1.5 | Oráculo
Fecho meus olhos, respiro profundamente. Não consigo pensar em nenhuma desculpa para não ter que fazer isso, não possuo qualquer explicação que possa dar que justifique não fazer uma aula prática. Não tenho outra escolha, preciso fazer alguma demonstração. Meu uniforme é de ser da água, então preciso fazer algo relacionado à ela e torcer para estar certo. Mas se eu for um ser psíquico, por algum acaso, em vez de um elemental...
Por um momento, minha mente se ilumina. Espera, é isso! Seres psíquicos não conseguem demonstrar visualmente suas habilidades! Eu tenho uma ideia, só espero que ele a compre...
– Não é querendo desapontá-lo, professor Ivor, mas houve um pequeno erro em minha matrícula, do qual eu só fiquei sabendo hoje – digo confiantemente, tentando esconder minha ansiedade. – Não sou um ser da água, sou um oráculo.
Vejo seus lábios se separarem singelamente uns dos outros, mas sua expressão não mostra surpresa, ou talvez ele só a esconda muito bem. Mas os outros alunos todos começam a cochichar entre si.
– Um oráculo?... – pergunta o professor, sem aparentar acreditar em mim. – Olha, Hansel, eu esperava uma desculpa melhor...
– Estou falando a verdade, professor, não consigo fazer nenhum truque com água, justamente porque não sou um ser da água – digo, tentando parecer o mais convincente possível.
– Seria muito mais fácil de acreditar se dissesse que não está se sentindo bem, Hansel, mas um oráculo? – Sua expressão é de total negação, ele se recusa a acreditar. – A última vez que um oráculo passou pela S.E. eu nem mesmo era nascido, não se há notícias de um há décadas.
– Bom, milagres acontecem, não é...? – digo sem desviar meu olhar do dele. – Caso não acredite em mim, pode ligar para o diretor agora mesmo e perguntar. Ele irá confirmar exatamente o que estou dizendo. Embora, eu imagino que ele não ficaria feliz de ter seu trabalho incomodado para discutir algo básico...
Um clima de tensão se espalha sobre o ambiente. Os alunos conversam baixo entre si, enquanto professor Ivor me encara com olhos cerrados. Eu sei o quão raros são os oráculos e o quão arriscado seria dar essa desculpa, mas era minha única opção. E eu sei que meu pai não quer que um rumor de que não tenho individualidade se espalhe por aí, então, mesmo que professor Ivor pergunte, ele vai seguir exatamente o meu roteiro. Odeio usar meu status para conseguir algo, sinto que fui forçado fazer isso.
– Bom, nessa parte eu concordo, não seria uma boa ideia atrapalhar o diretor. Mas este assunto não está encerrado! – diz ele. Me desculpe, senhor Ivor, não tive escolha... – Muito bem, alunos, acho que já tivemos prática o suficiente por hoje!
A fila de estudantes se dispersa, todos indo de volta para os vestuários. Nenhum deles olha ou chega perto de mim. Se para eles eu já era uma aberração antes de saberem meu poder, agora vai ser ainda pior. E isso porque é tudo uma mentira, inventada para proteger esta reputação infernal...
Bom, professor Ivor está certo, chega de prática por hoje.
É hora do almoço e estou a caminho para me encontrar com o grupo na cafeteria. Já está se tornando uma rotina, sempre nos encontrando no mesmo lugar, nos sentando na mesma mesa, as mesmas pessoas. Não que seja algo ruim, mas é definitivamente diferente do que estou acostumado.
Puxo minha cadeira, me sentado ao lado de Helena, desta vez.
– De novo, você é o último a chegar... – diz ela, nem mesmo me dando um tempo para respirar.
– Sem essa, vai! – digo, mal-humorado. – E eu não sou o último, Caio não está aqui.
– Uau! – diz Sarah, olhando para baixo e colocando seu cabelo para trás da orelha. – Alguém está com o pé esquerdo! Sério, Enji, você era mais divertido no ensino médio, por que está tão rabugento nesses dias?
Penso numa resposta para dar, mas acabo me lembrando do segundo ano, a série que a conheci; foi o melhor do ensino médio inteiro. Ela tem razão, não estou no meu personagem, preciso sair desta!
– Ele não consegue esconder o fato de que está assim por causa do Hansel – diz Helena, antes que eu possa falar. Sinceramente, ser amigo dela é como ter uma dedo-duro ao meu lado 24h por dia. – Aliás, eu pedi para você trazê-lo quando viesse da aula, não pedi? Onde ele está?
– Por que eu deveria saber? Hansel não é minha responsabilidade – respondo de forma seca. – Aliás, mesmo que eu quisesse convidá-lo para almoçar conosco, ele não iria vir. Eu nem mesmo vi quando ele saiu da sala.
– Aconteceu alguma coisa hoje? – pergunta Sarah, desembalando seu almoço.
– Bom, sim. Tivemos aula prática e quando chegou a vez dele de demonstrar seus poderes, Hansel disse que era um oráculo e não poderia demonstrar nada – respondo rapidamente. Helena se engasga ao tomar sua água com gás.
– Oráculo? Você quer dizer aqueles que predizem o futuro, vêm o passado, essas coisas? – pergunta ela. – Eles não são, tipo, um conto de fadas?!
– Não, oráculos existiram de verdade! – responde Sarah. – Mas eles sempre foram muito raros, mais raros que seres psíquicos. Enquanto uma a cada quinhentas pessoas é um ser psíquico, a estimativa de um oráculo nascer é de uma em cem mil. Isso aproximadamente, claro.
– Esse é um número alto... – Helena suspira. – Se o Hansel é mesmo um oráculo, a reputação da S.E. subiria ainda mais alto do que já está. Imagina só, ter um aprendiz de diretor como um ser-éter tão raro?
– Ótimo, mais motivos para dar a ele privilégios... – deixo escapar inconscientemente.
– Oh, não seja invejoso, Enji! – Helena cutuca meu braço com seu cotovelo.
– Não estou sendo invejoso! – respondo automaticamente, na defensiva.
– Olha só, tão fofo ele, mentindo para uma telepata. – As duas riem sozinhas.
Helena está certa quanto a uma coisa: seria muito bom para a reputação da universidade que o aprendiz de diretor fosse um oráculo. Mas esse é exatamente o X da questão, parece ser conveniente demais. Não há quem me faça tirar da cabeça de que há algo por trás desta história toda. E eu vou descobrir o que é...
– O que aconteceu com o Caio mesmo, ele não vai vir almoçar? – pergunto, percebendo que nenhuma delas mencionou o seu atraso.
– Oh, na verdade, ele disse que tinha algo importante para fazer fora da S.E., sobre a aula de hoje – responde Sarah. – E como não teremos mais aula no restante do dia, por causa da reunião dos professores, ele não vai aparecer tão cedo.
– É muito estranho pensar que o Caio que nós conhecemos está pulando o almoço... – diz Helena, balançando sua cabeça em negação.
– É o Caio, ele não vai pular o almoço, provavelmente só vai levar comida para onde for – diz Sarah, apontando sua colher vazia para Helena.
– Faz sentido!
Nós passamos mais algum tempo conversando e comendo, aproveitando a súbita folga das aulas que nos foi dada durante a tarde de hoje. Enquanto ouço Sarah e Helena tagarelarem, perco minha visão no céu, olhando pela janela. Está nublado, sem chuva. Mas um pouco mais distante, vejo nuvens negras vindo na direção da universidade.
Sem sol... Talvez seja por isso que não estou em bom humor.
Está no horário do almoço, mas não estou com fome. Em vez de ir para a cafeteria, preferi visitar o parque que fica numa parte alta da montanha, aonde geralmente venho quando preciso esfriar a cabeça. Consigo ver grande parte do centro da cidade daqui, a parte que se aproxima da praia. É uma vista mais bonita no pôr-do-sol, sendo engolido pelo mar, no horizonte; mas não posso me dar o luxo de ficar aqui até esse horário.
Hoje, haverá uma reunião com os professores conselheiros, para discutirmos sobre as Olimpíadas de Quintessência. Aparentemente, este ano será um pouco maior que o normal. Em vez de ser um evento interno da S.E. e suas outras unidades, os alunos irão competir contra duas universidades de outros país, na arena esportiva de Dunamos. Como assistente do meu pai, sou obrigado a comparecer na reunião, mesmo que não tenha voz. Mas honestamente, não dou a mínima para essa baboseira. Só queria poder desaparecer, tirar todo este peso em minhas costas. Infelizmente, é o preço que preciso pagar para fazer as vontades do meu pai.
Sinto o vento frio soprar contra mim, vindo do Sul, trazendo escuras nuvens de chuva para sobre a cidade. Gosto do frio, me deixa calmo, é aconchegante... Olho para o relógio do meu celular, indicando quase 1h da tarde; preciso voltar, ou vou me atrasar.
Decido me levantar do banco de madeira que estou sentado e descer pelas trilhas, seguindo em direção às ruas de asfalto. Como estamos em dia de semana, no almoço, estas áreas ficam desérticas. Talvez seja o único estranho o suficiente para passar o horário de almoço dentro de uma floresta.
Enquanto desço a trilha, vejo alguém com roupas de exercícios subindo, correndo. Um homem de pele escura cabelos cacheados que eu muito bem reconheço, usando uma jaqueta verde-escuro e calças pretas; acho que não sou o único estranho, afinal.
– Oh, Hansel! – diz Caio, ao passar por mim. Ele para de correr e se aproxima, respirando profundamente.
– Hm, ei... – É o máximo que me esforço a dizer.
– Não esperava te ver por aqui... Resolveu dar uma caminhada? – pergunta ele com voz leve. Sua voz, apesar de ser grave, é um tanto reconfortante; não é ruim.
– Mais ou menos. E definitivamente posso dizer o mesmo sobre te encontrar aqui também – respondo, tentando não soar como um babaca. É um pouco difícil quando só é assim que uma pessoa sabe agir...
– É, acho justo. – Caio ri. Ele parece ser um cara bem simpático. – Bom, não vou te atrapalhar.
Ele sorri gentilmente e volta a sua corrida pela montanha. Me pergunto o que ele está fazendo por aqui... Bom, é melhor eu voltar para a S.E.
Ando tranquilamente pela trilha, sentindo o vento em meu corpo, derrubando folhas das árvores pelo chão. De repente, minha visão se escurece, quando um saco de pano preto é colocado sobre a minha cabeça. Me debato com força, sentindo um braço em minha garganta, me puxando para trás.
– Não se mova, ou mato você! – A aterrorizante voz masculina soa em meu ouvido, me fazendo estremecer. Sinto algo frio, de metal, em minha garganta. Não posso fazer nada, não com essa faca em minha garganta, preciso pensar com clareza, com calma, mesmo que meu coração esteja acelerado.
Antes que possa pensar numa saída, sinto o chão sob meus pés sacudir violentamente e o afiado metal ser encravado em meu ombro esquerdo. Solto um grunhido de dor e caio no chão, sentindo a imensa dor tomar de conta de todo meu lado esquerdo do corpo. Mal consigo me mexer, mas posso ouvir meus arredores, sons de briga, luta. Sons da terra sendo movida, quebrada, árvores caindo. E tiros também.
– Deixem-no! Precisamos ir! – uma outra voz diz entre todo o som de caos.
Uso minha mão esquerda para tirar a sacola de pano de minha cabeça e tento me arrastar pelo chão para um lugar seguro, sem ainda ter qualquer ideia do que ou quem ainda está ao meu redor. A dor incapacitante do corte em meu ombro me deixa completamente sem forças. Acabo ficando de costas para o chão, olhando para o céu fechado, derramando suas poucas, mas pesadas, gotas de chuva. Não consigo nem mesmo formar algum pensamento claro, sendo completamente dominado pela dor, me esforçando para não deixar minha visão borrar. Mas não consigo mais lutar, aos poucos minhas energias se esgotam e tudo se escurece.
Apesar de não enxergar mais nada, não sentir mais nada, não ouvir mais nada, ainda estou consciente. É como se estivesse no meio do vazio. Há esta sensação de paz, mas também de dúvida, pois não sei o que está acontecendo. Será que essa é a sensação da morte?
Antes que consiga minha resposta, meus sentidos são recobrados. Meu corpo é preenchido com tremendo frio, enquanto me encontro em meio a um campo rodeado de árvores altas. Não há céu azul, apenas nuvens pesadas de chuva, sendo cortadas por raios violentos a cada seguindo. É como se estivesse em outra realidade, porque nada daqui aparenta como o mundo real que conheço.
Enquanto tento me manter em pé, lutando contra o forte vento que vem dos arredores da montanha, uma estranha sensação de horror invade meu ser. Olho para trás, para a floresta de árvores que balançam, e a sensação crescer, como se houvesse algo lá, vindo em minha direção. Seja o que for, sinto como se a própria morte estivesse se aproximando. O medo dentro de mim se instaura, fazendo meu corpo estremecer.
Dou um passo para trás, mas acabo tropeçando e caindo. Mas não caio no chão, caio em um imenso vazio, enquanto tudo ao meu redor desaparece.
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