1.10 | Segredo


02/03/2022

Hoje, estou com mais fome do que o normal. A manhã correu tranquilamente na aula, decidi me juntar ao pessoal na cafeteria no campus para o almoço. Estamos todos aqui, Caio, Helena, Sarah e eu. Oh, e não posso esquecer de Hansel, é claro; é a primeira vez que ele se junta a nós por conta própria, nós viemos juntos depois da aula.

– Eu não sei o que pedir hoje! Este cardápio bem que poderia mudar de vez em quando – reclama Helena, colocando o cardápio da cafeteria sobre a mesa. – Oh Hansel, não dá para falar com seu pai e pedir para ele mudar o menu, não?

– Duvido muito que isso aconteça. O cardápio da cafeteria é decidido antes do início das aulas para o restante do ano inteiro – responde ele, antes de dar uma garfada em seu almoço.

– Ótimo... – Helena afunda em sua cadeira.

– Não seja tão reclamadora, Hel! – diz Sarah, cutucando Helena com seu cotovelo.

– E você está sendo muito perturbadora nesses dias – Helena responde. E assim, elas entram em um assunto aleatório.

Enquanto almoço, pouso meus olhos sobre Hansel; ele parece estar bem melhor do que ontem. E muito mais confortável de estar entre nós, ouvindo em silêncio Sarah e Helena tagarelarem. Tivemos uma longa conversa depois que ele fez aquela pedra flutuar, decidimos manter tudo entre nós, sem envolver terceiros, será mais seguro assim, pelo menos até entendermos melhor o que está acontecendo.

– Cara, eu ainda não acredito que o nosso plano de prender esses dois no quarto deu certo! – diz Sarah, olhando para Hansel e para mim.

– Você quer dizer: plano da Helena! – diz Caio, na defensiva. – Só fui porque vocês duas me arrastaram!

– Sim, eu levo o crédito com prazer, afinal, funcionou, não é?! – diz Helena com um convencido sorriso no rosto. – Nós mal encontramos esses dois nos últimos dias. Estavam fazendo suas próprias coisas que não nos envolvia. – Ela coloca a mão em seus lábios, prendendo uma risadinha.

– Ei! Não é nada disso! – digo aborrecido, posso sentir meu rosto esquentar com a provocação de Helena.

– Oh, disso o quê?! Eu não falei nada... – diz ela, colocando seu queixo sobre suas mãos cruzadas, com os cotovelos apoiados na mesa.

– Disso... Nada!... – Desvio meu olhar dela, completamente frustrado, estou sentindo meu rosto vermelho. Mas que droga eu acabei de dizer?! Só estou apertando a corda em meu pescoço.

– Vamos lá, pessoal, não peguem no pé dele! – diz Hansel calmamente, como se a situação não o afetasse nem um pouco. – Enji só estava me ajudando com meus poderes.

– Oh, sim! Eu fiquei de perguntar antes, mas acabei esquecendo. Você teve aulas práticas durante a adolescência? – pergunta Caio, interessado no assunto; é a primeira vez que o vejo deixar seu almoço de lado para conversar.

– Bom... Na verdade, sim, tive algumas aulas no ensino médio – responde ele um tanto inseguro. Mentira, Hansel nunca teve aulas práticas, está tentando esconder o fato de seus poderes terem despertado somente semana passada.

– Eu também tenho uma pergunta! – diz Helena, se dirigindo a ele. – Você usava inibidores de telepatia? A única vez que consegui ouvir um pensamento seu foi no dia que trancamos você e Enji no quarto.

– Não que eu saiba... – responde Hansel, pensativo. Não estou gostando dessas perguntas direcionadas a ele, estão cavando um pouco profundo demais, não podemos deixar que nada sobre seus poderes escape.

– Bom, pessoal, olha só o horário! Está quase na hora da aula! Hansel e eu temos que ir! – Eu me levanto de minha cadeira e vou até Hansel, tocando seu ombro e fazendo um sinal para que ele venha comigo.

– Vocês nem terminaram de comer – diz Caio, olhando para nossos pratos.

– Pois é, uma pena! Vamos, Hansel! – digo, deixando o grupo para trás. Percebo Hansel se levantar e me seguir.

– Se a sua ideia era despistá-los do assunto, acho que só piorou! – diz ele, assim que me alcança.

– Foi você quem decidiu manter segredo! – digo, protestando contra sua fala. Nós dois saímos da cafeteria, indo em direção ao prédio principal. – Só estou tentando evitar que descubram, já que você não está ajudando muito também!

– Eu tinha que dizer alguma coisa! Seria pior se tivesse cortado o assunto logo de cara! – diz ele. – E, sim, eu decidi manter segredo deles porque seria arriscado demais que soubessem, já coloquei você em perigo duas vezes, sabe-se lá o que poderia acontecer com eles!

– Eles não são crianças, Hansel, sabem se cuidar! – digo, olhando para ele.

– Bom, você também não é uma criança as coisas deram no que deram – responde ele, parando de andar, olhando para mim, fazendo nossos olhos se encontrarem. – Ou será que é?

– Eu...! – Tento pensar em algo para responder, mas não há o que dizer, ele me venceu nesta. Hansel com certeza sabe usar as palavras de alguém contra eles mesmos. – Certo, justo...

Enquanto estamos parados, no campus aberto da universidade, ouvimos alguns sons agudos de rugidos vindo em nossa direção. Assim que olho para frente, vejo uma horda de dragões descer em alta velocidade sobre nós, mais especificamente Hansel. Os pequenos lagartos colidem contra ele, derrubando-o no chão. A grande maioria alça voo logo e vai embora, mas um pequeno dragão se mantém em seu rosto, lambendo seu nariz.

– Ai! – deixo escapar. Essa deve ter doido... Hansel puxa o pequeno dragão para fora de seu rosto pela cauda e o coloca sobre sua mão. O lagarto faz sons para ele, como se estivesse até mesmo tentando se comunicar. – Olha só, que interessante! É a primeira vez que vejo um dragão se aproximar de um humano assim, geralmente eles têm medo.

O dragãozinho abre suas asas e voa para longe, deixando Hansel no chão. Eu o ajudo a levantar.

– Odeio dragões... – diz ele, se limpando.

– Mas tem que admitir que eles são fofos, não são? – digo, tentando conter minha vontade de rir dele.

– Bom, eles não são gigantes e aterrorizantes cuspidores de fogo como os das histórias, então está valendo – responde ele, começando a andar. Eu o sigo.

– Falando em fogo, tem algo que eu quero discutir com você – digo enquanto andamos. – Já comprovamos que você tem controle sobre a água e a terra, além de ser um oráculo. Mas será que vai parar apenas por aí?

– O que quer dizer? – pergunta ele.

– Pensa comigo: tempo, água, terra... Isso te lembra alguma coisa? – pergunto, Hansel fica pensativo.

– É a ordem em que os cientistas acreditam que as individualidades surgiram – responde ele. – Oráculos, seres da água, terra, fogo, ar e psíquicos. Acho que sei o que está sugerindo, mas meus poderes de água surgiram antes dos meus de oráculo.

– Pode até ser o caso, mas não exclui a possibilidade de você desenvolver controle sobre o fogo e o ar – digo. Hansel olha para mim, parecendo estar preocupado, mas não diz nada, apenas continua andando. – Ei, mas não se preocupe, nós vamos dar um jeito.

– Espero eu... – diz ele, soando chateado. – Eu preciso tomar controle do meu poder da terra, antes de partir para o fogo, vai ser mais fácil desse jeito.

– Boa ideia. Nós podemos treinar no ferro-velho depois da aula de hoje, se você quiser – digo, enquanto entramos na sala de aula.

– Seria bom – diz ele.

Nós dois nos sentamos em nossas carteiras, esperando a aula começar. Estamos um pouco mais adiantados desta vez, já que saímos da cafeteria antes do sino tocar.

Finalmente a aula acabou! Já não aguentava mais ouvir a voz do professor. Foram 4h seguidas! Não sei como Hansel aguenta tanta informação sem reclamar...

Depois de que saímos da sala, viemos direto para o ferro-velho. Tive que inventar uma desculpa aos outros três do nosso grupo, para que não viessem atrás de nós. Eu gosto daquele pessoal, mas eles são um tanto insistentes de vez em quando, principalmente a Sarah. São 5h da tarde agora, temos algum tempo antes de escurecer.

– Então, eu não sou um ser da terra, mas tenho quase certeza de que os movimentos estão mais ligados a força do que precisão – digo em frente a Hansel.

– Na verdade, está mais ligado a posicionamento – diz ele, corrigindo minha informação. – Seres da terra precisam, sim, de força, mas também precisam manter-se firmes no chão, sem perder o equilíbrio. É como já ouvi alguém falar uma vez: se quiser mover a terra, precisa ser como a terra, bruto e rígido.

– Como sabe todas essas coisas? – pergunto impressionado.

– Oras, para que servem os livros, não é mesmo?! – responde ele. Bela colocação, eu devo dizer.

– Certo, então, me mostre o que você tem – digo, dando a ele abertura para que faça algo.

Enji separa seus pés um do outro, mantendo-se em uma pose estável e com os braços descolados do tronco. Ele estende suas mãos ao chão, como se estivesse tentando puxar algo para si. A terra sob meus pés aos poucos treme, me fazendo entender que seja lá o que Hansel está fazendo, parece estar funcionando. Porém, em vez de se mover de forma segura, uma rocha se move do solo sob um de seus pés, fazendo-o perder o equilíbrio e cambalear em minha direção. Sem controle, ele acaba se chocando contra mim, derrubando nós dois no chão.

Eu caio de costas, mas Hansel cai de frente, exatamente em cima de mim. Meu corpo congela ao sentir seu peso contra mim, fazendo o calor em meu rosto crescer incessantemente; não estava esperando por isso, nem um pouco. Sem saber o que fazer, apenas permaneço imóvel, tentando manter minhas mãos longe dele.

Hansel levante sua cabeça, olhando para mim. Porém, apesar de seu rosto estar um tanto avermelhado, ele não parece envergonhado, parece mais aborrecido. Ele se levanta primeiro, limpando suas roupas; eu me levanto logo depois.

– E-eu... Err.. – Tento dizer algo, mas minha língua está mais presa do que bandido, não consigo formar uma só frase.

– Apenas não diga nada, Enji! – diz Hansel em tom de irritação, desviando seu olhar.

– Certo, desculpa... – digo, cruzando minhas mãos em frente a mim. Por que coisas assim adoram acontecer comigo, depois que saí do ensino médio?! O povo diz que universidade parece uma realidade paralela e eu posso muito bem entender o porquê... – Bom, eu imagino que seja mais complicado do que parece? – Tento quebrar o clima constrangedor entre nós.

– Ora, não me diga?!... – diz Hansel, parecendo ainda mais aborrecido. Eu realmente não sei como lidar com ele nestas horas. Ele respira fundo e volta para sua posição de treino anterior. Decido não o aborrecer mais e ficar quieto, apenas observando.

Hansel fecha seus olhos, tentando manter a concentração. Ele, de novo, estende as mãos ao chão, mas mais distante de seu próprio corpo, desta vez. De um segundo para o outro, o chão treme e duas colunas feitas de rocha crescem até suas mãos.

– Conseguiu! – digo, batendo palmas para ele. Hansel me observa, contente. – Continue, vai ficar ainda melhor!

Ele dá alguns passos, se distanciando das colunas, e estende suas mãos em direção a uma delas. A coluna se parte no meio e a parte de cima flutua até Hansel, que a segura no ar. Eu continuo o observando enquanto treina, perdendo meu olhar em seu rosto concentrado. Seus olhos cerrados e lábios entreabertos. Sinto um nó em meu estômago e um calor crescer em meu peito. Balanço a cabeça, tentando fazer as sensações esquisitas irem embora.

Com a rocha flutuante em sua frente, Hansel a lança em um carro velho, que tem sua lataria amaçada quando é atingido por ela.

– Bom, nada ruim para uma primeira real experiência com terra – diz ele, sacudindo seus braços. – É pesada... Mesmo que sinta apenas uma leve porção, ainda dá para perceber a diferença em estar e não estar com uma rocha em meu campo de controle.

– Bom, se continuar se movendo como um ser da água, realmente vai sentir mais peso – digo, cruzando meus braços.

– O que quer dizer? – pergunta ele confuso.

– Você mesmo disse que precisa ser como a terra para mover a terra, mas ainda está se prendendo à precisão necessária para mover a água, está tão desesperado para manter o controle que não está usando sua força – respondo, tentando colocar em palavras tudo o que analisei de seus movimentos. – Quando seres da terra puxam rochas para fora, elas não crescem como se fossem flores, elas pulam de forma violenta. Igual a como você fez comigo ontem, aquele ataque foi tão rápido que nem mesmo tive tempo de entender o que estava acontecendo antes de ser atingido.

– Aquele ataque foi um acidente... – diz ele parecendo se sentir culpado. Mandou ver, Enji, bocó!

– Certo, certo, acidente... Mas não muda o fato de que foi um super ataque! – digo, mudando o foco da conversa. – Que movimento você fez para dar aquele ataque?

– Bom, eu fechei minhas mãos e dei dois socos para frente – responde ele, repetindo os mesmos movimentos, só que devagar.

– Isso! Por que não tenta fazer a mesma coisa de novo? De preferência que não seja na minha direção! – digo levemente, sorrindo.

– Suponho que valha a pena tentar... – diz ele, entrando em posição.

Hansel respira fundo, então, repete o mesmo movimento de ontem, com a mesma agressividade. A terra em sua frente se parte violentamente, cuspindo para fora um paredão de rochas deformadas que, ao atingir o mesmo carro velho de antes, o parte no meio, jogando suas duas metades para os lados. Hansel cai para trás, sentado no chão.

– Boa! Conseguiu! – Ando até ele e o ajudo a levantar, dando leves tapas em suas costas. – Viu só o que eu disse?!

– Certo, certo, eu dou o crédito a você! – diz ele sorrindo.

Nós passamos mais alguns momentos treinando seus movimentos com a terra, até que escurece e chega a hora de voltarmos a S.E. Eu posso dizer que o dia foi muito produtivo hoje, Hansel conseguiu entender o básico de como dobrar a terra. Mas ainda há um grande caminho pela frente, precisamos trabalhar seu condicionamento físico, ele ainda não tem muito fôlego para fazer várias sequencias sem se cansar. Acho que vou ter que bater nessa tecla mais pesado daqui para frente.

Está escuro, não porque é noite, mas por nuvens escuras no céu, e frio, tão frio que meu corpo treme. Enquanto sinto o vento soprar contra meu corpo, me encontro em uma clareira, rodeada pela floresta, que sobem pela montanha. Este lugar é familiar para mim, mas não sei dizer de onde. Quando já estive aqui?

Sob meus pés, vejo uma gigante plataforma hexagonal feita de cristal azul, tão brilhante que parece estar viva. De três de suas pontas, três pilares de cristal crescem, convergindo para um único ponto sobre a plataforma: o seu meio. E uma vez que as pontas dos três pilares se tocam, um novo cristal se forma, este com várias pontas saindo de si; tão brilhante que parece até mesmo uma estrela.

Eu olho para as árvores da floresta, dançando com o vento forte contra elas. Ele está aqui de novo, seja lá o que for. A sensação de terror me assombra mais uma vez, tão sufocante que me faz querer cair em lágrimas de desespero. As árvores são consumidas pela névoa azul-escuro, que parece estar corrompida por pura trevas. Ela se aproxima lentamente, mas a cada metro mais perto, sinto meu desespero aumentar, mais e mais. Até que não me resta mais nada, a não ser esperar. Fecho meus olhos e quando os abro novamente, estou no quarto do bloco D.

Dou um salto para frente, me sentando em minha cama, ofegante. Enji acorda assustado, olhando para mim com confusão em seu rosto.

– Ei! O que ouve? – pergunta ele, se levantando e vindo até mim. – Hansel?

Não respondo, não consigo dizer uma só palavra, apenas fico ofegante, como se tivesse acabado de ter um encontro com a morte em si. Olhando para meu corpo, percebo uma luz vinda da janela, que está com as cortinas abertas. Me levanto e abro o vidro, observando o brilho que parece me chamar: a lua cheia. Ela está me chamando...

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