. O príncipe era um velho magro, mas de aparência saudável. Seus olhos azuis claros cristalinos brilhavam sob o sol daquela tarde. Apesar de não ser militar, havia algo em seu traje negro, formal e discreto, e em sua postura que davam a impressão de ser um general passando em inspeção à sua tropa.
— Quem está no comando das defesas, Jarden de Jenesh? — indagou Kain.
— Jarden está morto, assim como Jon Tarpin e seu séquito de seguidores. — respondeu Ailynn.
— Todos mortos?
— Foram possuídos por demônios. Tudo ocorreu hoje cedo.
— E quem ficou com o comando?
— Eu mesma, Alteza, por ordens do Rei Edwain.
Kain deixou escapar uma pontada de sorriso nos lábios. — Muito bem, isso facilitará as coisas.
Então ele chamou seus principais comandantes, apresentou-os à Capitã e os instruiu para que seguissem as suas ordens para defender a cidade. Ela sentiu um peso enorme em seus ombros e vontade de desaparecer. Lutar contra demônios era uma coisa, comandar todo o efetivo de Kamanesh somado àquele enorme contingente de lacoreses, parecia uma tarefa além de suas capacidades. O que Kandel faria? Ela pensou. Mas antes que seus pensamentos fossem longe demais, Kain voltou a falar com ela.
— Nos separamos aqui. Você precisa organizar as defesas e eu preciso discutir assuntos com o jovem Rei Edwain.
A esta altura, os homens de Whiteleaf já deveriam saber que chegou ajuda vinda de Lacoresh. Será que seguiriam com seu ímpeto de atacar a cidade? Agora as chances não estavam pendendo tanto para o lado deles, isso era certo.
Kain seguia pela entrada do palácio quando uma jovem, forte no jii, cruzou seu caminho. Ela ainda vinha adiante, há uns dez passos de distância. Josselyn o olhou, sentindo o vazio do jii ao redor do príncipe e algo torceu em seu estômago. Kain percebeu que ela estava impressionada e assustada, então, desativou o poder de seu bracelete escondido sob a manga de seu traje e de suas luvas negras. As suas mentes se tocaram.
"Por favor, não me tema. Não trago nenhuma ameaça, apenas ajuda."
"Príncipe Kain, o último de Tisamir?"
"Não sou o último tisamirense, isso é um exagero. Ouvi dizer que teve uma participação importante no resgate da Capitã. Agradeço por isso."
A menção daquilo trouxe imagens e lembranças da incursão à necrópole que Josselyn vinha lutando para manter fora de sua mente, sem grande sucesso. Como ambos haviam estabelecido um elo mental de comunicação, Kain captou algumas imagens. Viu um grande demônio, a morte de Will Crafith e também, o misterioso encapuzado. As reverberações da fala deste, tiraram o sangue do rosto corado de Kain. Ele desfez o elo, reativando o dragão negro. Esperava que ela não tivesse captado sinais de sua reação.
Ele sorriu para ela, se recompondo quando passaram um ao lado do outro. Ela seguiu seu caminho pensando. "Então, o príncipe Kain conhece aquele encapuzado. O que foi aquele sentimento? Raiva? Vergonha? Ele escondeu detalhes de mim, por que será?"
Kain encontrou Edwain em um pequeno salão aconchegante e bem decorado com motivos militares, armas, peças de armaduras e pinturas com cenas de batalhas. Havia um grande painel que retratava uma cena da primeira guerra contra os bestiais, ocorrida há mais de cinquenta anos, quando o avô de Edwain ainda era jovem. Ele estava retratado de maneira imponente, com lança e escudo, montado num enorme cavalo cinzento. Certa vez, Edwain perguntara ao avô se aquela batalha havia acontecido daquela maneira, o avô riu e negou. "Uma coisa é viver a história, outra coisa é como os homens retratam a história. Eu diria que conta-se mais estórias do que se relata a história".
Edwain estava com um blusão folgado e dava para ver as faixas dos curativos. Estava com uma aparência até boa para alguém que sofrera tais ferimentos naquela manhã.
— Dornall, que bom vê-lo.
O velho assentiu e comunicou-se mentalmente com Kain. "Parece que as ondas do destino deram uma solução à questão de Tarpin, mesmo antes de que precisássemos agir, não é mesmo, Shaik?"
"Um problema a menos, se bem que deixei Lacoresh para trás se sustentando por um fio."
"Seu mensageiro pode bem estar morto numa hora destas."
"Seria uma pena perdê-lo. Já sofremos muitas perdas e parece que muitas mais ainda estão por vir. Fico me perguntando se não deveríamos ter partido de Tisamir, quando a oportunidade se apresentou."
"Eu estou bem, aqui. Estou certo que ficar para ajudar foi a coisa certa a fazer, meu amigo".
— Olá, príncipe Kain — a voz de Edwain não soou forte. Toda a conversa mental entre Kain e Dornall ocorreu em poucos instantes, devido à velocidade da comunicação direta entre mentalistas experientes.
— Rei Edwain — o príncipe fez uma mesura. — Trouxe tropas para garantir que Kamanesh não caia desta vez.
— Eu devo agradecer a sua ajuda? Ou entregar Kamanesh em suas mãos depois de hoje? — Edwain retrucou desconfiado.
— Ainda me interpreta mal, mas antes assim do que ser confiante demais e ser vítima de uma traição, não é mesmo?
Edwain esboçou um sorriso. Não devia confiar demais nele, mas certamente simpatizava com o príncipe. — Então, espero que não me traia.
— Talvez, ainda hoje, eu traia suas expectativas. O fato é que não vim apenas trazer ajuda militar, trouxe também algumas más notícias.
Edwain olhou-o, preocupado.
Kain prosseguiu. — A Rainha Hana faleceu. Ela era... Ah, mais velha do que aparentava. Uma doença a visitou e ela não pode resistir.
— Sinto muito pelo falecimento de sua esposa...
— Deve estar se perguntando agora se isto faz de mim um rei. Bem, sim e não. Sim, eu poderia me aproveitar disso e ser coroado rei, ninguém iria se opor a isto. Mas não, isso não é o que eu quero fazer. Já terminei meu trabalho em Lacoresh. Fiz o melhor que pude, e ainda assim, o futuro do reino está por um fio.
— O que quer dizer?
— Eu não trouxe apenas militares comigo. Trouxe documentos, o arcebispo da Real Santa Igreja, e homens de lei para garantir a passagem de poder.
— Passagem de poder? — Edwain não conseguia adivinhar onde aquela conversa iria chegar, mas Dornall já havia captado.
— As linhas de sucessão o indicam como heredeiro de Lacoresh, Rei Dwain. Vim para que assinemos os papéis de reunificação dos reinos. Você será o primeiro rei, depois Corélius IV, a restaurar a velha linhagem do Rei Lacor. A linhagem que foi quebrada com a usurpação de Maurícius Greysnow. Veja.
Kain entregou um pergaminho com desenhos de árvores familiares a Edwain.
— Aqui está — ele indicou uma linha no confuso documento — o tataravô de seu avô, Dwain, era o filho mais novo do rei Corélius I.
O fato já fora mencionado para Edwain, mas ele nunca dera muita importância. Não parecia fazer qualquer diferença saber que um ancestral distante pertencera a linhagem de Lacor.
— Já a linhagem dos Greysnow, só possui proximidade por parte materna. Muitas vezes a sucessão, não leva a linhagem em primeiro lugar, isso é fato. Seu avô, poderia ter sido o rei de Lacoresh, mas na época não havia cenário político para tal. Foi em sua fase reclusa, se é que me entende.
Aqueles fatos, toda aquela conversa, começava a pesar sobre os ombros de Edwain. Assumir o trono de Kamanesh já parecia algo grande demais para ele. Agora essa história de assumir Lacoresh?
A cor que restava no rosto de Edwain desapareceu. Seus lábios ficaram sem cor. Ele não sabia o que dizer, e nem mesmo no que pensar.
— Dornall? — Kain virou-se para ele.
— Não é nada. — seu tom foi tranquilizador. — Já vai passar. Venha aqui, Majestade. — O velho o ajudou a ficar de pé. Levou-o até um pequeno sofá. — Deite-se e descanse um pouco. Este dia está sendo muito agitado, não?
Edwain concordou com um aceno. Sentia-se fraco e com medo. Assim que se deitou, Dornall colocou a mão sobre sua testa e induziu o sono.
— Quando ele acordar, já vai estar melhor. E quanto ao Rei Aaron, Shaik? Conseguiremos repelí-lo?
— Penso que sim, mas isso é com a Capitã e os demais defensores. O destino de Lacoresh ficou tempo demais nas mãos de pessoas velhas como nós. Dwain se foi, Hana, Kandel, e outros tantos. Aaron também é um velho. Chegou a hora do destino passar para mãos mais jovens. Precisamos resolver nossas diferenças antes que seja tarde. Os demônios ainda não demonstraram sequer uma pequena fração de seu poder.
— E quando eles chegaram de fato? — Dornall tinha curiosidade a respeito do que Kain pensava sobre aquilo.
— Então é melhor rezar para que seus deuses possam atender às suas preces.
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