E se | Hansel tivesse crescido controlando seus poderes?

Há um fasto universo afora do que conhecemos dentro dos limites da Terra. E há um multiverso ainda maior do lado de fora das barreiras do universo que conhecemos, contendo as mais exóticas e únicas realidades além de nossa compreensão.

Esta é a história de quando um jovem extremamente poderoso quebrou a densa barreira entre tais universos. Na linha do tempo que você conhece, o jovem Hansel cresceu reprimido por seu pai, mas na realidade que está prestes a conhecer, a história seguiu um pouco diferente. Em vez de temer o poder do próprio filho, Robert Johnson o treinou para que pudesse aprender a controlá-los.

De muitas das variações que esta realidade poderia ter tomado, esta é uma delas. E se... Hansel tivesse aprendido a controlar seus poderes desde a infância?

As coisas têm estado bastante intensas na cidade nesta semana. Hoje é vinte e três de dezembro, época de Natal. Todos estão às pressas em buscas de seus presentes, planejando seus eventos, trabalhando, passeando. O movimento da cidade simplesmente não parece morrer. E para mim, estou feliz de finalmente poder terminar meu turno e voltar para casa.

Dirijo lentamente pela rua da minha casa, apreciando a paisagem de fim de dia que o sol proporciona, deixando tudo mais bonito. Assim que estaciono meu carro na garagem de casa, retiro meu celular do suporte e mando uma mensagem para meus amigos:

"Vocês estão prontos para hoje?"

Apenas alguns segundos depois recebo uma notificação de resposta. A mensagem é de Helena:

"Estarei chegando alguns minutos atrasada, mas não vou demorar muito."

Caio responde logo em seguida:

"Já estou a caminho."

E a outra mensagem é de Sarah:

"Vou demorar por volta de uma hora para chegar."

Uma vez que nem eu e nem Hansel temos família na cidade para passar o Natal, resolvemos convidar Caio, Sarah e Helena para comemorar conosco. Eles estarão acampando em casa pelos próximos dois dias, aproveitando o final de semana.

Percebo que logo mais abaixo há uma mensagem não lida de Hansel. Ela diz:

"Estarei trabalhando em algo importante durante o dia inteiro, não posso ser interrompido. Me avise quando o pessoal chegar."

Deixo um leve suspiro escapar ao ler sua mensagem. É claro que ele não poderia descansar por um minuto sequer, é do Hansel que estou falando...

Saio do carro e o tranco, andando em direção à fachada da nossa casa. Este lugar é tão grande, tão bonito, e tão vazio ao mesmo tempo. Desde que senhor Johnson faleceu, Hansel jamais foi o mesmo. Ele se tornou ainda mais frio do que era quando estávamos no primeiro ano da U.S.E. É difícil pensar que o homem pelo qual me apaixonei poderia ficar tão diferente, às vezes não o reconheço.

Pego minhas chaves e abro a porta da frente, entrando na sala de estar. Fiz o possível para colocar o máximo de decorações de Natal que consegui. Pus desde luzes coloridas pelas paredes a guirlandas nas portas. A árvore próxima do sofá da sala é o meu maior orgulho, vamos colocar os presentes do nosso amigo secreto embaixo dela. Quero fazer com que o momento de hoje, amanhã e depois nos lembre dos velhos tempos, quando costumávamos almoçar no refeitório da universidade e conversar sobre o dia a dia. Talvez desse jeito, talvez criando esse ambiente de nostalgia, eu consiga trazer ele de volta para a realidade.

Passo alguns minutos fazendo minha rotina noturna, procurando não perturbar Hansel com seu trabalho no andar de cima. Banho, roupas limpas e, finalmente, o jantar. Decidi preparar algo mais leve para hoje, uma vez que vamos passar a maior parte do tempo assistindo filmes na TV da sala. Com certeza não vou deixar faltar pipoca!

Após bastante trabalho me certificando de que tudo saia perfeitamente, ouço o som da primeira campainha da noite. Finalmente um deles chegou! Me apresso para ir até a porta e assim que a abro, vejo Caio em frente a mim, segurando uma caixa embrulhada em suas mãos.

– E ai! – diz ele com um leve sorriso no rosto, a famosa cara de Caio.

– Ei! – Eu o abraço rapidamente. – Como vai, parceiro? Chegou mais cedo do que esperava!

– Digamos que eu tive a sorte de fugir do trânsito na vinda para cá – responde ele, entrando na sala de estar. – Onde posso deixar isto? – ele aponta para o presente em suas mãos.

– Pode deixar embaixo da árvore – respondo, apontando para ela.

Caio o guarda onde indiquei. Levamos um tempo para colocar a conversa em dia, falar sobre as coisas do trabalho. Caio e eu passamos mais tempos juntos do que tenho a chance de passar com Sarah e Helena, já que nós dois trabalhamos como vigilantes na mesma agência, mas é raro ficarmos no mesmo grupo de patrulha.

Enquanto a conversa rola, o tempo passa até a chegada das duas que estavam faltando. Logo, todos se sentam nos sofás da sala para interagirmos antes do jantar.

– Esta casa é um pouco menor do que eu me lembrava – diz Helena, olhando ao redor.

– Você sempre tem que fazer um comentário chato sobre alguma coisa, não é? – diz Sarah aborrecida.

– Eu sou uma pessoa sincera, querida, mas entendo que nem todos consigam aguentar – responde Helena diretamente para Sarah.

Essas duas nunca se deram muito bem, nem mesmo na época da U.S.E., apesar de que ainda se importam uma com a outra. É uma amizade um pouco estranha, não sei dizer o que nelas faz com que não se odeiem completamente. Mas tenho total certeza de que são amigas, mesmo que adorem se provocar.

– E lá vão elas... – diz Caio, observando a discussão entre Sarah e Helena.

– Sarah e Helena sendo Sarah e Helena... – digo, me lembrando de algumas situações que passamos no primeiro ano. Nunca me esqueço do dia que elas começaram uma briga de comida no refeitório. Senhor Johnson nos deu castigo de uma semana por causa daquilo. Fomos forçados a limpar nas horas vagas durante todo esse tempo.

– A propósito, cadê o seu marido? Por que ele não está aqui com a gente? – pergunta Caio, me fazendo hesitar em dar uma resposta. Não quero fazer soar como se Hansel não quisesse estar aqui.

– Isso que eu ia perguntar, cadê o nosso querido Guardião? – pergunta Helena, interrompendo sua discussão com Sarah.

– Provavelmente deve estar fazendo coisas de Guardião – responde Sarah do outro lado da sala.

– Eu simplesmente amo quando ele faz coisas de Guardião! Ainda não acredito que ele conseguiu criar um feitiço que ajuda nós telepatas a compartilharmos uma conexão psíquica com outra pessoa! – diz Helena.

– E tem também a descoberta de que alguns seres da terra conseguem controlar o metal usando as pequenas partículas de terra dentro dele! – diz Caio.

– Às vezes é até estranho pensar que estamos visitando a casa da pessoa mais famosa do mundo inteiro, não é mesmo? – diz Sarah.

Seus comentários fazem com que um pequeno desconforto comece a crescer dentro de mim, especialmente porque são os motivos pelo qual meu casamento está indo por água abaixo. Hansel é o homem mais poderoso da terra. Sua engenhosidade em combinar os poderes dos seres-éter entre si fez com que ele descobrisse muitas coisas sobre tais habilidades que muitos cientistas ainda não haviam descoberto. É basicamente isso que ele faz todos os dias, estuda sobre a quintessência, combina habilidades e escreve feitiços.

De um ponto de vista científico, ele está fazendo a humanidade avançar de forma absurda. A vida têm se tornado muito mais fácil nos últimos cinco anos que ele esteve atuando na área. Eu deveria estar orgulhoso dele por isso; eu estou, na verdade. Hansel é meu marido, seu sucesso me deixa feliz. O problema é que sinto como se eu não tivesse mais espaço no seu dia a dia. Me sinto deixado de lado porque ele coloca seu trabalho em frente a tudo. Ele prometeu ao senhor Johnson que usaria seus poderes para o bem maior, antes de ele morrer, mas tenho a sensação de que ele deixou essa promessa escurecer a sua visão para a vida em si.

– Bom, o Guardião está no andar de cima trabalhando! – digo em tom de aborrecimento, interrompendo todos eles. O silêncio se instaura no ambiente por alguns segundos, me fazendo perceber que talvez tenha deixado as coisas um pouco constrangedoras. – Desculpa, pessoal...

– Tudo tranquilo – diz Sarah. – A gente deveria saber que é um assunto um pouco sensível para você. A culpa é nossa!

– Ela está certa – diz Caio.

– É... Isso aí que ela disse... – fala Helena, cruzando os braços.

Deixo um suspiro vindo do fundo do meu ser sair. Me afundo no sofá, olhando para a TV.

– Ele provavelmente vai descer daqui a um tempo. Vamos só começar com algum filme até lá – digo, me levantando e pegando o controle da TV.

– Provavelmente é a melhor ideia até agora – diz Sarah.

Ligo a TV e passo por alguns dos filmes salvos que havia selecionado para hoje, enquanto Sarah e Caio discutem sobre qual é melhor para assistir. A grande maioria é ficção científica, já que é o tema que mais gostamos.

– Quer saber? Não! – diz Helena, se levantando do sofá. – Hansel marcou de passar o tempo com a gente hoje, ele vai ter que cumprir com a promessa!

Ela vai em direção às escadas que leva ao andar de cima, dando passos pesados, visivelmente aborrecida.

– Helena, espera! – digo, indo atrás dela. Ouço os passos dos outros vindo atrás de nós. – O que vai fazer?!

– Vou lá dizer uma boas para ele! – responde ela em tom de raiva. – Sabe, eu sou telepata, eu consigo sentir o quanto isso está magoando você! E não estou gostando!

Por um momento, fico sem reação. Ela está certa, estou magoado. E por um momento, esqueci de que ela poderia sentir isso também. Mas não sei o que fazer, Hansel não me dá abertura para falar sobre o assunto. Não sei dizer se faz de propósito ou se não percebe, mas o fato é que não sei como resolver esse problema diretamente.

Decido não impedir Helena. Ela sobre às escadas e eu a sigo, até chegarmos em frente à porta do escritório de Hansel; os outros vêm logo atrás. O andar de cima não é muito grande, possui apenas um quarto e um banheiro. Costumava ser o quarto que iriamos montar para quando quiséssemos ter um bebê, mas isso foi antes de tudo dar errado, antes de senhor Johnson sofrer o acidente.

Assim que Helena se vê em frente à porta, ela para de andar e coloca a mão na cabeça.

– O que foi? – pergunta Caio.

– Tem alguma coisa errada com essa sala – responde Helena. – Não estou sentindo uma energia boa.

– Como assim? – pergunta Sarah.

– É energia psíquica. Mas é diferente, é muito forte – responde ela. Me sinto começar a encher de preocupação. Como uma telepata, Helena é sensível à energia de outros telepatas. Se ela está sentindo algo, quer que dizer que tem coisa errada.

– Tem certeza de que quer interromper o Guardião com o que quer que ele esteja fazendo lá dentro? – pergunta Sarah.

– Ela não, eu – digo, criando coragem ao descobrir que algo pode não estar certo.

Passo a frente de Helena e abro a porta do escritório, revelando uma visão que me assusta por um momento. Vejo os objetos do escritório flutuando no ar, como se não existisse gravidade, enquanto Hansel flutua com as pernas cruzadas, olhos fechados e mãos estendidas. Vejo energia azul sendo emanada do seu corpo, iluminando toda a sala, e formando uma coroa na sua cabeça. Eu reconheço o formato dessa coroa, ela tem duas pontas nas laterais de sua testa e mais três no meio, logo acima do seu nariz. Ela só aparece em sua testa quando usa seus poderes mais do que o normal. Ao redor de Hansel, vejo alguns orbes que luz azul cintilando no ar, conectados por tentáculos de energia que saem das costas dele.

Mas que porrr... – diz Sarah ao ver a cena.

Assim que adentro a sala, sinto o peso da energia nela, seja lá o que ele está fazendo, está mexendo com o tecido da realidade. Me aproximo de Hansel até segurar seus ombros e sacudi-lo o mais fortemente possível. Ele abre os olhos com um sustos e toda a energia ao nosso redor desaparece. Ela acaba caindo por cima de mim, nós dois vamos para o chão. Hansel olha confuso ao redor até perceber o que aconteceu.

– Enji? – diz ele confuso, se levantando. – O que você fez?

– Você estava levitando e tinham tentáculos de energia saindo de você, eu entrei em pânico, ok?! – digo me levantando. – Essa pergunta deveria ser feita por mim! O que você estava fazendo?!

– Relaxa! Eu só estou trabalhando em um feitiço novo... – responde ele aborrecido.

– Isso não é só um feitiço, Hansel... – diz Helena se aproximando. – Eu senti. Isso tem alguma coisa a ver com controle mental.

– Ei! Você sabe que controle mental é proibido entre os telepatas! – diz Sarah se aproximando.

– É claro que eu sei, fui eu quem iniciei a discussão que resultou na aprovação dessa lei! Não é nada do que vocês estão pensando! – responde Hansel em tom de raiva. – Aliás, vocês nem mesmo deveriam estar aqui! Eu me certifiquei de avisar que estava ocupado!

– Ei! Estamos aqui porque você marcou um compromisso com a gente e decidiu não ir! – diz Caio com tom de raiva. – Se você não queria que víssemos aqui, não deveria ter deixado Enji nos convidar!

Hansel faz cara de surpresa por ouvir as palavras de Caio, é a primeira vez que os dois discutem. Ele, então, muda seu rosto de volta para sua expressão vazia.

– Não foi isso que eu disse – responde ele em tom calmo.

A sala fica em silêncio por um tempo, enquanto Hansel dá algumas voltas por ela; parece estar pensando em algo específico.

– Em que tipo de feitiço estava trabalhando? – pergunta Helena.

– Bom, já que todos resolveram invadir minha sala para ver, imagino que não vá fazer mal compartilhar – diz ele aborrecido. Hansel anda até uma lousa que fica grudada na parede e aponta para alguns cálculos escritos nela. – Nós todos sabemos que o multiverso é real, foi comprovada a sua existência há muito tempo por oráculos do passado. Mas nós nunca fomos capazes de interagir com uma realidade alternativa diretamente, apenas ver pequenas partes suas.

– Então, você está tentando abrir um portal para outro universo? – pergunta Sarah, se aproximando do quadro.

– Não exatamente. É um pouco mais complexo que isso – responde Hansel, apontando para um outro desenho que está mais ao lado do quadro, um desenho de dois cérebros e algumas linhas os conectando. – É um fato que existam versões alternativas nossas em outras realidades resultadas de ramificações em linhas temporais. O feitiço combina telepatia e as habilidades de um oráculo de enviar sua consciência para outra linha do tempo para se comunicar com uma versão alternativa da pessoa que o lançar.

– Como uma chamada entre realidades... – diz Helena.

– Exatamente – conclui Hansel.

– Isso parece ser perigoso – diz Caio. – Se ninguém jamais foi capaz de interagir com outro universos, em meio a tantos que existem, talvez haja um motivo.

– É claro que há um motivo! E eu o chamo de falta de visão! – responde Hansel. – Eu tenho o poder para fazer algo do tipo acontecer e vou usá-lo! Imagine o que poderíamos descobrir coletando conhecimento de outras realidades! Isso poderia mudar o nosso mundo para sempre!

Todos ficam em silêncio, pensando na argumentação de Hansel. Ele soa bastante convincente. O multiverso nunca foi um assunto do meu interesse, mas sei que sempre foi um mistério para muitos. Se ele conseguir fazer o que está tentando, as coisas que descobrir nos outros universos podem revolucionar a vida de maneiras que ele não foi capa de fazer mesmo com todo o poder que tem. Mas Caio também soa convincente. E se houver mesmo um motivo pelo qual ninguém jamais foi capaz de fazer isso?

– Você já conseguiu fazer esse feitiço funcionar alguma vez? – pergunta Helena, quebrando o silêncio.

– Não exatamente... – responde Hansel antes de dar um suspiro de frustração. – Toda vez que alcanço alguma versão alternativa e tento me conectar com ela, sou jogado de volta para a nossa realidade.

– Bom, consigo ver por que isso está acontecendo... – diz Helena olhando para o quadro de Hansel.

– O que quer dizer? – Hansel arqueia uma sobrancelha.

– Você está tentando usar controle mental para se conectar com sua versão alternativa, pude sentir do lado de fora da sala – responde Helena. – Todo telepata é sensível à telepatia externa. Suas versões alternativas obviamente vão sentir a sua presença e expulsá-lo para fora de suas cabeças se tentar controlá-los. A menos, é claro, que você faça isso com alguma versão que não tenha poderes.

– Bom, então, o que você sugere? – Hansel cruza os braços, olhando para Helena.

– Você poderia tentar uma conexão verdadeira. Você sabe, ver as memórias, sentir as emoções, acessar suas habilidades, ver o mundo através dos olhos deles, sem tentar controlá-los. Desse jeito, sua presença provavelmente não vai ser detectada – responde ela, deixando Hansel quieto e pensativo.

– Não é tentando me intrometer, mas acho que ela está certa – digo a Hansel.

Ele coloca seu dedo indicador em seu queixo, olhando para o nada, processando a informação em sua mente. Ele fica tão fofo quando está concentrado desse jeito... Mas eu não deveria estar pensando nisso agora! Foco, Enji, estamos lidando com algo sério!

Balanço minha cabeça para focar no presente.

– Isso pode funcionar! – diz Hansel para Helena. – Obrigado! Até que a invasão de vocês valeu de alguma coisa.

Hansel apaga algumas das coisas escritas no seu quadro e escreve outras no lugar. Ele move sua mão rapidamente pela lousa já suja; sua letra é um tanto garranchada por causa da velocidade, sempre foi. Ele me diz que tenta acompanhar a velocidade de seus pensamentos enquanto escreve, por isso fica assim. Toda vez que penso nisso, fico imaginando que sua mente deva ser uma grande bagunça, e eu amo essa bagunça.

Assim que termina de escrever, Hansel dá um passo para frente do quadro e fecha seus olhos. Nós olhamos uns para os outros confusos.

– O que está fazendo? – pergunto.

– Lançando o feitiço – responde ele sem abrir os olhos.

– Espera, agora?! – pergunto.

– Exatamente. Portanto, preciso que vocês se distanciem e permaneçam em silêncio para não me distraírem – responde ele, fazendo pequenas esferas de energia aparecerem em suas mãos.

Dou um passo para trás, tomando distância. Os outros fazem o mesmo. Estou um pouco nervoso. Mesmo que essa ideia possa se tornar uma grande revolução para o mundo, não estou com uma sensação boa. Mas quero dar apoio a ele, quero que ele se sinta feliz, mesmo que isso esteja distanciando a gente.

Hansel junta as costas de suas mãos uma na outra e as traz até a altura de seu queixo, inspirando profundamente enquanto faz isso. Ele, então, estende sua mão esquerda e desliza seus dedos da mão direita por todo o seu braço até tocar em sua testa. Ele faz o mesmo movimento com o braço direito, porém, desta vez, toca seus dedos da mão esquerda em seu coração. Alguém que não sabe o contexto disso tudo provavelmente o acharia louco por fazer essas coisas, mas para ele, cada mínimo movimento precisa ser feito com perfeição, ou o feitiço poderia sair completamente errado.

Hansel junta suas duas mãos, criando uma esfera de energia sozinha, e a separa em duas, que descansam sobre as palmas de suas duas mãos, viradas para cima, relaxadas em sua lateral. Ele lentamente começa a flutuar do chão, cruzando as suas pernas, como se estivesse sentado no ar. Seu corpo se ilumina pela energia azul, enquanto os tentáculos saem de suas costas e se espalham pela sala, criando pequenas esperas de energia que se conectam por eles. As luzes da sala começam a piscar e outros pequenos objetos flutuam também. Vejo a sua coroa de energia se formar na sua cabeça. E assim ele fica, quieto, sem se mover.

– Na moral, viado... – diz Sarah assustada.

– Eu sei... – respondo.

Já vi Hansel fazer coisas assustadoras várias vezes em minha vida, mas nunca como esta. Sinto meu corpo se arrepiar da cabeça aos pés. Parece até que consigo sentir a quintessência que seu corpo transmite, acho que todos nós sentimos. Bom, agora, resta esperar para ver no que isso vai dar.

O universo... é tão maior do que nós imaginamos. Cada pequena decisão, cada pequeno objeto colocado num lugar diferente pode causar grandes ramificações.

Sinto meu corpo inteiro relaxar, até perder completamente meu tato. Me vejo viajando entre os tentáculos, atravessando as muitas linhas do tempo que se espalham por todo lugar. Tantas bolhas, um número infinito delas. Tento me concentrar em uma delas, na que me chama mais alto.

– Filho? – Ouço uma voz vinda de algum lugar, baixa, abafada, mas a reconheço muito bem. – Filho? – Ela chama novamente.

Me deixo ser levado pela voz, atravessando a vasta imensidão de bolhas até chegar exatamente onde quero ir. Me vejo indo rapidamente em sua direção e, assim que o alcanço, toda a minha mente se invade pelas memórias. Todas ao mesmo tempo, todos os sentimentos, todos os momentos, tudo, como num único piscar de olhos.

Toda a luz ao meu redor diminui, até que me vejo sentado sobre uma toalha de praia, olhando para horizonte distante. Ouço um zumbido em meu ouvido, mas logo minha audição volta ao normal, à medida que sinto meu corpo novamente. Olho para o lado e o vejo sentado, olhando para mim com expressão confusa.

– Pai? – digo, tentando segurar em meu peito a urgência em abraçá-lo agora.

– Finalmente acordou do seu transe! – diz ele. – Aqui, peguei o sanduiche que você pediu. – Ele entrega para mim um sanduiche de atum enrolado em papel alumínio.

– Oh, desculpe! Acabei nem ouvindo! – digo a ele, segurando em mim minhas lágrimas.

Eu pego o sanduíche de suas mãos e o desembrulho. Nós os preparamos de manhã para trazermos para a praia, vamos passar o final de ano inteiro aqui, em um hotel. Eu me lembro muito bem, me lembro de tudo. Esta versão de mim, a vida dele... é como se tivesse se tornado a minha, agora. Seus objetivos, sonhos, vontades, desejos, tudo sinto como se fossem meus também.

Me sinto tão feliz, tão cheio de esperanças, vida. Este universo é diferente de qualquer outro que já vi. Minha vida aqui também é diferente. Nesta linha do tempo, papai me encorajou a aprender a usar minhas habilidades para o bem, mas em vez de estudar os mistérios do universo, decidi simplesmente levar uma vida tranquila, me tornando um professor qualquer na U.S.E. Tudo é tão tranquilo, pacífico.

– Hansel! – Ouço uma voz familiar me chamar. Olho ao meu redor, há várias pessoas na praia hoje, mas não parece que há qualquer pessoa me chamando. Que estranho... – Hansel! – A voz me chama mais uma vez.

– Falou alguma coisa? – pergunto a papai. Ele balança a cabeça, dizendo não, enquanto mastiga seu sanduíche.

– Precisamos tirá-lo de lá! Agora! – Ouço outra voz falar em algum lugar distante, mas, de novo, não vejo ninguém que possa estar falando isso. Tirar quem de onde? Será que estou imaginando coisas? – Enji, traga-o de volta!

Enji? Esse nome... Eu reconheço esse nome. Espera, Enji... Enji! Sinto meu corpo ser puxado violentamente para trás, mas algo me segura, alguém. É ele, Enji.

Enji me ajuda a me equilibrar de pé. Olho ao meu redor, estou de volta em meu escritório. Todos estão olhando assustados para mim, como se algo ruim tivesse acontecido. Enji me abraça com força.

– Ei, ei! O que é isso?! – pergunto confuso.

– Você está bem?! – pergunta ele segurando meu rosto em suas mãos.

– Sim, estou! Por que toda essa agonia? – pergunto aborrecido, sem entender o que está acontecendo. Todos eles olham para mim como se não entendessem minha pergunta. Acho que estou deixando alguma coisa passar.

– O feitiço não afetou você de nenhuma maneira? – pergunta Helena se aproximando.

– Bom, não que eu tenha ciência. De fato, funcionou perfeitamente! – respondo, andando em direção ao quadro branco na parede. – Eu não me senti tão entusiasmado com algo faz bastante tempo! Este feitiço é incrível! – Me viro em direção a eles. – Eu pude sentir tudo! Era uma vida tão feliz! Era como se eu fosse um só com a minha outra versão!

– Exatamente! Esse é o problema! – diz Helena.

– Como isso pode ser um problema? – pergunto confuso com sua afirmação.

– Você realmente não sentiu? Você estava literalmente se tornando a sua outra versão! – responde ela. – Sua mente desta realidade estava copiando a mente do outro e substituindo suas memórias, suas experiências daqui! Se Enji não tivesse interrompido o feitiço, você seria apagado da existência e ficaríamos com uma cópia da outra realidade aqui.

– Oh. Entendi... – respondo pensativo. Olho mais uma vez para o quadro, esperando encontrar algum erro de cálculo que possa ter causado isso.

– Quando você estava lá, não notou nada de diferente? – pergunta Helena.

Fecho meus olhos, tentando recuperar as memórias da outra realidade, mas elas estão extremamente embaçadas, agora. É como se estivesse voltando para casa, para seu dono. Suponho que uma conexão com outra versão minha não torne as memórias permanentes.

Abro meus olhos assim que me lembro de uma coisa específica.

– Não havia um Enji naquela realidade – respondo, me virando em direção a ele.

– O quê? – diz ele com expressão de surpresa e tristeza misturada.

– Eu me lembro com clareza, agora – Fecho os olhos novamente, repassando a cena em minha cabeça. – Pude ouvir a voz de vocês, mas não sabia de quem eram. Era como se não pudesse me reconectar com o meu eu daqui.

– Sim, foi o que eu senti – diz Helena. – Me certifiquei de observar como sua mente iria reagir ao feitiço e foi o que detectei, por isso pedi que Enji o trouxesse de volta.

– Por que você iria para um universo em que eu não existo? – pergunta Enji se aproximando, com um visível peso em seu olhar. – É isso que você tem desejado nos últimos tempos, por isso está tão distante?

– O quê? O que está dizendo, Enji?! – pergunto confuso.

– Você disse que era uma vida "tão" feliz! Quer dizer que você não é feliz comigo na vida que temos?! – pergunta ele com tom de voz alto.

– Ei, ei, ei! Não vamos tirar conclusões precipitadas assim! – Caio se coloca entre Enji e eu, segurando em seu ombro.

– Não estou tirando nenhuma conclusão! É bem óbvio o que Hansel acabou de dizer! – diz ele, se afastando de Caio e andando pela sala. Começo a sentir minhas emoções borbulharem dentro de mim. – Estive tentando de todas as formas possíveis fazer com que nos reconectássemos como um casal, mas você sempre arruma uma desculpa para enfiar nos seus tão preciosos projetos e me deixar de lado!

– Enji, eu-

– Se você seria tão feliz assim sem mim, por que não volta para lá?! – diz ele se virando para mim. Suas palavras perfuram meu peito como se fosse um tiro.

Todos na sala ficam em silêncio. Não consigo me levar a falar qualquer coisa, as palavras não saem, mas sinto tudo entalado dentro de mim. O peso de sua frase sobre meus ombros. Assim que percebe o que acabou de falar, a expressão de Enji muda de raiva para arrependimento. Vejo uma lágrima escorrer de um de seus olhos antes de ele sair rapidamente do quarto, deixando a porta aberta e a atmosfera pesada no ambiente.

– Enji! – Sarah o chama. Ela se vira para nós e então para a porta. – Vou atrás dele! – diz ela, saindo do quarto também.

Helena olha para nós e depois para a porta, antes de seguir Sarah sem falar nada.

Dou uns passos para trás, até encostar na parede onde está o quadro. Lentamente me agacho ao chão, me sentando nele e abraçando minhas pernas. Sinto algumas lágrimas escorrerem por meu rosto, mas são poucas, como se nem mesmo conseguisse chorar agora.

Ouço o som de roupas se mexendo. Olho para o lado e vejo Caio se sentando perto de mim. Ele não fala nada, nenhum de nós fala. Passamos alguns segundos assim, em silêncio, até decidir abrir minha boca:

– Acho que acabei estragando os planos para o nosso Natal, não é?

– Isso é o mínimo que me preocuparia se estivesse no seu lugar – responde Caio. Me seguro para não rir. Ele tem razão.

– Por que é tão complicado? – pergunto olhando para o chão.

– O que é complicado? – pergunta ele olhando para mim.

– Relacionamentos – respondo. – Entender como o mundo funciona parece ser uma tarefa tão mais simples. Tudo é tão objetivo, direto. As coisas são o que são. Mas quando se trata de pessoas, tudo é possível. Não há fórmula ou receita que funcione para todos. Enji especificamente, sempre foi tão difícil de entender.

– Eu não consigo identificar o que, exatamente, é difícil nele de entender, Hansel – diz Caio. Eu olho para ele. – Enji é barulhento, emotivo e tem um coração gigante. Às vezes age igual uma criança, mas sabe ser responsável. Isso basicamente resume tudo.

– Não é essa a questão... – Desvio meu olhar. – Não é como se eu não quisesse passar tempo com ele, mas eu tenho trabalho a fazer, não posso simplesmente largar tudo para dar atenção só a ele. Mas parece que ele não consegue entender isso.

– Eu entendo essa parte. Mas também entendo o lado dele – diz Caio. – Enji passou bastante tempo planejando os próximos dois dias, ele não parava de falar nisso ontem. Especialmente quando mencionava as coisas que você gosta. Então, ouvir que você estava feliz em uma vida em que ele não existe deve ser bastante doloroso. Deve ser quase como se você tivesse escolhido ir para esse universo do que para a nossa noite de filmes, a noite que ele planejou.

– Ai... – Deixo escapar, sentindo a pontada que é a sua resposta. – Deste jeito, me faz sentir como se fosse uma pessoa totalmente sem coração.

– Bom, talvez seja como ele está te vendo agora. – Caio se levanta e anda em direção à porta. – Vou ver se os outros precisam de algo. Sabe onde nos encontrar quando precisar.

Assim, sou deixado sozinho em minha sala. Olho ao meu redor, observando a bagunça de papeis no chão e objetos que já não uso há um tempo. Sei onde fica cada coisinha dentro desta sala, tudo exatamente onde deve estar, onde posso encontrar. Acho que realmente passo mais tempo aqui dentro, trabalhando, do que em qualquer outro lugar.

Balanço minha cabeça e esfrego meu rosto com minhas mãos.

O que estou fazendo?! Por que continuo com isso sem rumo algum?! Eu sei que prometi ao papai que usaria meu poder para o bem e tenho feito isso! Mas tudo parece tão vazio ao mesmo tempo. Será que perdi o meu foco?

Me levanto do chão e olho para um retrato de nós dois que guardo em cima de minha mesa. Eu o pego em minhas mãos e o observo com cuidado. Na foto, meu pai está na direita, e eu na esquerda. Este foi o dia que fui premiado por descobrir uma forma de curar doenças internas usando o sangue da própria pessoa, que pode ser usada por seres da água que seguem carreira de medicina. Essa foi minha primeira descoberta. Ele estava tão orgulhoso de mim.

Desde aquele dia, fiz tantas outras coisas que resultaram no recebimento de prêmios e ele estava sempre contente. Não havia nada que me desse mais satisfação do que vê-lo sorrir por algo que eu fiz. Até que o maldito acidente de carro aconteceu. Não fui rápido o suficiente para curá-lo antes de ser tarde demais...

Coloco o retrato de volta em cima da mesa e olho para a porta aberta, então, olho para o quadro rabiscado. Enji e eu não estamos indo bem. Talvez tenha algum lugar lá fora em que nós jamais tivemos qualquer tipo de problema. Se eu puder encontrar algo do tipo, posso aprender a como resolver nossas diferenças.

Dou um passo em direção ao quadro, mas sinto a hesitação dentro de mim. Olho mais uma vez para a porta da sala, contendo dentro de mim a vontade de descer as escadas e conversar com ele. Mas não sei o que dizer, sinto que se descer lá, só vou piorar as coisas. Me viro para o quadro novamente. Vou encontrar uma resposta lá fora. E uma vez que tiver essa resposta, vou voltar. Só preciso ajustar algumas coisas no feitiço.

Dia seguinte...

Sinto o calor das luzes do sol sobre meu rosto. Já é de manhã. Estou deitado em minha cama, embrulhado nos cobertores. Não consegui me fazer levantar depois da catástrofe que foi a noite de ontem. Sarah e Helena vieram conversar comigo, tentar me consolar depois do que aconteceu. Ajudou bastante, mas não tirou de mim a confusão de emoções que sinto.

Estou com raiva, muita raiva. Mas também me sinto culpado. Não deveria ter dito aquilo para ele. Hansel machucou meus sentimentos, mas fazer o mesmo não resolve as coisas. Ele não veio dormir, fiquei até tarde acordado esperando que ele viesse, mas não veio. Me pergunto se ficou esse tempo todo no escritório ou se foi dormir na sala.

Eu sei que os outros estão lá, me recusei a deixar que fosse embora. Eu planejei o dia de hoje por dias, não vou deixar que uma briga entre Hansel e eu acabe com isso.

Ouço o som de batidas na porta do quarto, mas decido ignorá-lo. Até que o som se repete, seguido de uma voz:

– Enji! Enji! Acorda! – É a voz de Sarah, que parece estar bem alarmada.

Me levanto da cama num pulo e vou até a porta para destrancá-la. Assim que a abro, vejo Sarah assustada.

– O que aconteceu? – pergunto confuso.

– Hansel! Ele está usando o feitiço de novo! – responde ela.

Rapidamente passo por ela e corro para o andar de cima para interromper o feitiço dele. Quando chego, vejo Helena e Caio já na sala, parados, olhando para Hansel flutuando. Parece que nós todos viemos para cá na pressa, nenhum de nós trocou de roupa, ainda estamos de pijamas.

Me aproximo de Caio e Helena lentamente.

– Ele está lá de novo – diz Helena.

– No mesmo universo de ontem? – pergunto, sentindo meu coração gelar.

– Não, é outro – responde ela. Me sinto aliviado por um momento. – Tentei interromper o feitiço, mas não consegui.

– Não há necessidade de interromper o feitiço desta vez – diz Hansel, assustando a todos nós. Ele abre os olhos, mas ainda continua flutuando e com as bolhas de energia espalhadas pela sala inteira. – Estou no controle.

– Espera, você está lá e aqui ao mesmo tempo? – pergunta Sarah se aproximando.

– Sim! – responde ele. – Essa é a forma correta de usar o feitiço. Se estou conectado nas duas realidades, não há nenhuma chance da mente de meu outro eu ser transferida para este corpo. Posso controlar os dois ao mesmo tempo.

Hansel faz um movimento em suas mãos e uma das telas do seu computador se acende, ela mostra exatamente o que a outra versão de Hansel está vendo; as coisas através dos olhos dele.

– Como está fazendo isso? – pergunta Helena.

– Construí ontem um pequeno aparelho que transcreve minhas ondas cerebrais em imagens para que vocês pudessem ver o que eu vejo! – responde ele. Sim, claro, uma das habilidades de Hansel é criar coisas que não existem a partir de nada. É a cara dele fazer algo do tipo.

– Já chega, Hansel! Esse feitiço é perigoso demais! – digo aborrecido, me lembrando de ontem. – Nós já temos problemas suficientes para lidar!

– Eu sei! É por isso que estou aqui! – diz ele. – Estou à procura da solução para os nossos problemas!

– Está falando sério mesmo?! Você prefere ir atrás de soluções em outros universos em vez de resolver o problema diretamente?! – digo irritado.

– Eu sei que soa horrível quando fala em voz alta assim, mas espero que entenda que estou fazendo isso por nós dois! – diz ele em voz calma e serena. Não soa como ele. Olho para a tela do computador e percebo que ele está de frente para alguém que tem o meu rosto. Ele está falando com outra versão minha.

– O quê? – Deixo escapar silenciosamente.

– Eu sei que você sente que não converso com você, que não te conto como me sinto – diz ele. Percebo que as mesmas coisas que ele fala são as coisas que a outra versão dele fala no outro universo. – E a verdade é que não sei como me expressar! Tenho medo de falar o que penso e acabar machucando a nós dois.

Olho para uma outra tela que monitora a atividade cerebral de Hansel e que mostra as diferenças entre ele e sua outra versão. Ele viajou para um universo em que aprendeu a expressar seus próprios sentimentos de forma pacífica. Ele está usando essa habilidade para conversar comigo agora?

– Nem ferrando... – Sarah se aproxima de nós. – Isso é incrível! Ele consegue usar as habilidades do seu eu de outro universo aqui! Consegue imaginar quantas pessoas não fariam qualquer coisa para fazer algo do tipo?!

– Acho que essa não é a hora para isso, Sarah! – diz Caio em baixo tom.

Olho de volta para Hansel.

– Foi tão difícil assim para você falar isso? – digo a ele.

– Você sabe que eu nunca fui a pessoa mais aberta com meus pensamentos – responde ele. Desta vez, a outra versão não fala o mesmo, isso vez só dele.

– Você não precisa atravessar o espaço-tempo para conversar comigo, Hansel – Me aproximo dele e seguro suas mãos. – Qualquer coisa que tiver para resolver, podemos fazer isso aqui, agora.

– Eu sei – responde ele, segurando firmemente minhas mãos. – Por isso quero te contar a verdade por trás desse feitiço.

– Verdade? – pergunto confuso.

– Todo esse tempo estive focado em trabalho tentando me convencer de que estava fazendo isso para honrar a promessa que fiz ao meu pai – diz ele. – Mas a verdade é que sinto falta dele. Trabalhar na promessa que fiz é o que mantem mais próximo dele. Eu o quero de volta.

– Hansel... – digo em voz baixa. Sinto meu coração se despedaçar ao ouvi-lo dizer essas coisas.

Acho que entendo o porquê de ter sido tão difícil para ele confessar algo assim. Não é um sentimento fácil. Eu fui tão estúpido de não ter percebido. Todo esse tempo estive focado em como estava me sentindo, não prestando atenção nos sinais. Fui egoísta.

– Criei esse feitiço para encontrar lá fora a resposta para trazer alguém de volta à vida – diz Hansel, me deixando surpreso.

– Espera, isso não é possível, não é? – pergunta Caio se aproximando.

– Para nós, não. Mas para alguém, em algum outro universo, deve ser. Tudo é possível com o multiverso – responde Hansel. – Se encontrar um jeito de burlar a morte, posso trazer meu pai de volta.

– Hansel, isso não é correto... – digo olhando em seus olhos; estão brilhando, não só com magia, mas com esperança, algo que não consigo simplesmente tirar dele.

– Preciso tentar – diz ele, olhando de volta em meus olhos.

Suspiro profundamente. Existe uma ordem natural das coisa. As pessoas nascem, crescem, morrem. Trazer alguém de volta dos mortos, por mais querida que seja a pessoa, não parece ser correto para mim. Mas Hansel... eu sei que ele faria qualquer coisa por aqueles que ama. Talvez eu devesse dar apoio a ele. Quem sabe que ele vai mesmo encontrar algo do tipo? Se ele procurar e não encontrar, vai desistir por conta própria.

– Tudo bem – digo, soltando sua mão. – Vamos estar aqui, monitorando tudo.

– Obrigado! – diz ele com um sorriso no rosto. Hansel fecha seus olhos, se concentrando no feitiço.

– Bom, vou buscar algumas cadeiras para nós! – diz Sarah.

– Eu ajudo! – diz Caio logo em seguida.

Fico em pé, observando Hansel enquanto flutua, aparentemente perdido em seu feitiço. Helena se aproxima de mim e fica ao meu lado, também observando.

– Você não parece estar confortável – diz ela.

– Não estou – respondo, cruzando meus braços. – Não acho que essa seja a resposta para a dor dele, mas não sei como ajudá-lo.

– Vou ficar de olho nos pensamentos dele – diz ela.

Aqui estou eu novamente, no infinito das realidades, viajando entre os tentáculos. Consigo ouvir tantas vozes, de tantas versões, me chamando ao mesmo tempo, mas preciso focar, preciso achar esta específica. Foco. Preciso do Hansel que aprendeu a desafiar a morte.

Me sinto ser puxado para algum lugar específico. Me deixo ser levado por ele. Viajo entre os tentáculos até encontrar exatamente o universo que preciso. Assim que chego perto, mergulho com tudo o que tenho.

Sinto meus sentidos seres recuperados. Olho para minhas mãos, então, para o local no qual estou. É... uma sala bem grande, mas não é uma sala qualquer, é uma sala inteiramente feita com paredes de pedras e cristais. Até mesmo as luzes são feitas de cristais. Percebo estar sentado em uma cadeira grande. Me levanto dela e me viro para observá-la. Não é uma cadeira, é um trono. Toda esta sala, é um salão de um palácio.

Atravesso a sala voando até chegar em uma porta bem grande. Eu a abro com meu poder e chego em uma varanda. Vejo uma paisagem arrepiadora. O céu está coberto por nuvens escuras, as árvores estão com uma cor estranha, como se estivessem doentes. Olho para baixo, percebo que o palácio está em cima da montanha, bem próximo ao topo.

Dou alguns passos para trás, assustado com o universo no qual estou.

Olho para o meu corpo, me vejo usando roupas estranhas. É um casaco azul-escuro, bem longo, com calças em algum tom de beje. A parte superior é preta, com alguns símbolos que nunca vi desenhados. Toco minha cabeça e percebo algo nela. Ao retirar, vejo uma coroa. É exatamente igual à que aparece em minha cabeça quando uso demais meu poder, só que esta é feito de material sólido e tem umas partes douradas.

– Isso não parece certo – digo para mim mesmo.

– O que não parece certo? – Ouço uma voz vinda de outro lugar. Volto para o meu universo e percebo que a voz é de Enji.

– Este universo no qual acabei parando – respondo sua pergunta, voltando para lá e observando o salão do palácio mais uma vez. – Parece uma completa desolação.

Observo com cuidado as paredes, há símbolos que nunca vi na vida escritos por todas elas, nem exceções. Fecho meus olhos assim que sinto as memórias desta versão chegarem todas de uma única vez. Sinto minha cabeça doer como se estivesse sendo esmagada. Grito bem alto com a dor.

– Hansel! – Enji se aproxima de mim, no outro universo, e tenta me puxar, mas meu corpo não se move.

Ouço Helena também gemer de dor, colocando as mãos em sua cabeça.

– Não consigo ficar perto! – diz ela com dificuldades.

Sou trazido para o universo alternativo e me sinto ser atirado para fora do corpo. Me vejo flutuando em frente a ele, mas sem estar o controlando. Ele olha confuso para mim. Eu faço o mesmo, completamente assustado. A presença dele é... aterrorizante. É como uma entidade. Dá para sentir.

– Mas que visita mais intrigante... – diz ele, olhando em minha direção.

– Hansel! Hansel! – Ouço Enji me chamar do meu universo, mas não consigo responde-lo, não consigo mover meu corpo de lá, apenas a minha alma aqui.

– Isso é impossível... – digo em baixo tom.

Minha outra versão flutua até mim, ficando cara a cara comigo.

– Bom, tudo é possível no multiverso – diz ele. – Você não aprendeu essa lição?

– Como fez isso? – pergunto assustado.

– Senti um invasor chegando e, bom, o joguei para fora – responde ele. Sua entonação na voz é diferente da minha. Ele é calmo, seco. Soa como se nem mesmo tivesse vida. – Você conseguiu fazer algo bastante extraordinário, meu amigo. Eu devo dar os meus parabéns.

– Sabe sobre o feitiço? – pergunto a ele.

– Oh, sim. Eu sei tudo o que você sabe. Suas memórias estão aqui. – Ele aponta para sua própria cabeça. Vejo um pequeno sorriso aparecer em seus lábios.

– Então sabe por que estou aqui – digo, tentando puxar o máximo de coragem que consigo, mas é difícil, nunca senti tanto medo em toda a minha vida, mesmo tendo todo o poder que tenho.

– Oh, eu sei. De fato, passei muito tempo da minha vida em busca da resposta para a sua pergunta. – Ele flutua para uma parte um pouco distante do meio do salão, indo até uma das paredes. Eu o sigo. – Dê uma olhada.

Ele faz um movimento com suas mãos e a parede se abre, revelando um caixão feito de cristal dentro. Me aproximo dele para ver quem está dentro e meu sinto o horror se espalhar por mim. É Enji. Seu corpo, completamente intacto, mas sem vida alguma.

– O que você fez?! – Me viro para ele.

– Cometi um grande erro. Passei anos tentando consertá-lo, mas nunca consegui – responde ele, olhando para o caixão.

– Isso não faz sentido! O feitiço deveria me levar para um universo em que eu descobri como trazer alguém de volta à vida! – digo frustrado.

– Eu descobri – responde ele, olhando para mim. – Mas, veja bem, não é tão simples quanto reconstruir todas as células de um corpo, isso você entende bem. Quando uma pessoa morre, sua alma é levada para algum lugar além, um lugar que nem mesmo nós temos acesso. Mesmo que eu o acorde, ele seria apenas uma casca vazia, sem emoções, motivos. Um fantoche.

– Então, não há um jeito? – pergunto, sentindo minhas esperanças sendo despedaçadas.

– Eu não disse isso – responde ele. – De fato, agora que você fez aquilo que eu ainda não havia cogitado fazer, acho que descobri um jeito.

Ele olha para o lado, como se estivesse ouvindo algo. Sou trazido de volta para o meu universo, onde vejo Helena, Enji, Sarah e Caio em frente a mim, tentando me acordar. Mas ainda não consigo me mexer.

– Deve haver um jeito de interromper o feitiço! – diz Enji aflito.

– Me desculpe... Eu não consigo chegar perto... – diz Helena encostada na parede, segurando um pedaço de tecido em suas narinas, que escorrem sangue.

– Faz o que você tinha feito antes! – diz Sarah.

– Não está funcionando! – diz Enji.

Sou trazido de volta para o universo alternativo. Vejo um sorriso maligno crescer no rosto de minha outra versão. Logo, entendo o que ele quer, qual é o jeito que ele encontrou.

– Não! Você não tem como alcançá-lo! – digo de forma ríspida.

– Tem razão! Sozinho, não tenho mesmo! – diz ele, se aproximando de mim.

Ele fica ao meu lado e entrelaça os dedos de sua mão direita com os da minha mão esquerda. Ele puxa nossas mãos até a altura dos nossos olhos, onde consigo ver através das brechas entre nossos dedos. Entre elas, sou capaz de ver meu corpo em meu universo, juntamente a todos os outros que estão tentando interromper o feitiço.

– O quê? – Deixo minha voz baixa dizer.

Assim que nossos dedos se soltam, uma grande luz corta o ar, abrindo um portal. Sou devolvido rapidamente para meu corpo, caindo no chão, sentindo tudo ao nosso redor tremer com a energia do portal que está na parede da minha sala, brilhando e se mexendo violentamente.

Todo mundo se afasta para os cantos, se mantendo distante dele.

– O que é isso?! – grita Sarah de um dos lados.

– O que você fez?! – pergunta Caio do outro lado.

– Não fui eu! – digo assustado.

– Fui eu. – O outro Hansel atravessa.

Todos ficam espantados, sem saber o que falar, assim que veem minha outra versão. Ele fez o que nenhum outro universo conseguiu fazer, abriu uma fenda entre as realidades.

– Hansel... – Enji olha para ele, assustado e confuso.

Em questão de segundos, quintessência aparece ao redor de Enji, envolvendo-o e o erguendo do chão. O outro Hansel puxa Enji para o outro lado do portal, para o seu universo.

– Não! Enji! – Me levanto rapidamente e atiro energia, com minhas mãos, contra ele. Ele cria um escudo em frente a si, se protegendo, e atira contra mim, empurrando minha própria energia contra mim e me lançando contra a parede da sala. Eu atravesso o concreto e sou laçado para fora da casa, caindo no chão e rolando na grama.

Me recupero rapidamente e voo de volta para o andar de cima, passando pelo buraco na parede. Percebo o portal destruindo o teto da sala, derrubando o telhado. Envolvo os detritos com meu poder, impedindo-os de cair sobre meus amigos e, então, movo todos eles para fora da sala. Assim que voo em direção ao portal, ele fecha, me fazendo dar de cara contra a parede e atravessá-la.

Me levanto rapidamente e olho ao meu redor, observando toda a destruição, ainda processando o que acabou de acontecer.

– Hansel? – Helena se aproxima de mim.

– Ele levou o Enji... – digo a mim mesmo, sentindo todo o meu corpo ser tomado pelo pavor, tremendo da cabeça aos pés.

Espero que tenham gostado! Parte dois saindo assim que estiver pronta! :*

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