2.2 | Dia 2
Terça-feira
Hansel e eu combinamos de sair para jantar à noite. Há um restaurante que fica nas partes altas da montanha chamado Mount View, famoso pela vista das mesas que ficam na varanda, que permitem observar toda a cidade e as estrelas do céu durante a noite. A comida e o ambiente de lá são excepcionais. É necessário agendar com vários dias de antecedência para conseguir uma reserva lá. Mas, como quase tudo nessa vida se resolve com um pouco de influência, Hansel não teve muita dificuldade para conseguir uma reserva para nós dois.
Vejo meu reflexo no espelho de casa, arrumando minha gravata preta. Hoje não é uma data especial, mas para um ambiente de tão alta classe como o Mount View é necessário vestir roupas chiques. Definitivamente prefiro roupas mais esportivas a uma camisa social azul-escura e calça preta, porém, Hansel parece estar tão animado para hoje que acredito ser capaz de fazer qualquer coisa para agradá-lo.
– Enji! Já é quase sete da noite! Precisamos ir ou vamos nos atrasar! – ouço a voz de Hansel vinda do lado de fora da porta.
– Estou quase pronto! – respondo, espirrando um pouco de perfume em meu pescoço.
Apago a luz do banheiro e abro a porta, me deparando com ele em frente a ela. Hansel veste uma camisa branca com um colete preto por cima. Sua gravata é vermelha, mais para o lado do vinho. Meus olhos se alegram diante da visão em frente a mim, enquanto sinto meu coração acelerar, ele está radiante. Seus olhos se encontram com os meus, me deixando perdido no profundo azul. Tudo o que ele faz é tão sutil, até mesmo quando olha para alguém. Faz tudo parecer tão genuíno, tão lindo. Isso o torna tão atraente.
– Ei! Precisamos ir! – diz ele, me tirando de meus pensamentos.
– Sim, claro! – digo sorrindo.
Eu sei que soa estúpido, mas fico me perguntando como consegui um marido tão maravilhoso assim. Me sinto com tanta sorte. Me pergunto como minha vida teria sido se nunca tivéssemos nos conhecido. Provavelmente deve haver um universo por aí em que isso aconteceu...
Depois de fechar a casa, nós dois entramos no nosso carro, Hansel no banco do motorista, e eu no banco de passageiro. Ele dá a partida e nós finalmente deixamos a casa para trás, indo em direção ao nosso destino.
– Então, como foi a patrulha hoje? – pergunta ele sem tirar os olhos da pista.
– Nada fora do comum, apenas arruaceiros fazendo o que fazem no dia a dia, atazanando a população – respondo, relembrando do dia de hoje. – Havia este cara que queria arrumar briga com um civil por causa de um pacote de biscoitos dentro de uma loja. Estava passando por perto quando vi.
– Espera, um pacote de biscoitos? – pergunta Hansel confuso.
– Parece que eram biscoitos raros e era o último pacote da loja. O civil pegou primeiro, porém o cara disse que tinha visto o pacote primeiro. Então, ele tentou agredir o civil para tentar pegar o pacote. Eu cheguei quando os funcionários da loja estavam tentando segurar o homem – continuo minha história, relembrando a cena em minha mente.
Hansel solta uma risada, tentando se conter para não perder a concentração do trânsito.
– Então, é contra isso que os vigilantes lutam hoje em dia?! Mas que situação! – diz ele entre risadas.
– Calma lá, eu ainda não terminei – digo, continuando o restante. – O cara era um ser da terra, sua algazarra estava causando rachaduras na avenida, que estava em alto movimento de trânsito. Se a briga continuasse, poderia ter causado um acidente.
– Oh. Certo. Essa é uma situação... plausível – diz ele, ainda tentando se conter para não rir.
– No fim, o cara se acalmou quando viu que eu estava no lugar. Ele deve ter pensado "oh não, lá vem o policial!" No fim, o outro civil ficou com o pacote – concluo.
– Uau! Mas que aventura de vigilância! – diz ele sarcasticamente. – Deve ser cansativo ter que separar briga de civis por causa de biscoitos.
– É bem mais seguro do que lutar contra criminosos perigosos, se formos comparar. Ainda bem que o número deles caiu para quase zero nos últimos tempos – digo. Acredito que estamos vivendo na época de menor criminalidade da história da ilha.
– Nisso você está certo! – diz Hansel.
– Por que você não me fala como foi o seu dia, Senhor Diretor? – pergunto com tom de sarcasmo.
– "Senhor Diretor"? – Hansel olha para mim com olhos cerrados rapidamente. – Por que tal substantivo tão de repente?
– Vamos dizer que talvez eu tenha uma queda por figuras de autoridade – respondo com um sorriso no rosto.
– É mesmo? Bom, nesse caso, então, talvez eu deva fazer você se comportar como um bom garoto – responde ele, sem olhar para mim. Mas sua voz... Este tom de voz que faz meu corpo ferver. – Mas vamos ter que deixar isso para quando estivermos em casa.
– Em casa. Claro – deixo escapar. Olho para frente, para a rua, mordendo meu lábio de baixo. Toda essa excitação correndo pelo meu corpo... Hansel sabe exatamente como apertar meus botões.
Vamos lá Enji, concentra no agora, no restaurante, o depois vem só depois.
– Bom, meu dia não foi exatamente tão cheio de emoções quanto o seu – responde ele, me fazendo relembrar o que tinha perguntado antes. – A maior parte dele passei revisando o plano de preparo para o Festival da Liberdade.
– Espera, a U.S.E. vai fazer o próprio festival interno na Semana da Liberdade de novo? – pergunto.
– Bom, sim! – responde ele. – Mais especificamente no Dia da Liberdade, não vai durar uma semana como o da cidade.
A Semana da Liberdade geralmente dura cinco dias, são os dias que a praça principal do centro da cidade é preparada com várias tendas de especiarias locais, tanto de comida, quanto de artesanato e tudo mais. É a semana que o melhor da ilha é reunido em um único lugar para ser desfrutado por todos, inclusive visitantes. Mas tudo se culmina no último dia, que é o feriado nacional chamado Dia da Liberdade. De acordo com nosso folclore, foi o dia em que Aquele da Destruição foi derrotado. Mas oficialmente falando, foi quando a ilha passou de monarquia para república. Todo ano é comemorada a Semana da Liberdade.
– Entendi. Então, o que você está planejando fazer para que o Festival da Liberdade da U.S.E. seja diferente do festival da cidade? – pergunto.
– Isso é algo que ainda não está cem porcento decidido, mas está sendo discutido – responde ele. – Mas de uma coisa eu tenho certeza: será inesquecível!
Bom, acho que os estudantes ficarão felizes de saber que terão um festival exclusivo para eles. Aulas na U.S.E. são cansativas por conta própria, será muito bom algo para descontrair.
O festival da cidade é sempre apreciado por todos, será difícil competir. O último foi... Ele foi...
Olho para meu reflexo no retrovisor do carro que fica ao meu lado, olhando bem em meus olhos. Tento me esforçar para relembrar o último festival.
Estranho... Não me lembro o que aconteceu nele.
Enfim, não deve ter sido tão memorável assim, já que não me lembro. Acho melhor focar só na noite de hoje.
Em menos de uma hora, chegamos finalmente no restaurante Mount View. Assim que chegamos na entrada, um chofer nos aborda e leva nosso carro para ser estacionado. Paro para o olhar a vista ao meu redor. O ambiente do lado de fora é bem calmo, mas posso ouvir as vozes e a música vinda de dentro.
Sinto a mão de Hansel segurar a minha. Ele sorri para mim, ficando ao meu lado. Não me lembro da última vez que viemos aqui, mas sei que faz tempo. Ele me puxa para a entrada, onde somos recebidos pelo anfitrião.
– Boa noite, senhores! – diz ele, se curvando. É um jovem de pele clara, não parece ter mais de vinte anos. – Poderiam me passar o número da reserva?
– Reserva 151 – responde Hansel. O anfitrião procura em seu celular por alguns segundos, antes de voltar a se dirigir a nós.
– 151, reserva feita no nome de... – ele para de falar por um momento, percebo sua expressão de surpresa – Hansel Johnson! – O anfitrião olha para Hansel com os olhos arregalados. – O senhor é o G-guardião!
– Sim... – responde Hansel com sua calma voz.
Oh, é verdade... Às vezes me esqueço de que, além de meu marido e diretor da universidade de seres-éter mais prestigiosa conhecida, Hansel também é o mais famoso e temido vigilante da história até os dias de hoje: O Guardião. Enquanto a grande maioria dos vigilantes são famosos por seus feitos para proteger os mais frágeis, a mera existência de Hansel é o suficiente para fazer qualquer criminoso tremer da cabeça aos pés. O único ser-éter capaz de controlar a quintessência em sua forma pura. Uma fonte infinita de energia cósmica que dobra e reorganiza os átomos que compõem a realidade ao nosso redor. Isso é o quão profundo vai o seu poder.
As autoridades reconhecem a tamanha importância da existência de Hansel para o mundo como ele é e o respeitam por isso. Enquanto qualquer ser-éter é visto como comum, O Guardião é quase idolatrado. Se ele diz algo, todos seguem. E eu fico feliz de saber que Hansel tem total noção da responsabilidade que carrega por isso e como toma cuidado para não causar danos com suas ações, por mais simples que sejam. Eu não tenho certeza se teria o mesmo senso de responsabilidade que ele tem sem seu lugar.
– É uma honra tê-lo aqui em nosso restaurante, senhor! Por favor, me sigam! – diz o anfitrião, sinalizando com sua mão para que o acompanhemos até nossa mesa.
Nós dois o seguimos e nos sentamos, onde percebemos dois cardápios muito bem decorados com capas pretas em cima dela. Hansel pega um deles e abre, olhando entre as páginas. Eu paro um momento para observar o ambiente ao meu redor. Posso ver pessoas em outras mesas olhando em nossa direção, comentando. É sempre assim, mas nenhum deles jamais se atreve a chegar perto, eles observam Hansel de longe.
– Então, o que você vai comer? – pergunta Hansel.
Paro com meus pensamentos e me deixo focar apenas nele.
– Ainda não parei para analisar o cardápio – respondo, abrindo o que está em frente a mim e passando os olhos rapidamente por entre as páginas. – E você?
– Estive com vontade de comer alguma coisa que vem do mar ultimamente – responde ele sem olhar para mim. – Ouvi dizer que este lugar tem pratos maravilhosos com camarão.
– Bom, já eu prefiro algo com a boa e velha carne – digo, procurando por pratos que envolvam carne vermelha.
– Você deveria experimentar coisas novas de vez em quando, Enji – diz Hansel, voltando seus olhos para mim.
– Por quê? É melhor ficar com o que já conheço e sei que vou gostar! – respondo, ignorando sua sugestão.
Hansel não responde e volta a olhar para seu cardápio. Nós dois passamos mais alguns minutos discutindo sobre os pratos até finalmente fazermos nosso pedido. O garçom retira das mesas os cardápios e nos deixa a sós, apenas esperando por nossas refeições. Este é o momento. Finalmente, apenas ele e eu!
Hansel pousa sua mão levemente sobre a minha, entrelaçando nossos dedos. A sensação fria dos seus dedos faz meu coração acelerar, me dando a certeza de que está aqui, junto comigo. Eu amo a sensação de sua mão sobre a minha.
– Sabe, às vezes eu me pergunto como as nossas vidas seriam se nunca tivéssemos nos conhecido... – diz Hansel olhando para nossas mãos juntas.
– Bom, eu já pensei sobre isso antes e posso afirmar com cem porcento de certeza que não é um cenário que eu gostaria de ter! – digo, apertando sua mão. – Não é um pensamento que vale a pena ter.
– Tem razão. Eu deveria focar mais no aqui, no agora – diz ele.
O tempo passa, nossas refeições chegam, e nós aproveitamos a boa comida do lugar. Adoro estes momentos que me tiram da rotina do dia a dia por algumas horas, que me permitem esquecer de tudo. Não odeio a minha vida, muito pelo contrário, tenho uma vida maravilhosa. Mas estar com ele, fingir que nada mais existe, só ele... Isso tem uma beleza diferente.
Depois de mais algum tempo, decidimos deixar o restaurante e voltar para casa. Desta vez, eu quem estou dirigindo. A estrada que desce a montanha de volta para a cidade é sempre calma durante a noite. Qualquer pessoa que estiver nos bancos de passageiros consegue ver as luzes da cidade lá em baixo, uma vez que a pista faz várias voltas para descer. É uma excelente paisagem, e eu sei que Hansel adora observar as paisagens das estradas, por isso resolvi voltar dirigindo.
Já faz um tempo desde a última vez que deixamos Dunamous para algum outro lugar, é raro fazermos viagens para muito longe da cidade. Preciso me lembrar de ir visitar tia Ana qualquer dia desses, a última vez que a vi foi há um mês. Tento sempre fazer contato com ela pelo menos três vezes na semana, mas ela tem estado muito quieta nos últimos dias. Ela e senhor Johnson, o pai de Hansel...
– Querido, você foi capaz de falar com seu pai ultimamente? – pergunto a Hansel. Ele não me responde ou olha para mim, apenas continua observando a paisagem janela a fora. – Hansel? – Tento chamar sua atenção mais uma vez. – Hansel!
– O quê? – pergunta ele, se virando para mim, com cara de confuso.
– Você ouviu a minha outra pergunta? – pergunto a ele.
– Desculpe, estava distraído... – responde ele, voltando a olhar para fora. – Qual foi a pergunta?
– Você tem falado com o seu pai? – pergunto novamente.
Ele se mantém em silêncio por alguns segundos. Porém, desta vez, eu sei que ele ouviu.
– Não – responde ele, sem complementar ou expressar qualquer emoção, apenas uma resposta curta e direta. Eu, melhor do que ninguém, sei o que isso significa.
Senhor Johnson... Sempre tive esperanças de que Hansel pudesse ter um bom relacionamento com o seu pai, pois sei o quanto isso o afeta, mesmo que não demonstre. Mas aquele homem não ajuda. Depois que a direção da U.S.E. foi passada a Hansel, nas últimas olimpíadas, senhor Johnson decidiu se mudar de Dunamous. Talvez estivesse em busca de uma oportunidade para fugir de tudo, não sei dizer ao certo, mas decidiu quase cortar relações com Hansel. Ele não liga e nunca diz por onde anda, apenas escrevem mensagens dizendo que está vivo e bem.
Eu sei o quanto o abandono da minha mãe teve consequências muito pesadas na minha vida, para Hansel deve ter sido muito pior, pois ele, sim, cresceu com seu pai, diferente de mim.
– Você está procurando por ele, não está? Por isso está distraído assim? – pergunto.
– Não. Não é por ele. – Hansel não olha para mim, mas posso perceber que está de olhos fechados.
– O que se passa na sua cabeça sonhadora, então? – pergunto, tentando fazer com que ele foque no aqui.
– Não é nada de importante, só estou um pouco cansado – responde ele, abrindo os olhos e se virando para mim, com um doce sorriso no rosto.
– Tudo bem – respondo sem mais insistir. Não é verdade, Hansel não fica cansado, seu poder não permite que fique. Mas se ele não quer falar sobre o que está o incomodando, não quero pressioná-lo, sei que vai se abrir quando o momento chegar, sempre se abre.
Mais algum tempo se passa até chegarmos em casa. Seguimos nosso ritual noturno até o momento mais gostoso da noite: me deitar em nossa cama aconchegante e sentir a pele macia e gelada do homem que eu amo nos meus braços. Adoro sentir sua cabeça em meu peito, passar meus dedos pelo seu cabelo cacheado.
Cacheado... O cabelo dele costumava ser extremamente liso logo no primeiro ano da U.S.E., não é...? Quando foi que ficaram tão cacheados assim?
Antes que minha mente viagem mais um pouco, sinto Hansel se mexer. Sua cabeça se ergue. Ele coloca suas mãos sobre meus ombros e me empurra para baixo, se sentando sobre mim. Meu coração começa a palpitar forte ao olhar para cima e ver seus olhos brilhando em azul cintilante. Seu olhar... O leve sorriso em seus lábios e seus olhos cerrados fazem meu estomago borbulhar e minha pele se arrepiar inteira.
Oh Deus... Sei exatamente que rumo isto está tomando. Eu suponho que não vamos dormir hoje à noite.
Inhaí, gente bonita??
Bom, só passando para avisar que eu fiz umas pequenas mudanças em alguns capítulos anteriores (nada que vá alterar o plot da história) por motivos de "não gostei, quero mudar". Exemplo: mudei o nome da ilha de Ilha Ydunna para Ilha Cristal (Ydunna era um nome usado em outro plot que não se aplica a esta história, então não fazia sentido continuar usando).
Também mudei o nome do capítulo anterior de "Utopia" para "Dia 1", o motivo vai ficar mais claro nos próximos capítulos.
Enfim, só pra vocês não ficarem perdidos caso alguém perceba. Bjs!
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top