1 | A herança

São quase nove da noite quando o último cliente deixa a loja. Estou exausta, necessitando de um banho quente e relaxante, mas ainda tenho muito o que fazer, ainda que o horário de fechamento esteja mais próximo que qualquer coisa, Ruby a dona da loja não está aqui hoje, o que significa que o dia foi mais puxado que qualquer coisa.

Meu último cliente conseguiu a proeza de chegar na loja faltando exatos cinco minutos para o fechamento e me fazer pegar dezenas de peças diferentes — que agora preciso dobrar e guardar — para simplesmente levar a primeira camisa feia que ele experimentou, o que só aumenta a quantidade de trabalho que preciso fazer. Algumas pessoas não parecem ter o menor senso.

Respiro fundo e olho no celular, meu noivo Matthew devia ter me ligado há quase uma hora, mas não foi o que aconteceu. E a preocupação começa a brotar dentro de mim, será que algo aconteceu ou ele teria pegado no sono devido ao cansaço? Matthew tem estado muito cansado nos últimos dias, sua chefe tem dado a ele trabalho demais e isso tem atrapalhado até mesmo a nossa rotina.

Quase uma hora se passa até que eu tenha dobrado e guardado cada peça de roupa, tentei ligar para Matthew, mas o celular cai direto na caixa postal. Tenho uma sensação ruim, como um calor que preenche meu peito e sinto que deveria ir até sua casa ao invés da minha, só para checar se realmente está tudo bem.

Entro no meu carro velho, e dirijo devagar até o prédio localizado no centro da cidade. Paro em frente ao edifício de fachada cinzenta, que apesar de bonito e muito mais caro que o lugar que vivo, já teve seus dias de glória. Desço do meu marea e vou até a entrada, onde o porteiro, já de uma idade avançada, sorri da guarita.

— Boa noite, senhor Finnegan, vim ver o Matthew — Digo, cumprimentando o porteiro.

— Boa noite, Agatha, como está a senhorita? — Ele diz enquanto abre o portão e permite minha entrada.

— Cansada — Revelo o que deve ser obvio, em seguida aceno para ele e sigo até o elevador.

Apesar da fachada cada dia mais decadente, o interior do prédio é bonito, quase luxuoso, o piso laminado creme da entrada chega a brilhar e as paredes são cobertas com papel caro. Chamo o elevador e subo até o vigésimo andar. 

Sequer bato na porta quando chego, enfio a mão na bolsa e caço a chave reserva que Matthew me deu há tanto tempo e quase não uso. Olho para mim mesma no espelho localizado no hall de entrada e quase desejo que Matthew esteja dormindo, minhas pernas doem e estou com aparência acabada de um dia longo de trabalho. Preciso realmente de um banho e uma troca de roupas para ficar no mínimo apresentável.

Deixo minha bolsa em cima do sofá e sigo em direção ao quarto de Matthew, com minha mente tentando me convencer de que ele está apenas dormindo e que nada de mal aconteceu, quamdo em frente a cama tomo consciência do que está havendo e paro de respirar por um momento, minha mente estava certa, mas também estava errada.

Ele está em sua cama, deitado, dormindo feito um bebê. Seu corpo nu brilha suavemente com alguns pontos de suor. Porém, ao seu lado, uma mulher loira de corpo esguio, igualmente nua, tem seu braço sobre ele. As roupas dos dois formam um monte, jogadas no chão, juntamente com uma camisinha usada e nojenta. 

Sinto a dor no meu peito, física e real. As lágrimas banham meu rosto e fecham minha garganta. Não consigo respirar, não consigo falar. Me sinto despedaçar em um milhão de pedaços, quebrada, enganada.

Viro minhas costas, arranco a aliança dourada com uma pedra grande com tanta força que meu dedo dói e fica vermelho, machucado. Deposito o objeto em seu criado e praticamentr corro para fora, livida, chorando, a beira do abismo. Saio do prédio, passo pelo senhor Finnegan, que apenas me encara com sua própria expressão desolada e continuo meu caminho, sem saber exatamente para onde ir.

Caminho por algum tempo, sem rumo, esperando acalmar a cacofonia de sons que habitam em meu peito. Choro, até não haver mais lágrimas para chorar, me desespero até não ter forças para me desesperar, então ando mais, até que cada célula do meu corpo esteja exausta.

Pego meu carro e vou para o muquifo que chamo de casa, tomo um banho e deito minha cabeça no travesseiro sem nem ao menos me dar ao trabalho de comer alguma coisa. A cena aterradora ainda presente em minha mente. Leva algumas horas até que eu consiga pregar os olhos. Ao menos a loja não abre amanhã, então posso dormir até um pouco mais tarde. 

 Estou num sono pesado quando meu telefone toca. Minha vontade é atirar o aparelho para longe. Acertá-lo com toda a força até que o aparelho se despedaçe em dezenas de peças e o som estridente pare de uma vez. Entretanto, não o faço, me permito alimentar de todo o ódio acumulado no meu coração quando atendo, na certeza que se trata de Matthew, sequer olho o número na tela.

— Olha aqui, Mat... — Começo a falar e sou interrompida no mesmo momento. 

— Esse número pertence à senhorita Agatha Fairchild?

Respiro fundo, confusa por um momento, quando percebo a voz velha e grossa, que definitivamente não pertence a Matthew, sinto meu rosto enrubescer.

— Sim, é ela mesmo — respondo envergonhada.

— Senhorita Fairchild, em primeiro lugar quero prestar os devidos pêsames diante da sua perda. Tenho certeza que esse não é um momento fácil para você e sua família.

— Quem está falando? — Pergunto franzindo o cenho.

— Sou o doutor McNamara, advogado do senhor Edmund Fairchild.

Não entendo porque o advogado do meu tio está me ligando a esta hora da manhã, em um sábado ainda por cima, demora algum tempo até que minha ficha caia. 

— O que houve com o tio Edmund? — Pergunto já com lágrimas entaladas na garganta e sinto meu coração bater mais acelerado que antes.

Faz algum tempo que não vejo tio Edmund, apesar de sempre ser um homem recluso, tio Edmund frequentemente chamava para sua casa e passávamos horas jogando xadrez ou qualquer outra coisa, ele era um homem bom. Que não deixou o dinheiro lhe subir a cabeça. Isso, no entanto, foi antes que ele conhecesse Ísis, a mulher o privou de tudo o que pode, seus poucos amigos, família, a cada dia que passava era mais difícil visitar a mansão, chegou um dia que simplesmente desisti — não sem antes ela me dizer o quanto minhas visitas eram inconvenientes é claro.

— Sinto muito ser o portador das notícias ruins, senhorita. Edmund Fairchild sofreu um infarto fulminante e veio a óbito na tarde de ontem. Estou ligando referente a situação da herança de direito da senhorita.

— Herança? — Pergunto, talvez eu ainda esteja sonhando.

— Sim, o senhor Fairchild deixou em testamento para a senhorita, sua casa, com tudo o que há nela. Mas, há uma cláusula na qual a senhorita precisa viver e cuidar da propriedade pelos próximos dois anos, para que tudo venha de fato a lhe pertencer. 

— Eu… Não estou entendendo — esfrego os olhos numa tentativa de afastar o sono.

— A mansão de Edmund Fairchild agora é sua senhorita Agatha Fairchild. Preciso que venha até meu escritório o mais rápido possível para assinar alguns documentos e então posso lhe entregar as chaves. A mudança, no entanto, deve acontecer ao mais tardar na noite de amanhã.

— Certo — apenas concordo sem entender de fato o que isso significa. 

— A mansão de Edmund Fairchild está estimada em cerca de 50 milhões de dólares, senhorita Fairchild. Entende isso certo? A senhorita acaba de se tornar multimilionária.

— Essa não é uma notícia que deveria ser dada tão cedo pela manhã — deixo simplesmente escapar.

— Desculpe senhorita, mas se trata de um assunto de extrema urgência. 

— Certo, eu entendo… Desculpe, estou indo aí. Só me dê meia-hora — digo e desligo o telefone.

Levo meus dedos até meu braço e torço num beliscão dolorido, apenas para ter a certeza de que não estou em um sonho. A dor que passa por minha pele mostra que não, é tudo absolutamente real. Tio Edmund realmente morreu e me deixou uma grande fortuna. 

Tantas perguntas perpassam por minha cabeça, é sabido que tio Edmund não tinha filhos. Então, por que ele não deixou tudo para a esposa? Qual a peça que não está se encaixando nesse quebra-cabeça? A curiosidade me dá forças para levantar e me dirigir até o advogado.

Me visto formalmente com uma camisa branca de botão e uma saia lápis preta. Nos pés, uma sandália de tiras combinando com a saia. Meus cabelos negros eu apenas penteio e deixo solto, sem tempo para me preocupar em me arrumar melhor sigo até o escritório. 

— Seja bem-vinda senhorita Fairchild — a recepcionista diz logo que me apresento — O senhor McNamara logo irá atendê-la.

— Obrigada — respondo e me sento em uma das poltronas de couro brancas espalhadas pela recepção.

O lugar está vazio, exceto por um homem sentado em uma poltrona no canto mais afastado. Eu o olho discretamente e não consigo evitar achá-lo bonito. Sua pele clara contrasta com seus cabelos escuros jogados em frente ao rosto. Sua franja quase cobre seus olhos, mas posso ver os olhos puxados por baixo dela. Seu corpo é magro, mas ele não parece ser franzino. Me perco em pensamentos olhando até que ele nota meu olhar e seus olhos esbarram com os meus. Sua expressão encara a minha com um olhar intenso, quase desafiante e eu acabo desviando o olhar.

— Senhorita Fairchild, poderia me acompanhar por gentileza? — O homem na casa dos 60 anos, chama, sequer havia notado sua presença.

Me levanto e sigo atrás dele, que fecha a porta logo que eu passo. O local é uma típica sala de escritório, não é familiar, não é convidativo. É um ambiente frio, sem identidade. Um quadro aleatório cobre a parede enquanto as cadeiras caras de couro são posicionadas em frente a mesa de madeira maciça.

Eu me sento e o homem estende alguns documentos para mim, antes mesmo que eu abra minha boca para falar. 

— Estes são os documentos que a senhorita precisa ler e assinar. Conforme for lendo podem surgir algumas dúvidas, estarei aqui para responder a todas elas — seu tom de voz é calmo, porém cortante, de forma que não deixa abertura para outra coisa ser feita senão o que ele está pedindo.

— Certo — respondo e corro os olhos pelo papel.

Demora algum tempo até que eu leia todos os documentos e faça todas as perguntas necessárias antes de assinar. Apesar da demora, o resultado é simples. Sou a atual dona da mansão e preciso me mudar para lá ainda esse final de semana e permanecer por lá ao menos por dois anos antes de passar o local para outro dono. Segundo o advogado, meu tio queria se assegurar de que eu estaria realmente cuidando da casa, mas sinto que ainda tem algo mais por trás dessa história.

O advogado também me explica que como a casa é um bem adquirido antes do casamento, meu tio teve uma liberdade maior em escolher quem seria a herdeira; o homem não fala nada diretamente, mas dá a entender que Ísis Fairchild não ficara feliz com a leitura do testamento.

Saio da sala e meus olhos rastreiam a recepção, procurando-o desejando ver se permanece ali, fico positivamente surpresa quando constato que sim. Ele continua ali.

— Senhorita Fairchild, Phillip está aqui para guiá-la até a mansão — novamente não percebo o senhor McNamara atrás de mim.

Os olhos do homem se levantam e ele me encara profundamente, nem a sombra de um sorriso em seu rosto bonito. Phillip se levanta e caminha em direção à saída, sem se preocupar em me cumprimentar. Preciso quase correr para alcançá-lo.

— Ei, espere. Para onde está indo? — Pergunto a ele quando consigo chegar em sua presença.

— Para a mansão, para onde mais seria?

— Não posso ir assim, preciso ir para minha casa. Preciso preparar uma mala — afirmo, mesmo que isso deveria ser obvio.

— Como pode não estar com tudo pronto? — Phillip respira fundo e cerra os olhos, parecendo tentar conter a raiva. 

— Me desculpe se eu não tenho uma mala pronta esperando para quando meu tio falecer e me deixar uma herança milionária. Vamos, preciso passar na minha casa. E depois iremos até a mansão — afirmo e dessa vez, quem sai caminhando na frente sou eu.

História nova para vocês, espero que gostem, pretendo postar um capítulo por dia até a conclusão — já que ela está totalmente escrita — mas se tivermos bastante interação, podemos concluir antes! Então tudo depende de vocês 😉

Beijos, a autora.

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