Capítulo único
Jen olhou para o túmulo recém-coberto por terra revirada. Seu filho estava enterrado ali. Ele nunca mais iria sentir seu calor, aquele gostoso abraço. Os bracinhos carnudos apertando atrás de sua nuca...
Faltava ar. Faltavam lágrimas. Faltava tudo.
Sobravam gritos e choro desesperado no cemitério. Suas pernas estavam fracas, tudo a seu redor zunia. O filho era mais uma vítima daquele conflito louco. Uma bomba caiu na escola. Outras quarenta crianças tinham morrido. Aquilo era um funeral coletivo. A tristeza de todas aquelas famílias e da comunidade escolar... É melhor nem descrever. Um superlativo de tristeza, raiva e frustração.
Jen esmagou a estrelinha de metal nos punhos querendo sentir qualquer coisa, ainda que fosse dor. Observou o sangue gotejar por entre os dedos e pingar na grama seca e cinzenta. Alguém falava alguma coisa com ele, mas ele ignorava. Desceu a colina aos tropeços.
Seu trabalho era escrever, dar palestras, testemunhar. O Templo de Bórgula era uma instituição de paz, e ele discursava sobre a paz, mesmo em meio à guerra. Sobre o que escreveria agora? O que diria no culto do dia seguinte? Seria capaz de dizer, como sempre dissera, que o perdão é maior que tudo?
Olhou para a Estrela Guia, um pouco torta, suja de sangue. O símbolo da profeta Yamiz. Jen era uma pessoa de fé, mas sua fé parecia ter se escondido numa dimensão paralela. E quando percebeu, entrava no prédio da força nacional.
O atendente olhou distraidamente para Jen, sem registrar quem estava ali diante dele e disse mecanicamente — O que deseja?
— Quero me alistar — Jen parecia um autômato, alguém que deixou a alma escapar do corpo.
Então, o rapaz olhou melhor para Jen e engasgou com o ar — Pastor Slods? A-alistar?
— Sim, vocês tem um formulário?
O rapaz, ainda chocado, procurava os papéis na mesa... Além de pastor, Jen Slods era um bicordiano.
— Eu-eu é... Sinto muito... É...
— Obrigado... Não é aquele ali — apontou uma pilha de folhas amarelas.
— Ah, sim — o rapaz entregou uma cópia — me desculpe.
Jen pegou um lápis e começou a preencher o formulário.
O rapaz tinha um jornal diante de si. — Eu li que essa é uma nova tática dos Cormelicanos para...
— É mentira... Tudo que está escrito nesse jornal aí é mentira.
— Mas, pastor, é... é o Diário Nacional!
— Antes de ser pastor, eu trabalhei lá... Sei do que estou falando rapaz.
— Mas então? O que?
— Não queira saber... E também, isso não faz mais diferença... Eu só quero... Eu vou...
Jen mordeu os lábios grossos com força.
Praticamente num piscar de olhos, o treinamento tinha passado. Jen estava usando a farda cinzenta, tinha os cabelos cortados curtos, como os dos demais recrutas e os corações batiam forte no peito na expectativa do desembarque. O fuzil em sua mão, plenamente carregado. No bolsão da mochila, havia duas baterias sobressalentes. A maioria de seus colegas recrutas eram unicordianos, pessoas com a pele clara e defeituosa, a casta trabalhadora do estado. O relógio no punho esquerdo era também o lançador de escudo. O escudo barrava energia e fogo, mas não projéteis. Os oficiais sim, tinham proteção adequada, unidades EXB - exoesqueletos blindados. Ao menos eles tomariam a dianteira das tropas.
O barco chacoalhava na água e ali dentro não se via muita coisa. Alguns recrutas de pele clara assumiram uma tonalidade verde, como as águas do mar que podiam ver ocasionalmente pelos respiradouros da embarcação. Um recruta vomitou o desjejum ao seu lado. Jen cobriu a boca e focinho. Antes que houvesse tempo para que também ficasse enjoado, o tanque anfíbio tocou o cascalho grosso da praia promovendo um grande solavanco. O portão de desembarque abriu e as seis EXBs saltaram na dianteira atraindo fogo inimigo.
Jen ligou o escudo pessoal e saltou logo atrás, uma onda baixa e gelada lambeu seus coturnos deixando o pés encharcados. A corrida praia acima foi acompanhada de uma sensação de frio nos pés que corriam num plof-plof molhado e incômodo e calor vindo de cima, na medida em que plasma e explosões de fogo eram absorvidas pelo escudo. Havia três casamatas acima da linha pedregosa disparando contra as tropas que desembarcavam. Eram milhares de unidades lotando a praia como um formigueiro pisoteado. Uma das EXBs foi abatida com um tiro de canhão. Uns três recrutas que se protegiam atrás dela caíram atingidos por estilhaços. Jen passou ao largo deles, suas expressões de agonia, o sangue escuro jorrando dos ferimentos. Faltava pouco para alcançar um paredão rochoso que daria cobertura do fogo inimigo.
Jen se encostou numa rocha grande para recuperar o fôlego. Recordou-se das intermináveis e calorosas discussões políticas que tomavam a redação do jornal, há muitos anos.
Nada daquilo era tão caloroso quanto a sensação de estar no meio de uma batalha.
Então, as EXBs foram se posicionado ao lado das rochas e assumindo formação até se tornarem uma espécie de via de escalada. Jen ateou o fuzil nas costas e subiu na perna de uma delas, havia várias alças que facilitavam a escalada. Da perna passou para a lateral do tronco, para os ombros e pronto, estava no patamar superior. Seguiu até a próxima unidade. Era uma torrente de gente subindo, não se pisoteando por pouco, conseguindo reproduzir bem o que haviam repetido por centenas de vezes durante o treinamento.
Jen encontrou espaço entre as rochas e junto a outros recrutas passou a disparar plasma a partir de seu fuzil. O som de centenas de armas disparando, os feixes que queimavam o ar era ensurdecedor, por isso, todos usavam abafadores dentro das orelhas. O avanço da tropa seguia sinais visuais luminosos ou gestos, usavam pouca comunicação verbal.
Muitas das teorias e correntes de pensamento que eram expressas por seu povo falavam sobre a guerra. E agora, Jen vivenciava algo daquilo que era objeto de discussões abstratas. Os racionalistas combatendo os progressistas numa dialética que parecia sem fim, verdade sendo a última das preocupações de ambos grupos, enquanto os yamizitas se esquivavam do debate terreno mergulhando no celestismo puro. Era impossível, e talvez, seja impossível para todo o sempre, fazer como que o povo se unisse em torno de um conjunto de ideias razoáveis em prol da verdade e do bem comum.
Mas numa tropa, podendo morrer a qualquer momento, não importavam as crenças políticas ou religiosas de um indivíduo. O instinto de sobrevivência falava mais alto, e ali, agiam como insetos protegendo sua colmeia.
Uma grande onda de comemoração veio quando a muralha da casamata ficou vermelha e começou a derreter. Em poucos momentos todo o resto ruiu sem a sustentação da base. Um deslizamento causado pela queda da fortificação atingiu parte do tropa e enterrou duas EXBs. Uma delas, conseguiu se libertar e foi se juntar à formação que ajudaria os soldados na escalada da parte final da elevação até o topo.
Jen viu que a casamata à esquerda também estava sendo derrubada, enquanto as tropas da direita, tinham dificuldades de ascender num terreno mais difícil. Centenas de soldados jaziam mortos àquela altura. Jen pensou que não tivera tanta sorte...
Mas isso podia logo mudar.
Ah, mas o que era sorte para uns, era azar para ele. Ele mordeu os lábios e num piscar de olhos, aquela batalha tinha acabado. Os dois terços que ascenderam ao alto do morro, logo deram cabo da terceira fortaleza.
Uma campanha longa se seguiu. A maioria dos recrutas do pelotão de Jen pereceram. Ele se viu promovido a sargento e, meses depois, a tenente. E antes do fim do ano, copilotava uma EXB. Nunca estivera muito interessado naqueles artefatos bélicos, mas agora que aprendera a usar uma EXB, sabia que tivera sorte de ter uma das melhores. A Garrua-5 lembrava vagamente o animal em que fora inspirada. As Garruas eram enormes quadrúpedes de chifres espinhosos e mandíbulas fatais. Um dos mais perigosos predadores do continente e que estavam praticamente extintos. Esse era um dos maiores EXBs já construídos e a cabine ficava na cabeça, e não no tórax como na maior parte dos outros modelos. Era o único modelo que contava com copiloto.
Tudo indicava que chegavam ao fim daquela campanha militar. Estavam avançando na parte já dominada da capital de Cormélia, Huus.
Jen conversava com Gonto, o piloto. A cabine era apertada, quente e cheia de botões.
— O comando cormeliano está encurralado agora. Pode ser que o grande dia seja hoje. — comentou Gonto, animado.
Jen encolheu os ombros — Seria bom ver o fim desta guerra.
— E pensar que toda essa devastação é fruto da pura ganância dos progressistas...
— Hum hum — Jen detestava qualquer conversa fundamentada em ideologias políticas.
— É tanta que eles chegam a atacar o próprio povo para incitar a guerra. Sabe, tudo que eles querem são as reservas de salgemas de Cornélia.
— Atacar o próprio povo, Capitão? Gosta de uma teoria da conspiração, né?
— Admito que tem muito zum-zum-zum por aí que dá razão ao uso do termo teoria da conspiração, mas sabe, antes de vir para a guerra, fui auxiliar no Ministério do Progresso.
— É?
— Pois é... você foi jornalista, né? Sabe como funciona... No fim, as pessoas acham que estão livres para propagar suas verdades, mas muitas delas são mentiras bem construídas, não concorda?
— Nisso sim...
— Então, lá no ministério, no início da guerra, o pessoal da cúpula tinha umas pastas... Eram sobre ações internas. Você acha mesmo que os cormelianos têm condições para mandar bombardeiros em nossas cidades longe da fronteira? Ou mesmo para a ilha de Nustel?
— Nós já destroçamos a força aérea deles há muito tempo, Slods.
— Então você acha que o nosso governo andou bombardeando Nustel?
— É o que estou dizendo. Você atinge um hospital, uma escola e bum! Toda sociedade fica com sangue nos olhos, mais recrutas chovem e o esforço de guerra continuada se mantém.
Jen ficou quieto. Pensar naquela possibilidade o deixou perplexo. Pensar que possa ter perdido o filho, a esposa antes dele, por uma perversa manobra política...
— Yamiz queira que você esteja engando, Capitão.
— Rolou um surto de fé em você agora, Slods?
— É... — Jen bufou — Acho que sim. Eu já fui pastor bórgula e meu filho morreu num bombardeio em Nustel.
Gonto parou a Garrua. Hesitou antes de falar — Olha Slods, desculpe, eu não fazia ideia...
— Tudo bem, vamos.
O Capitão Gonto colocou a máquina para andar novamente. — Se eu soubesse eu não tocaria nesse assunto...
— Tá... Já deu. Vamos em frente. Temos o inimigo para confrontar.
Jen mordeu os lábios. E num piscar de olhos, tudo aquilo passou. A guerra foi vencida. As tropas retornaram. Ele, e muitos outros veteranos foram condecorados, convertidos em verdadeiros heróis de guerra. Mas cada vez mais, o passado o assombrava. A morte do filho e da esposa. Os horrores da guerra. Não dava para ser pastor, nem jornalista, naquela situação, mas arranjou um trabalho no Ministério do Progresso. Uma função burocrática simples, e aos poucos, como quem não quer nada ele foi se aproximando da área de arquivos. E achou, achou tudo aquilo que o Capitão Gonto supunha ser verdade. Ele extraiu os arquivos, deixou numa pasta fechada com uma ex-colega do jornal, alguém que considerava, dentro do possível, honesta. Na pasta estavam todas as informações que extraiu com instruções explícitas para ela não ler até o a tarde do dia seguinte.
Estava agendada para aquela tarde uma cerimônia no palácio do governo. O presidente iria homenagear os veteranos.
O presidente era um sujeito de rosto jovial apesar da idade, sorriso perfeito, grandes orelhas pontudas, atributo de certo apelo sexual. Um mentiroso profissional. Líder do partido progressista. O discurso foi perfeito e arrancou palmas. Até mesmo os jornalistas o aplaudiam. Então Jen foi até o presidente com um artefato bélico oculto em seu uniforme: uma granada de plasma.
— Parabéns! O senhor é um perfeito assassino e mentiroso. — foram as últimas palavras de Jen.
Presidente morto num atentado a bomba, diziam as manchetes dos jornais no dia seguinte. Mas o Diário Nacional, tinha uma matéria diferente de todos os demais. Documentos sobre as ações internas que implicavam o presidente. Uma carta escrita pelo ex-pastor e tenente reformado Jen Slods. Uma verdadeira bomba que implodiu o governo, causou revolta nas ruas, e culminou numa guerra civil entre os progressistas e racionalistas.
E num piscar de olhos, um novo governo racionalista surgiu. A oposição afirmava que o caso Slods tinha sido a maior mentira de todos os tempos. Não era possível escolher, ou mesmo reconhecer, qualquer opção entre as mentiras forjadas por ambos partidos como sendo algo próximo da verdade. Como Jen supunha, era de fato impossível que progressistas e racionalistas um dia fossem capazes de reconhecer seus erros e construírem algo de bom na sociedade pensando de fato no bem comum.
O que restava ao povo era, talvez, buscar alguma iluminação junto aos yamizitas.
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