1.1 | U.S.E.
21/02/2022
Os raios do sol, adentrando meu quarto pela janela, incomodam meu rosto, me fazendo, aos poucos, despertar para um novo dia. Deslizo minhas mãos por meu rosto, ainda sonolento.
– Enji, café da manhã está pronto! – Ouço a voz de tia Anastásia vinda de fora do meu quarto.
Solto um bocejo e balanço minha cabeça, um pouco desorientado. Ando até minha cômoda de roupas e pego uma camisa usada que deixei em cima dela ontem a noite. A visto e saio do quarto, apenas para dar de cara com minha tia passando pelo corredor.
– Uau! – deixo escapar, no susto.
– Oh! Acordado, finalmente! – diz ela, desviando de onde estou e andando em direção à sala. – Apresse-se e tome seu café, não quero que se atrase para seu primeiro dia de aula!
– Primeiro dia de aula...? – pergunto confuso. Mas então, meu corpo se energiza ao receber em minha mente as memórias do que ainda não havia lembrado: hoje é o início do ano letivo na Universidade Seres-Éter. – Primeiro dia de aula!
– Sim. Você já se esqueceu? – Ela não olha para mim, está focada em seu celular, parece estar fazendo algo importante. – Vê só? Depois você não quer que eu me preocupe em ter que deixá-lo viver sozinho num dormitório da S.E...
Suspiro profundamente, aborrecido.
– Qual é, tia Ana? Eu não sou uma criança...
– Ainda assim, consegue agir como uma quando mais precisa agir como um adulto – diz ela, colocando sua bolsa no ombro e vindo até mim. – Não se esqueça de sair daqui antes das 8h, ou vai perder seu ônibus!
– Não se preocupe, eu dou conta – digo confiante.
Ela me abraça forte. Depois, coloca suas mãos em meus ombros.
– Cuide-se, Enji! – Sinto sua mão e meu rosto, enquanto acaricia minha bochecha. – Preciso ir agora.
– Eu vou, prometo – digo. Ela me deixa e anda até a porta de saída. Tia Ana olha mais uma vez para mim, antes de suspirar e deixar a casa, partindo para o seu trabalho.
Ela é forte, durona, mas sei que está se corroendo por dentro em ter que me deixar ir. Depois do que minha mãe fez, não poderia culpá-la. Bom, mas não é como se um forte e corajoso ser do fogo como eu não pudesse dar conta de morar sozinho por alguns meses. Hora de parar de enrolação e ir me preparar.
Nos seguintes 30min, tomo meu tempo para comer e me arrumar para sair. Ainda bem que fiz minha bagagem antes de ontem, isso me poupou bastante tempo. Pela primeira vez na vida, ponho os pés para fora da casa que cresci sem a intenção de voltar tão cedo. Hora de cair na estrada. Próxima parada: a grande capital da ilha, Dunamous!
A cada começo de ano, todo ser-éter da Ilha Cristal que completou, ou está para completar, vinte anos de idade é chamado a se matricular na Universidade S.E. É um processo obrigatório, similar ao alistamento militar de humanos comuns. Os seres-éter deixam suas casas por três anos, podendo retornar para passar as férias. Nesse tempo, somos ensinados a usar nossos poderes da melhor forma que possa servir de utilidade para a sociedade, seja qual for a área.
Finalmente, chegou a minha vez! Não poderia estar mais animado! Sempre fui capaz de controlar meu poder com facilidade, mas aprender técnicas avançadas com os mais capacitados mestres é outro nível.
Já no terminal, entrego meu bilhete ao motorista e entro, andando até o meu assento; sorte a minha ter comprado o último lugar com janela... A viagem de Blulaquê até Dunamous dura cerca de 2h30min, então vou chagar quase no horário da cerimônia de abertura. Porém eu suponho que não tenha problema, afinal, ela não é obrigatória. O primeiro dia de aula é apenas apresentação de como o curso de individualidade éter funciona. O importante é chegar no meu quarto, desfazer a minha mala e conhecer quem será meu colega.
De primeira, estava um pouco relutante em dividir um quarto com um estranho qualquer, mas não será grande coisa, sempre fui popular na escola, rodeado de pessoas, lidar com mais um vai ser moleza. E se ele for bonito, bem... Definitivamente vai ser interessante.
Coloco um tapa-olhos e me aconchego em minha poltrona. Só mais poucas horas, Enji, logo vamos estar diante a um novo começo.
Após toda a viagem de ônibus, finalmente chego a rodoviária de Dunamous. Ainda bem que ela fica próximo da universidade, assim não vou precisar andar muito até lá; imagino que tenha sido uma estratégia de construção, já que a S.E. recebe vários alunos, todos os anos, tanto de Askia quanto de Blulaquê, isso sem contar os que vêm de fora da ilha.
Enquanto retiro espero para pegar minha mala, sinto meu celular vibrar em meu bolso. Percebo, então, que estou recebendo uma ligação de Sarah, uma amiga de ensino médio que também entrará na universidade este ano; ela já estava em Dunamous há quase uma semana.
– E aí, Sarah!? – Atendo à sua chamada.
– Fala, zé fogoso! – Sua voz energética vibra em minha saída de som, havia esquecido em como ela fala alto às vezes. – Cadê você? A cerimônia de iniciação já acabou!
– Desculpe, acabei não conseguindo chegar a tempo, a viagem demorou um pouco mais do que o esperado – respondo.
– É, isso eu já percebi, não é? – diz ela rindo. – Enfim, uns amigos e eu vamos almoçar na cafeteria do campus, nos encontre lá, quero te apresentar a minha turma.
– Fechou! Logo mais chego por aí!
– Então, é ficha, parceiro! – Ela desliga.
Bom, essa é a Sarah... Livre, leve e solta como todo bom ser do vento. Acho melhor não a deixar esperando por muito tempo.
Decido ir direto à cafeteria do campus, mesmo com minha mala; levaria tempo demais até encontrar meu bloco e meu quarto, acho melhor almoçar primeiro. Enquanto ando, aproveito para observar os meus arredores. Há tantos estudantes por aqui, tantos seres-éter num só lugar, brincando com seus poderes, com os pequenos dragões, como se não tivessem nada a temer. É proibido por lei usá-los em público, a menos que você tenha uma permissão ou diploma de individualidade éter, mas aqui, todos parecem não se importar. É como se estivessem livres, sem regras.
Não demoro muito até chegar no local; coisa boa que foi inventada são as placas de sinalização, afinal, este lugar é gigante! Logo vejo Sarah e mais duas pessoas, um homem e uma mulher.
– Enji, meu parceiro! – grita ela, assim que me vê, de longe, vindo até mim e me dando um abraço um tanto invasivo. – Finalmente resolveu dar as caras, depois de tanto tempo.
– Faz só um mês desde que nos vimos, nem é tanto tempo – digo, me abaixando um pouco para ficar à sua altura. Seres do vento geralmente são mais baixos e magros, pois precisam ter corpos leves e ágeis para manipular o vento, mas eles nunca passam despercebidos, Sarah não é uma exceção. Pele clara, cabelos pretos e lisos, preso num rabo de cavalo, olhos puxados, escuros; eu a reconheceria em qualquer lugar, especialmente por conta de seu estilo único. Ela está usando uma blusa branca, curta, que mostra parte de sua barriga, calças azuis e coladas e um grande tênis de corrida, preto.
Os outros dois que estavam conversando com ela antes se aproximam.
– Oh, é claro! – Ela anda até o homem e o puxa gentilmente pelo braço. – Este é Caio. E essa é Helena. – Ela anda até Helena e se apoia em seu ombro.
– E aí? – diz Caio, estendendo seu punho, para que eu o cumprimente com um soco leve. Ele é alto, mais alto que eu, forte, tem pele escura, cabelos castanhos, enrolados, e olhos verdes. Sua voz é profunda e potente. Definitivamente um ser da terra, o porte físico e os olhos verdes dizem tudo. Está usando uma camisa branca, com longas mangas vermelhas, calças pretas e tênis azul.
– Ei. – Devolvo seu cumprimento.
– Então, você é o famoso Enji que a Sarah tanto fala... – Helena se aproxima. Sua voz calma e doce chama de cara a minha atenção. Ela é só um pouco mais alta que Sarah, tem cabelos ondulados, ruivos iguais aos meus, pele clara e olhos acinzentados. Está usando um vestido florido, que vai até seus joelhos, e uma sapatilha preta. A forma como ela se move, sorri, a faz parecer mais uma entidade do que uma pessoa, é quase que como se o sol refletisse em sua pele. Ela é bonita.
– Bom, eu não diria famoso, mas, sim, sou eu – respondo um pouco sem jeito, sem conseguir desviar meu olhar dela. Helena solta uma risadinha, mas até mesmo essa risadinha soa como uma música. O que é isto que estou sentindo? Ou pensando...?
– Certo, chega... Já brincou demais com ele! – diz Sarah. Helena começa a rir ainda mais. Porém desta vez, é diferente, a beleza que eu estava vendo nela se esvai aos poucos e passo a vê-la apenas como uma garota normal. É como se estivesse sobre um feitiço que acabou de ser quebrado.
– Desculpa, eu tive que fazer isso logo que o vi – diz Helena, entre sua risada. – Ele tem tanta cara de garanhão de ensino médio.
– Fazer isso... Como assim? – pergunto confuso.
Caio balança sua cabeça, evitando achar graça da situação que obviamente não está muito favorável a mim. Então diz:
– Ela é psíquica. – Ele olha para Helena, que ainda não parou de rir. – Consegue manipular as percepções de qualquer um ao seu favor. É quase como um encanto.
– A sua cara de pasmo foi impagável. Quer saber, eu gostei de você, Enji – diz Helena, ainda se divertindo com a própria travessura.
– Entendi... – digo baixo, forçando uma risada, tentando não demostrar minha vergonha. Nunca havia conhecido um ser psíquico antes, eles são um pouco raros, geralmente pertencem a um alto nível na sociedade e participam de uma grade curricular diferente da dos seres elementais.
– Vocês dois estão sendo valentões! – diz Sarah, ficando ao meu lado e colocando sua mão em meu ombro. – Olha só, ele está todo envergonhado!
– Não, não estou! – digo, forçando uma atitude mais relaxada. – Essa foi boa, Helena, me pegou de surpresa...
– Sim, claro... – diz ela, com um sorriso no rosto. Sabe que estou fingindo, seres psíquicos são telepatas, podem ouvir pensamentos e sentir emoções de outras pessoas. Estou vendo que não vou gostar muito dela...
– Bom, deixando as piadas de lado, vocês não estão com fome? Porque eu estou. – Caio muda o assunto.
– É claro, estamos aqui para comer, afinal! – diz Sarah. Ela anda até a minha mala e a puxa em direção à entrada da cafeteria do campus. – Por que você trouxe esta coisa mesmo?
– Era isso ou deixar vocês esperando mais meia hora até encontrar meu quarto – digo, pegando a mala dela.
– Justo... – Sarah passa a minha frente.
Nós quatro escolhemos uma mesa e pedimos nossas refeições. Passamos algum tempo conversando, conhecendo uns aos outros; ou, no caso, eu conhecendo Caio e Helena. Eles são divertidos de ter por perto. Caio, apesar de ser um pouco mais na dele, gosta de esportes com elementos, algo que temos em comum. Acredito que vamos nos aproximar mais com o tempo. Helena, por outro lado, é carismática, um tanto arrogante, mas não chega a ser desagradável; se dá muito bem com a Sarah. Ela quer seguir a área de advocacia, por ser psíquica. Posso dizer que é um grupo incomum, mas acredito que me encaixo bem nele, imagino que serão as pessoas com qual vou dividir mais meu ano.
Enquanto aproveitamos nossas companhias, um silêncio súbito invade a mesa. Fico sem entender por um momento, até perceber todos olhando para uma direção específica: a porta de entrada da cozinha da cafeteria.
– Oh, olha quem está ali... – diz Helena. Me viro para ver de quem ela está falando e vejo um homem, jovem como nós, provavelmente nossa mesma idade, conversando com um dos funcionários.
Ele é branco, quase pálido, tem cabelos pretos, tão escuros quanto o próprio céu noturno. Usa uma camisa verde, por baixo de um suéter aberto vermelho-vinho, calças azuis e sapatos pretos. Quando termina sua conversa e se vira em direção a nós, indo até a saída, sua expressão séria e gélida leva a minha visão aos seus olhos. Azuis, profundos como o próprio oceano, penetrantes, que encontram os meus brevemente, assim que passa por nossa mesa. Tudo o que consigo sentir é um enorme calafrio, que atiça todos os pelos do meu corpo, é como se tivesse acabado de receber um abraço do próprio inverno.
– Quem é aquele cara...? – pergunto, ainda com o estômago embrulhado.
– Hansel Johnson... – responde Caio. – Filho do diretor de S.E., também seu assistente em algumas questões acadêmicas.
– Ele é difícil de descrever... – diz Sarah. – Imagina alguém intocável, inalcançável. Nunca erra uma só palavra quando discursa, nunca mostra qualquer sinal de fraqueza.
– Ele teve nota máxima em todas as matérias do ensino médio, de todos os anos. Sempre foi representante, presidente do grêmio, sempre teve em suas mãos as responsabilidades mais importantes e difíceis que um aluno já chegou a ter na escola e nunca, nunca, cometeu um só erro em nenhuma delas, obviamente não seria diferente na universidade – diz Caio. – Todos os universitários que vêm do ensino médio da S.E. conhecem a reputação dele e o respeitam.
– Você quis dizer: "o temem" – diz Helena. – E não é de se surpreender, Hansel é uma figura tão estranha que nem mesmo os seres psíquicos conseguem ouvir seus pensamentos ou sentir suas emoções, eu já tentei... Às vezes eu me pergunto se ele está mesmo vivo, ou se é mesmo um humano.
– Isso é loucura! – digo, duvidando de tudo o que disseram. – Um cara não pode ser tudo isso, vocês estão tentando me pregar uma peça igual mais cedo.
Helena deixa escapar uma risada, mas não de graça, e diz:
– Ninguém ousa fazer piadas com o nome dele... Ninguém tem coragem.
Me viro para a saída da cafeteria, pensando no que acabei de ouvir sobre esse tal de Hansel... Eles devem estar exagerando, não é possível que um aluno comum tenha construído uma reputação tão grande em menos de vinte anos só por ser o filho do diretor. Ele não é tudo isso...
– Bom, vocês já viram em qual bloco dos dormitórios vão ficar? – pergunta Sarah.
– Sim! Eu vou ficar no bloco D – responde Helena.
– Ótimo! É o meu bloco! Vamos ser vizinhas! – Ela abraça Helena, que não parece gostar muito do ato, mas não resiste.
– Espera, eu também vou ficar no bloco D! – diz Caio.
– Não brinca! – Sarah faz uma cara de surpresa e alegria. – Isto vai ser totalmente show! Enji, me diz que você vai ficar no bloco D também!
– Na verdade, eu ainda não olhei... Me deixe ver! – digo, tirando meu celular do bolso.
Entro no aplicativo da universidade, para checar meu bloco e o nome do meu colega de quarto, enquanto Sarah me julga por ainda não ter visto. Vou passando pelas opções, até chegar na aba principal de informações do aluno, onde encontro os números de alguns documentos meus, individualidade, tipo de sangue etc.
Dormitórios, bloco... D! Ótimo, vou ficar junto com eles! "Quanto número 5, pertencente aos alunos..."
Meu corpo trava, por um momento, ao ver o nome que aparece logo após o meu. É como se o frio que acabei de sentir tivesse retornado subitamente. Sinto até mesmo uma gota de suor escorrer da minha testa.
"Quarto número 5, pertencente aos alunos: Enji Hofftake e Hansel Johnson."
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