1.16 | Paixão


É noite, já passou do horário permitido para estarmos do lado de fora da universidade. Helena, Caio, Sarah e eu estamos em meu quarto.

– Já vai dar 9h da noite, ele já deveria estar aqui! – digo impaciente, andando de um lado para o outro, pelo quarto. Nós todos estamos preocupados que Enji ainda não voltou, especialmente porque ele não deveria estar do lado de fora, vai arrumar problemas se alguém da administração descobrir. E eles, de certo, vão descobrir, uma vez que a vistoria for feita.

– Vamos lá, ele vai estar aqui logo, fica frio! – diz Sarah, tentando me deixar melhor, mas não está funcionando, a única coisa que se passa pela minha cabeça são possíveis cenários do que pode ter acontecido.

De acordo com Helena, Enji disse que precisava de ar. Talvez tenha ido para a montanha? Lá é a área mais tranquila para se ir. Mas já é noite, ninguém quer estar na montanha durante a noite! Ele também poderia ter ido para a praia, apesar de lá ser mais movimentado, por conta das feiras noturnas de comida. Enji é uma pessoa de grupos, a praia seria um ótimo lugar para interagir com pessoas. Mas, se ele precisava de ar, provavelmente queria estar sozinho, não faria sentido ir para a praia.

– Hansel...

Não há muitas pessoas que ele conhece aqui em Dunamous, já que não morava aqui antes das aulas na SE começarem, portanto, não imagino que ele esteja na casa de algum amigo. E não há como ser algum amigo da universidade, já que nenhum de nós pode dormir fora.

– Hansel...!

Na pior das hipóteses, ele pode ter sido sequestrado pelas mesmas pessoas que tentaram me levar. Eles devem saber que Enji é próximo a mim, poderiam querer levá-lo para me atrair em alguma armadilha, ou algo do tipo. Mas que droga! Eu não consigo pensar em nada!

– Hansel! – A voz de helena me desperta de minha cabeça. – Será que dá para parar de pensar um pouco?! Sua cabeça está muito barulhenta!

– Você consegue ouvi-los? – pergunto envergonhado.

– Bom, você está os externalizando feito uma lâmpada transmitindo luz, então, sim! E está me deixando com dores de cabeça, já! – responde ela aborrecida. Me sento em minha cana, tentando diminuir os ritmo. Caio se senta próximo a mim.

– Você não quer "externalizar" – ele faz duas aspas, olhando para helena – seus pensamentos de uma forma que nós possamos entender e, talvez, ajudar? – pergunta ele. Por um momento, me sinto hesitante, mas preciso aprender a confiar nos outros, especialmente nos que sei que estão realmente tentando me ajudar.

– Enji sabe da restrição nos horários – começo a falar, deixando minha mente se esvaziar –, ele não estaria atrasado assim sem um motivo.

– Então, você acha que rolou alguma coisa? – pergunta Sarah, cruzando os braços e se aproximando. Ela parece mais séria desta vez, acho que está entendendo minha preocupação.

– Talvez... Não tenho certeza, mas é uma possibilidade – respondo, mais uma vez, correndo em minha mente pelos cenários que criei. – Eu o alertei várias vezes sobre se encrencar com a administração, meu pai jamais deixar passar qualquer erro, se algum aluno estiver fora da universidade depois das 8h da noite, ele irá saber.

– Bom, se for o caso, precisamos fazer alguma – diz Caio. Por mais que eu concorde com ele, não sei há qualquer coisa que possamos fazer, estamos presos aqui.

– Espera, estou sentindo algo... – diz Helena, olhando para o nada. Nós três a observamos, tentando decifrar sua expressão. Até que a fechadura da porta começa a chacoalhar. – Ele está aqui.

A porta se abre, revelando o homem que estava atrás dela, se esforçando para conseguir retirar suas chaves presas. Meu coração se alivia ao vê-lo, está de volta, finalmente.

– Enji! – Me aproximo dele, levado pela emoção do momento. Percebo-o completamente desorientado, sua roupa molhada, na parte da gola, e um forte cheiro de álcool. É claro, o idiota tem a mania estúpida de se afogar em bebidas quando está chateado, como eu não me lembrei...?

– Desculpe, me atrasei... – diz ele, mal conseguindo deixar as palavras saírem, se encostando na porta aberta. O alívio em mim aos poucos é substituído por raiva, que me faz querer estapeá-lo agora, por deixar todos nós preocupados assim.

– Só pode ser zoeira... – diz Sarah, cruzando os braços, obviamente tão estressada quanto eu. E os outros não parecem estar diferentes, especialmente Helena. – Você estava bebendo esse tempo todo? E nem pensou em avisar?!

– Quer saber, eu não sou paga para isso... – Helena passa por nós, saindo do quarto. – Vejo vocês amanhã! Divirtam-se!

Sarah, Caio e eu nos entreolhamos, aborrecidos pela situação, imagino que os dois tenham a mesma vontade de helena e apenas ir embora, depois de se preocuparem por nada.

– Vocês podem ir também, eu cuido dele – digo, balançando a mão, indicando para que vão.

– Tem certeza de que não vai precisar de ajuda? – pergunta Caio.

– Não se preocupe, eu sei lidar com ele – respondo, segundando Enji, para que não caia.

– Certo. Se precisar de ajudar, liga para nós! – diz Caio, antes de sair do quarto, deixando apenas eu e Sarah.

Ela olha para mim, ainda com cara de brava, depois para Enji, sem dizer nada. Ela se aproxima, com as mãos na cintura.

– Assim que ele ficar sóbrio, faça questão de brigar com ele por mim! – diz ela, passando pela porta.

– Pode deixar, eu vou fazer isso. Oh, mas eu vou! – digo, puxando Enji para longe da porta, ele está tão bêbado e mal consegue ficar em pé.

Somos deixados a sós, finalmente. Lentamente, carrego Enji para sua cama, onde o coloco sentado. Mole feito uma gelatina, ele fica de cabeça baixa, curvando sua coluna; deve ser um tanto doloroso ficar nessa posição. Bom, se apenas algum livro chamado "Como Cuidar do Seu Amigo Bêbado" tivesse me preparado para este momento, não estaria tão perdido no que fazer. Talvez seja melhor colocá-lo em roupas limpas.

Me aproximo de sua cômoda, olhando para os objetos em cima dela, todos revirados, como se algum furacão tivesse passado por cima; ele é tão desorganizado... Abro a gaveta e retiro uma camisa cinza, de mangas cumpridas, parece ser confortável para dormir, devo tê-lo visto usando isto alguma vez à noite. Olho para Enji, que ainda está de cabeça baixa, desacordado. Me aproximo dele e tento retirar sua camisa suja.

– Eei! Eu não quero tomar banho!... – reclama ele, de olhos entreabertos. Ótimo, ele vai agir como uma criança agora.

– Não vai – digo, retirando sua camisa inteiramente –, não faria isso, nem que fosse pago... Agora, fiquei parado.

Faço um pouco de água flutuar para fora de minha garrafa e a espalho pelo peitoral e pescoço de Enji, limpando-o de todo o álcool que deve ter derramado enquanto bebia.

– Friiiioo! – Enji tenta se mexer, mas eu o mantenho no lugar, limpando seu rosto com a água.

– Muito bem, é o máximo que vai conseguir de mim! – digo, já aborrecido pelo trabalho que estou tendo. Coloco a água de volta na garrafa, deixando a pele de Enji totalmente seca, de novo. Com dificuldade, passo seus membros por dentro dos buracos da camisa cinza, deixando-o confortável para dormir; ou, pelo menos, o mais confortável possível...

Antes que consiga me levantar, Enji me abraça, enterrando seu rosto em meu peito, me assustando.

– Ei, o que está fazendo?! – Tento empurrá-lo, mas ele é um tanto forte, até mesmo estando bêbado.

– Me descuuulpa... – diz ele, com sua voz abafada, por estar com seu rosto todo encostado em minha roupa. – Estou sendo um pé no caso, não é?

– Bom, sim, está! – Puxo sua cabeça para cima, fazendo olhar para mim. Assim que vejo seu rosto, fico surpreso ao perceber que ele está chorando.

– É só que eu estou muito triste, sabe...? – diz ele, se embolando pelas palavras, o coitado mal consegue falar direito. Por mais que esteja aborrecido, olhando para ele agora, seus olhos lacrimejados fazem com que a irritação desapareça aos poucos. Ele é um cabeça-dura, imprudente e bobalhão, mas não consigo ficar irritado por isso. Na verdade, essas são coisas que fazem dele... ele! Seria estranho ter um Enji que não tenta esconder sua frustração quando está envergonhado, ou que não se irrita ao perder um jogo, ou que não fala pelos cotovelos.

– E por que você está triste? – pergunto, resolvendo entrar em seu jogo, tentar argumentar não teria qualquer efeito, talvez seja uma boa apenas seguir o fluxo.

– Meu amigo, Hansel. Acho que estou apaixonado por ele... – responde ele, me deixando paralisado, sentindo meu corpo esfriar. Oh, não... Acho que ele não reconhece que está falando comigo. – Mas acho que ele não gosta de mim. Acho que ele vai me odiar se souber, vai me descartar, me deixar para trás.

– Por que ele faria isso...? – pergunto surpreso por sua fala. Saber que ele realmente gosta de mim dessa forma não é tão surpreendente quanto saber que ele espera que eu o descarte se souber. Eu não deveria me aproveitar da situação para extrair informações, mas não consigo fazer outra coisa, preciso saber o que há em sua cabeça.

– Porque é o que todo mundo faz, se cansam de mim e vão embora... – responde ele. Sua resposta me deixa de coração apertado, incrédulo que seja assim que ele se sente de verdade. Eu não fazia ideia, não poderia imaginar. Ele é sempre tão vibrante, todo mundo que interagem com Enji o adora de cara, quem poderia imaginar que ele esconde essa dor? Acho que há mais sobre ele que eu não sei do que pensei. Todo esse tempo, estive tão preocupado com a situação dos meus poderes, do meu pai, que não tentei focar nas pessoas ao meu redor, não parei para focar nele. Egoísmo da minha parte, mais uma vez.

– Bom, eu posso te dar certeza de que seu amigo jamais faria isso – respondo, colocando minha mão em seu cabelo, acariciando sua cabeça. Enji olha para meu rosto confuso.

– E como você sabe? – pergunta ele, como uma criança pergunta a um adulto coisas em sua curiosidade. Me seguro para não começar a rir, ele é adorável...

– Porque ele me contou – respondo. Enji parece surpreso, como quem não esperava por isso.

– Sério? Ele contou mais alguma coisa? Ele disse se gostava de mim também?! – Ele levanta sua cabeça, se sentando na cama, olhando para mim. Mas ainda parece completamente perdido, acho que ele nem mesmo sabe que está em seu quarto, nos dormitórios.

Olho para ele, sem saber como responder, deixando um suspiro sair. Eu não gosto de você nessa forma... não é? Observo seu rosto, perdido, mas que anseia por uma resposta. Hoje, foi a prova de que a possibilidade de ele estar em alguma situação de risco é suficiente para me deixar ansioso. Significa que eu o quero bem, fora de perigo, feliz, seguro. Querer isso para alguém é gostar mais do que apenas como amigo? Será que acabei desenvolvendo por ele o mesmo sentimento que ele, nesse tempo que passamos juntos?

– Isso é segredo – respondo finalmente.

– Oh... – Enji murcha, decepcionado. Ele desaba em sua cama, de cara no colchão. – Eu quero que ele goste de mim também... – diz ele, entre os lençóis, antes de apagar completamente. É, eu imagino que você iria querer mesmo. Acho que, em vez de dizer a ele diretamente que não senti nada, seria melhor questionar a mim mesmo, entender.

Usando um pouco de força, coloco Enji deitado de barriga para cima, em sua cama, o encobrindo com seu cobertor e colocando um travesseiro debaixo de sua cabeça. Eu o observo dormir, tão pacífico, quieto, tão diferente de seu normal. Vou te dar uma resposta mais concreta, Enji, eu prometo. Assim de descobrir o que realmente estou sentido...

Algumas horas antes...

Enquanto caminho pela rua, vejo um bar na esquina. Bom, acho que não tenho nada a perder...

Decido entrar. O local é bem arrumado, cheio de mesas com cadeiras, e uma grande bancada, no qual há uma enorme parede, cheia de garrafas de bebidas diferentes, logo atras. Tudo muito bem decorado, até as luzes apresentam uma mistura de cores quentes. Há poucas pessoas em algumas mesas. Para um bar de esquina, este lugar é muito bonito, estou impressionado.

Me aproximo da bancada, me sentando em um banquinho, logo perto. O atendente do bar se aproxima, para receber meu pedido. Após olhar as várias opções, peço um mix de vodca com algumas outras coisas. Pensar demais tem me deixado estressado em níveis que podem me fazer explodir, se não tomar cuidado, como aconteceu no meu pesadelo. Espero que beber um pouco me ajude a não pensar demais.

Mas, se observar um pouco, talvez pensar seja exatamente o que preciso fazer. Preciso entender o que está acontecendo comigo, por que fico tão desconcertado quando Hansel está por perto?

O atendente coloca a taça com minha bebida ao meu lado, sem que eu perceba.

– Um tanto distraído, não? – diz ele, olhando para mim. Ele tem pele escura, olhos azuis, cabelo raspado; provavelmente um ser da água. Está usando uma camisa preta, com o nome do bar escrito no peito, "Recanto do Sol".

– Tão evidente assim? – pergunto inconscientemente.

– Trabalhar num bar é pedir para ouvir pessoas reclamarem sobre seus problemas, você aprende a perceber, com o tempo – responde ele. Oh... Acho que eu sou transparente nesse nível, então. – Fique livre para falar, se quiser.

O atendente volta a organizar alguns copos, que ficam guardados em um canto. Sinceramente, eu queria poder falar sobre isso, mas não dá para contar a um estranho que seu colega de quarto é um ser de vários poderes e que você está responsável por ensiná-lo a dobrar o fogo, porém, inseguro demais para fazer isso. Me lembro com mais detalhes do pesadelo. Não, o problema não é esse, o problema é meu medo de desapontar Hansel.

– Já teve medo de desapontar alguém com qual você se importa? – pergunto ao atendente, sem perceber exatamente o que estou fazendo. Ele me observa com surpresa, mas, então, começa a rir.

– Meio de repente, mas nada que já não tenha ouvido antes – diz ele, balançando a cabeça. Acho que está certo, fui muito direto, sem aviso. – Mas, respondendo: sim. Todo mundo já.

Me sinto um pouco mais aliviado, percebendo que não estou sendo julgado. Talvez, falar sobre o que sente com um estranho não seja algo ruim, afinal, possível que nunca mais veja tal pessoa.

– Eu tenho este amigo, muito especial, que precisa da minha ajuda em um determinado assunto, mas não sei se sou capaz de ajudar – começo a falar, tentando deixar de uma forma que não revele muito sobre o assunto. – E tenho medo de que ele se decepcione caso não consiga.

– Um amigo especial? Do quão especial estamos falando? – pergunta ele, sem olhar para mim, apenas mexendo nas bebidas.

– Apenas especial...? Quero dizer, ele é muito talentoso nas coisas que faz, inteligente. Nem sei se realmente precisaria da minha ajuda para o que quer fazer – respondo, pensando no que acho especial em Hansel.

– Oh, então, especial no sentido "características especiais", não especial para você, certo? – pergunta ele. Paro para pensar um pouco, acho que não rinha percebido de qual sentido ele estava perguntando.

– Bom, quero dizer, especial em todos os sentidos, eu acho? Ele é especial para mim também, afinal, se não fosse, não estaria tão preocupado em desapontá-lo... – respondo. Assim que paro de falar, me dou conta do que isso significa. "Se não fosse, não estaria tão preocupado em desapontá-lo." Hansel é especial para mim ao ponto de que não consigo imaginar desapontá-lo. Gosto dele ao ponto de que pensar que ele poderia me deixar, se o desapontar, é assustador.

Sinto meu estômago se embrulhar, se revirar, dando sensação de frio. Eu reconheço essa sensação... Estou apaixonado...?!

– Entendi – diz o atendendo, se virando para mim. – E o quão especial você é para ele?

Sua pergunta me pega desprevenido. Eu não faço ideia, não sei o que Hansel pensa de mim, não consigo decifrar seus pensamentos. E certamente sei que não tenho coragem de perguntar.

– Eu não sei... – respondo desanimado. Pego minha bebida e dou um grande gole, sentindo o álcool arder ao descer minha garganta.

– Oh, estou entendendo. Bom, se for especial para ele na mesma medida que ele é especial para você, não acho que ele iria se decepcionar caso não for capaz de ajudá-lo – diz o atendente, se virando de volta para as bebidas.

Talvez ele tenha razão. Será que estou me preocupando demais? Mas é sobre o Hansel que estou falando... Deus, de tantas pessoas, tinha que me apaixonar justo por ele?! Como eu deveria alcançá-lo?! Quero dizer, ele é o aluno de mais influência na universidade, assistente do diretor, próximo na linha de sucessão, sem mencionar o ser-éter mais poderoso que já houve na história! E eu sou Enji, o ser do fogo cabeça-quente. Talvez eu simplesmente não devesse tentar nada, apenas deixar as coisas como estão. Se Hansel descobrir, é possível que se afaste, não posso correr esse risco.

Vou fazer tudo em meu alcance para deixar as coisas como estão e não o desapontar...

Passo mais algumas horas no bar, falando, deixando meus pensamentos saírem, aliviando meus estresse. Até finalmente perder a noção de horário e de quantas bebidas tomei.

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