1.25 | Você

Estou de volta no corredor do dormitório. Levei meu tempo para tomar um banho e vestir uma roupa confortável antes de irmos para a arena que as olimpíadas estão tomando lugar. Enji já deve estar pronto a esta altura.

Abro a porta do quarto e me deparo com ele usando nada na parte de cima e segurando duas camisetas em frente a si, uma verde escuro e a outra azul.

– Han! Me ajude, qual eu uso? – pergunta ele olhando para mim.

– Sério, Enji? Todo esse tempo e você ainda não escolheu sua roupa?! – pergunto aborrecido.

– Só me ajuda logo! Qual fica melhor? – pergunta ele, trocando a posição das camisetas em frente a si.

Enji está usando calça preta, acho que o tom combina com a parte escura do verde. Além, tenho certeza de que ele vai colocar alguma jaqueta por cima, provavelmente a azul. Azul com azul não ficaria bem.

– Use a verde – respondo finalmente.

– Ótima escolha! – diz ele, colocando sua camiseta e jogando a outra em cima de sua cama. Sei que amo Enji, mas às vezes sua desorganização me irrita bastante.

Faço um pequeno movimento com as mãos em direção à camiseta em cima da cama. Ela se envolve na energia azul e flutua para a gaveta da cômoda de Enji, sendo dobrada e guardada perfeitamente.

– Sabe, manter a sua cama organizada não custa muito – digo a Enji, que me olha com chateação.

– E você se preocupa demais com coisas bobas – diz ele passando por mim.

– Não é bobo, Enji! Você não é o único que vive neste quarto! – digo irritado, seguindo-o.

Assim que abre a porta, Enji se mantém parado, como se estivesse surpreso com algo. Eu me aproximo, passando por ele e vendo o que está acontecendo. Ao chegar na porta, me deparo com dois homens vestidos em ternos pretos esperando.

– Hansel Johnson? – pergunta um deles com uma voz grave.

– Eu mesmo – respondo sem medo. – E você?

– Viemos por ordens do seu pai, diretor Robert Johnson. Precisamos que venha conosco – responde o homem.

Por um instante, sinto meu corpo congelar, mas então, me recomponho. As memórias da minha última conversa com ele passam de relance por minha mente, me fazendo lembrar por que ele teria o cuidado de mandar seguranças atrás de mim.

– Hansel, o que está havendo? – pergunta Enji preocupado, atrás de mim.

– Parece que vou ter que ir ao encontro do meu pai por agora – respondo pensativo, dando um passo para frente.

– Eu vou com você! – diz Enji, colocando uma mão em meu ombro, me impedindo de sair.

– Não – respondo, me virando para trás. Pego as mãos de Enji usando as minhas e observo seus olhos, tentando passar segurança para ele. – Eu me viro, não se preocupe. Encontre os outros no estádio, vou estar lá logo.

– Tudo bem... – responde ele, mas posso ver pelo seu tom de voz que está apreensivo

Passo pelos dois homens de preto, entrando no corredor, só para perceber a presença de mais dois deles. Os dois que estão em frente a mim andam um ao lado do outro, me impedindo de passar por eles. Os outros dois se mantêm atrás de mim, me deixando cercado completamente. Enquanto passamos pelos corredores do dormitórios, alguns outros alunos olham com curiosidade, inquietos ao me verem sendo escoltado por quatro guardas.

Ao passarmos pelos portões que guardam a universidade dentro dos muros, vejo um carro preto. Um dos seguranças abre a porta para que eu entre. Se eu não soubesse que isso é coisa do meu pai, estaria com medo de ser sequestrado, igual quase aconteceu na montanha. Mas suponho que nem mesmo se fosse o caso teria tanto medo, já não sou mais aquele Hansel indefeso. Mesmo que não tenha total controle do meu poder, consigo me virar. Eles teriam que estar cheios de muita coragem para se meter comigo.

Meu tempo dentro do carro passa, enquanto sou levado pelas ruas da cidade para o lugar no qual sei onde ele estaria me esperando: casa. Vejo a grande casa de longe, pensando no que ele poderia querer comigo à essa altura, sabendo que tenho uma luta para vencer daqui a algumas horas. O carro estaciona na entrada e um dos seguranças abre a porta, me permitindo sair. Sou levado pela entrada de nossa grande casa até chegar no salão principal, onde há a escada que sobe para o outro andar. Assim que entro, os seguranças ficam atrás de mim.

Olho para cima e vejo meu pai no topo da escada. Ele desce em seu próprio ritmo até ficar em frente a mim. Nós dois nos encaramos por alguns segundos, eu vendo as rugas em seu rosto, intactas em sua expressão séria.

– Então, vai me dizer por que fez toda essa cerimônia para me trazer aqui? – pergunto.

– Digamos que você não deixou as coisas amigáveis na nossa última conversa – responde ele, se virando de costas para mim e dando alguns passos pelo salão, mantendo suas mãos atrás de suas costas. – Precisava me certificar de que viria.

– E precisou de um grupo de guardas para isso? Você me teme tanto assim, pai? – pergunto. Apesar da raiva dentro de mim, não sou capaz de me contar em me perguntar o porquê. Minha vida inteira ele me manteve sob controle. Achava que era por causa do conselho, por querer me controlar e me fazer assumir o posto de diretor. Mas isso parece tão distante agora. Quando olho para ele, consigo perceber que U.S.E. não está em questão, nunca esteve.

– Não, Hansel – responde ele. – Eu não temo você. Eu te amo, mais que tudo.

– Não... diga isso – deixo escapar em voz baixa. – Não diga isso! Sua postura não é a de um pai que ama!

Papai se vira para mim, me encarando nos olhos. Ele não diz nada, mas sei que está mantendo algo preso dentro de si, porque seu olhar é igual ao meu.

– Eu tenho uma responsabilidade em meus ombros, Hansel – diz ele, se aproximando. – A responsabilidade de manter seguras todas as pessoas que estão nesta ilha e fora dela. E, agora, a única ameaça a eles é você.

Assim que papai diz isso, sinto algo ser colocado em meu pescoço. Mãos seguram meus braços, enquanto coisas circulares são colocadas em volta deles. Perco minha postura, enquanto sou segurado pelos seguranças que estavam atrás de mim. Assim que dou um tempo para esquecer o medo que toma de conta de mim, percebo que as coisas colocadas em mim são inibidores, vários deles.

– O que está fazendo?! – pergunto assustado.

– Protegendo você – responde ele, olhando em meus olhos. – De agora em diante, você não sai mais desta casa, até segundas ordens.

Meu coração acelera, enquanto sou empurrado para o chão, ficando de joelhos. Sinto meu medo tomar de conta de mim, do meu corpo, fazendo meus músculos tremerem. Em meio a todo o caos de emoções borbulhando dentro de mim, uma específica se sobrepõe aos poucos: raiva. Estou cansado. Cansado de toda essa história de filho do diretor, de toda essa responsabilidade em relação a esse poder, de todas as expectativas em relação a mim. Cansado da visão que os outros têm sobre mim, das ideias que usam para me definir, como se eu fosse aquilo que eles pensam.

Estou cansado de ser tratado como se fosse algo, em vez de alguém.

Aperto minhas mãos, sentindo meu coração bater forte. O chão sob mim começa a rachar, enquanto as paredes de toda a casa começam a tremer e as luzes a piscar. Os seguranças tentam me forçar a ficar no chão, mas aos poucos, vou me levantando. Até que sinto meu corpo ser eletrocutado por uma arma de choque que um deles tem. De primeira, a dor toma de conta de mim, mas logo começa a fazer parte, como se a energia não fosse mais uma intrusa em meu corpo, mas um componente dele.

Recupero minha postura, ficando em pé novamente, enquanto os quatro guardas são eletrocutados pela eletricidade que sai de meu corpo de volta para eles. Todos são derrubados no chão. Meu pai olha para mim assustado, como se tivesse acabado de perceber o erro que cometeu. Mas não me importo. Agora, não me importo com nada, só sinto dentro de mim minha raiva fervente, deixando meu peito quente, como se estivesse em chamas.

Faço um movimento com minhas mãos e os quatro guardas são erguidos no ar por conta do sangue que corre em seus corpos. Eles ficam incapazes de se mover, soltando sons de dor e se contorcendo.

– Isso é culpa sua! – digo em meio às minhas próprias lágrimas.

– Hansel, pare! – grita papai, vindo para mais perto de mim. – Você está machucando pessoas inocentes!

– Será que são...? Eles me amarraram e tentaram me eletrocutar. Será que são inocentes mesmo como diz? – digo apertando minha mão. Os gritos dos guardas se intensificam. Papai não diz nada, mas consigo ver que está em falta de palavras, por sua surpresa. Eu consegui, o superei. Pela primeira vez, ele não é a pessoa no controle. – Oh, já sei! Foram suas ordens, não é?! Estão sendo punidos por sua culpa.

Abro minha mão e os quatro guardas são lançados em diferentes direções contra as paredes do salão, caindo no chão e ficando desacordados. Sei que não estão mortos, mas vão ficar um tempo sem se mexer.

Os inibidores presos em mim são quebrados e reduzidos a pó, me dando ainda mais liberdade sobre o que fazer com todo o meu poder. Vejo pequenos objetos ao redor do salão começarem a flutuar no ambiente, como se a energia emanada de mim estivesse invadindo a área por completo.

– Você está fora de controle! – diz ele em tom de raiva. – Sabia que ficaria se te deixasse usar esse poder! Por que não consegue enxergar?!

– Não estou fora de controle! – respondo gritando. Grandes rachaduras aparecem pelas paredes do salão e um raio cortando o céu pode ser ouvido do lado de fora. Tudo começa a se escurecer pelo clima de chuva que se forma. – Eu disse que queria você longe de mim e dos meus amigos, mas você nunca ficou longe! Esteve observando o tempo inteiro! Como?!

Papai não responde. Vejo no fundo de seus olhos a cautela. Ele está pensando em como responder. Mas acho que sei minha resposta, posso vê-la dentro dele. A grande quantidade de quintessência que há em seu corpo, maior do que a de um humano que não tem poderes.

– Está certo, estive observando – responde ele, confirmando minhas suspeitas. – Todo santo dia, toda hora, todo momento. Nunca tirei meus olhos de você.

– Oráculo... – digo em voz baixa. – Você é um oráculo. Por isso sempre sabe o que está acontecendo. Mentiu para mim a minha vida inteira, dizendo que não tinha poderes apenas para que eu pudesse ter uma justificativa para não ter os meus. Você sabia de tudo isso, planejou tudo isso!

– Sim, Hansel, sempre soube... – responde ele, deixando uma única lágrima escorrer de um de seus olhos.

Sinto algo dentro de mim se partir, como se uma faca estivesse sendo atravessada em meu coração. A sensação da traição toma de conta do meu corpo. Toda a dor da raiva.

– Por quê?! – grito eu. Várias outras rachaduras se formam nas paredes da casa. As luzes já não piscam mais, a única coisa que ilumina o salão é o brilho azul sendo emitido do meu corpo. – Por que você me vê tanto como uma ameaça?!

– Porque você matou a sua mãe... – responde ele. Sinto meu corpo inteiro travar. Os tremores sessam instantaneamente. Por um momento, sinto minha cabeça girar e um zumbido se instalar em meus ouvidos. Dou alguns passos para trás, incapaz de pensar direito. – Você era um só uma criança, não deveria ter cinco anos – sua voz soa dolorosa, enquanto sua mente vagueia por suas lembranças. Lembranças que posso ver como se fossem minhas –, estávamos almoçando como uma família comum.

O ambiente ao nosso redor se transforma na sala de refeições da casa, durante um dia ensolarado de final de semana. Olho para a mesa e vejo duas pessoas, uma criança de cabelos pretos e olhos azuis. Ao lado dele, há uma bela moça ruiva, de olhos castanhos e pele rosada, com um sorriso tão gentil que seria capaz de acalmar até a mais forte das tempestades.

– Mãe... – Meus lábios deixam escapar em fraco tom, enquanto minhas lágrimas descem pelo meu rosto. Eu me lembro dela, não tenho nenhuma lembrança concreta, mas me lembro de seu rosto, de quando beijava minha testa antes de dormir. Me lembro da sensação de ser uma criança, não uma cobaia. A sensação que ela me passava.

– Você sempre foi uma criança curiosa – diz papai, aparecendo logo ao meu lado –, adorava mexer com o que não entendia, mesmo que fosse perigoso para você.

Vejo mamãe cortando legumes com uma faca, enquanto a criança segura nas bordas da mesa, tentando ver o que há em cima. O garoto puxa o tecido, derrubando tudo o que há nela por cima de si. Ele cai no chão sentado e começa a chorar. Quando mamãe se aproxima para acalmá-lo, o garoto grita em choro, emitindo para fora de si uma onda de energia, que lança para longe tudo ao seu redor. Mamãe também é jogada contra a parede da cozinha. Ando para perto dela, me aproximando de seu corpo, só para vê-la agonizando no chão, pela faca que acabou encravada em seu estômago.

Enquanto olho para ela, sinto em mim sua dor, no local onde foi ferida. Caio de joelhos no chão, enquanto a memória se desfaz e me vejo de volta no salão principal, em frente a papai. Coloco minhas mãos em meus ouvidos, e balanço a cabeça, tentando apagar de minha memória o que acabei de ver.

– Não... – digo em meio a soluços de choro.

– Você entende agora...? – pergunta papai, se aproximando. – Aquele dia foi o dia que o seu poder despertou, Hansel. Desde então, você nunca teve controle.

– Não... Para! – digo, balançando a cabeça e tampando os ouvidos. Sinto a energia dentro de mim começar a escapar de novo, mas tento contê-la dentro de mim. O chão começa a tremer mais uma vez.

– Eu sabia que você era uma ameaça, por isso, tive que tomar providências – diz ele, mais perto. – Precisava me certificar de que você crescesse em uma realidade em que jamais precisaria usar aquele poder de novo.

– Para de falar... – digo em voz baixa, tentando conter as emoções dentro de mim e impedi-las de jorrarem.

– Fiz tudo o que fiz para proteger você – papai se ajoelha em frente a mim e toca meus ombros –, de você mesmo.

Ao ouvi-lo dizer isso, sinto como se meu corpo estivesse se partindo em dois. A quintessência dentro do corpo dele começa a ser absorvida por mim, enquanto papai grita em dor e cai no chão desacordado. A casa inteira começa a desabar sobre nós, porém, não movo um só músculo para sair, apenas deixo que todo o concreto despenque em cima de todos aqui dentro. Até que tudo o que vejo é escuridão causada pela poeira.

"Porque você matou a sua mãe."

Abro meus olhos soterrado na pilha de concreto restante de toda a mansão na qual cresci. Me esforço para me por de pé e assim que faço isso, o espaço entre mim e os detritos se expande. Os restos da casa se movem, abrindo uma área que me permite ficar em pé em meio a tudo, como uma caverna. Vejo os quatro guardas e meu pai jogados no chão, posso sentir as suas respirações, ainda estão vivos, mas desacordados.

Faço seus corpos flutuarem para perto de mim, enquanto empurro para longe os destroços da casa, abrindo um buraco na parte de cima, que ilumina tudo com a luz do sol. A energia dentro de mim se exala para fora, envolvendo meu corpo.

"Desprender-se das correntes que o deixam preso."

Como se não existisse gravidade, meu corpo se levanta no ar, me fazendo subir para fora dos destroços, juntamente com as outras cinco pessoas que estavam na casa.

"Tornar-se um com o seu poder."

Do alto, vejo carros de bombeiros e polícia ao redor da destruição causada pelo meu colapso. As pessoas se assustam ao verem uma figura flutuante emergir dos destroços junto com outros. Quando pouso no chão, deixo gentilmente papai e os outros quatro guardas sobre ele. Os policiais apontam suas armas para mim, como se fosse algum tipo de ameaça. Sei que estão com medo, nunca viram algo como eu.

Sem me mover, apenas com um pensamento, faço suas armas serem destroçadas aos pedaços. Assustados, os policiais deixam os restos caírem no chão. Enquanto ando para direção do grupo de pessoas que investigava o desabamento da casa, eles abrem caminho, incapazes de resistirem à minha influência sobre eles. Aos poucos, cada um entra em uma viatura, caminhão, ou qualquer outro transporte presente, e vão embora, como se jamais tivessem visto os destroços da casa.

Ninguém deve saber que este lugar não existe mais. Ninguém.

Dou passos lentos, esperando que toda a área seja evacuada e que somente papai e os guardas estejam aqui. Ninguém vai se aproximar daqui.

Olho para a rua vazia que leva à minha antiga casa, esta área sempre foi mais afastada da cidade, e caminho sobre ela, pensando em tudo o que ouvi em meu encontro com meu pai. Mas, dentro de mim, não sinto qualquer coisa, apenas vazio. É como se, de repente, alguém tivesse arrancado meu coração para fora. Nada mais importa, ninguém mais importa.

"Eu jamais deixaria qualquer coisa acontecer com você."

Enji...

Paro de andar, enquanto me lembro da voz daquele que é o meu lugar seguro. Estou errado, uma pessoa importa.

Me lembro dos meus treinamentos, de todo o tempo que passei aprendendo formas de luta para uma única ocasião.

Uma coisa também importa.

Ainda tenho umas olimpíadas para vencer.


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