᳝ ࣪ ❛ ͏ 𝙘𝙖𝙥𝙞𝙩𝙪𝙡𝙤 dez : fim de uma dinastia, começo de um império ៹ ✧⠀

୨ᅠᅠ﹙ final do ato um ﹚blame it on the kidsᅠᅠ୧
 ࣪៹  𝄒 ˖   ࣪  𓂃 ۫  . - capítulo dez, fim de uma dinastia,
começo de um império ꜝꜞ ᳝ ࣪ᅠ  ៹ 💣   ✶    ۫

Silco era um homem de negócios, e alguns negócios simplesmente não podiam esperar. Ele sabia dos riscos envolvidos, das intrigas que surgiam à espreita de cada acordo. Para ele, isso era o preço de jogar em alto nível.

O mundo em que Silco operava não era gentil, e a fraqueza, mesmo que momentânea, era algo que não podia ser tolerado. Ele tinha consciência de que sua posição de poder em Zaun fazia dele um alvo constante. Não era novidade quando tentavam passar a perna nele, mas nunca era um homem esperto o bastante para conseguir.

Silco tinha astúcia e manipulação como armas. Sua habilidade de ler as pessoas, de prever suas jogadas antes mesmo que elas fossem feitas, era quase sobrenatural. E com Sevika ao seu lado, a combinação de inteligência, força bruta e controle estratégico formava uma parceria temida e respeitada por todos que ousassem desafiá-lo.

No entanto, Zaun estava mudando. Os dias do velho poder estavam contados, e Silco sabia disso. Os clãs, outrora desorganizados e divididos, estavam se agitando. A dinastia que ele havia erguido com tanto esforço começava a mostrar rachaduras. Não era mais o tempo de manter o controle pelas mesmas velhas táticas. Era o momento de construir algo novo, algo que fosse mais do que apenas um domínio sobre Zaun. Um verdadeiro império.

Silco estava ciente de que o futuro exigia mais do que força. Ele precisava de visão, de um plano que fosse além do que qualquer outro poderia imaginar. E, acima de tudo, ele precisava de aliados.

Quando soube da perseguição dos defensores e da explosão no prédio da Cidade Alta, ele soube imediatamente de quem se tratava. As crianças de Vander. O pequeno grupo de órfãos que havia ousado desafiar as fronteiras entre os mundos.

Para Silco, aquilo era previsível, quase risível. Ele os dedurou sem hesitar, um movimento frio e calculado. As consequências eram o preço que outros pagariam, seu objetivo era manter Astra longe daquele caos, a qualquer custo.

Mas ele subestimou uma coisa. Astra.

Ele discutia a eficácia e os contras do experimento com cintila com Singed, os dois mergulhados em uma conversa fria e meticulosamente calculada. Silco ponderava sobre os riscos, enquanto Singed, com a paciência clínica de um cientista, expunha suas teorias com calma metódica.

━━━ A estabilidade é questionável, mas os resultados...

O discurso foi abruptamente interrompido. O silêncio pesado da sala, que antes era preenchido apenas pelo som suave de páginas viradas e o tinido ocasional de vidro, foi estilhaçado por uma voz que fez os pelos de Silco se arrepiarem.

━━━ O que você fez?

A voz. Aquela voz.

Silco não precisou se virar para saber quem estava ali. Ela carregava uma gravidade tão intensa que parecia ter arrancado o oxigênio da sala. A respiração dele congelou por um breve momento, e ele forçou-se a manter a compostura. Seu rosto permaneceu impassível, mas suas mãos, quase imperceptivelmente, fecharam-se em punho ao lado do corpo.

Singed, mais pragmático e indiferente, lançou apenas um olhar breve a Astra antes de se afastar em silêncio, como se soubesse que aquele era um campo de batalha que ele não precisava testemunhar.

No batente da porta, com o olhar fixo em suas costas. Podia sentir a intensidade daquele olhar como se fossem mãos invisíveis tentando arrancá-lo dali. O estômago dele afundou, e por um instante, ele não conseguiu responder.

━━━ O que... caralhos... você fez? ━━━ repetiu Astra, a voz agora embargada.

Silco finalmente se virou para encará-la, e o que viu o fez hesitar por um instante. Astra estava parada ali, o corpo visivelmente frágil, mas seus olhos queimavam com uma fúria que parecia capaz de derrubar montanhas. Lágrimas brilhavam nos cantos, contidas pela força de tentar não parecer frágil. Ela tremia, mas não de medo.

━━━ Astra, agora não é o moment...

━━━ Não me venha com desculpas, Silco! ━━━ ela o interrompeu, a voz subindo, cortante como uma lâmina. ━━━ Eu ouvi. Eu sei o que você fez. Dedurou eles... entregou a Powder.

Silco abriu a boca para responder, mas Astra avançou um passo à frente, a pequena distância entre eles parecendo um abismo intransponível.

━━━ Ela confiou em mim! ━━━ gritou, a voz rachando no final, como um trovão que perde força ao se dissipar. ━━━ Ela acreditava em mim, e você... você entregou ela como se fosse nada! Como se ela não importasse.

━━━ Astra... eu fiz o necessário. ━━━ Silco tentou manter o tom firme, calmo, como sempre. Suas palavras eram medidas, calculadas, como se tentasse controlar a narrativa. ━━━ Era para proteger você. Eles são uma ameaç...

━━━ Proteção? ━━━ cuspiu Astra, os olhos arregalados de incredulidade. ━━━ Você chama isso de proteção? Você destruiu a vida dela enquanto ela me salvava! Você entende o que isso significa? Ou você realmente se afogou nesse poder nojento que tanto diz desprezar?

O silêncio entre eles se estendeu por um instante, pesado demais para ser quebrado. Silco tentou falar, mas as palavras ficaram presas. Pela primeira vez em muito tempo, ele se sentiu... imponente, como se Astra tivesse arrancado sua máscara e exposto o que realmente estava por baixo.

━━━ Você não entende o que está em jogo. ━━━ sua voz finalmente veio, mais baixa, mais dura. ━━━ Eles são uma ameaça, Astra. Um risco que eu não posso permitir.

━━━ E o que eu sou pra você, então? ━━━ sussurrou Astra, quase como se não quisesse ouvir a resposta. ━━━ Só mais uma peça no seu tabuleiro, Silco? Mais um dos seus riscos calculados? Porque pra mim... pra mim, Powder não era um risco. Ela era minha amiga. Minha família.

Silco fechou os olhos por um breve segundo, como se pudesse se esconder daquele momento, como se o peso das palavras de Astra pudesse ser apagado em uma única respiração. Mas não foi. O estrago já estava feito.

Quando os abriu novamente, Astra ainda estava lá. Imóvel, mas tão intensa quanto uma tempestade. Seus olhos transbordavam lágrimas, brilhando com um ódio que parecia afiado o suficiente para cortá-lo em pedaços. Não havia mais espaço para disfarces ou manipulações, ela via através dele agora. E o que enxergava era intolerável.

━━━ Você acha que fechar os olhos vai mudar alguma coisa? ━━━ ela cuspiu, a voz trêmula, mas carregada de firmeza. ━━━ Olha pra mim, Silco. Me encara enquanto eu te digo o que você realmente é.

Silco manteve o olhar fixo nela, mas era impossível ignorar o nó que se formava em seu estômago, a sensação crescente de perder algo que ele sequer soubera que poderia perder. Astra deu um passo à frente, o corpo ainda fraco, mas sustentado pela força de sua raiva.

━━━ Você não é meu pai. ━━━ as palavras saíram baixas, frias, cada sílaba envenenada. ━━━ Você não é nada além de um monstro que insiste em nos destruir.

O soco emocional o atingiu com mais força do que qualquer ataque físico poderia.

━━━ Vá para o seu quarto. Agora. ━━━ sua voz soou firme, mas algo nela havia rachado.

━━━ Não ouse me mandar a lugar nenhum. ━━━ respondeu Astra, erguendo o queixo, mesmo enquanto a raiva e o cansaço ameaçavam derrubá-la. ━━━ Você traiu ela. Traiu a mim. ━━━ sua voz, agora mais baixa, parecia pior que qualquer grito. ━━━ Você me ensinou a nunca abaixar a guarda, a não confiar nos outros porque eles sempre nos machucariam. Mas olha só. Foi você, Silco. Foi você quem me machucou.

Silco abriu a boca para responder, mas as palavras se recusaram a sair. Ele, que sempre encontrava uma maneira de torcer a verdade, de dobrar os outros ao seu redor, descobriu-se completamente desarmado. Astra o encarava como se estivesse vendo, pela primeira vez, o homem que ele realmente era, e não o pai que ele tentava ser.

━━━ Eu fiz o que era preciso. ━━━ ele finalmente conseguiu dizer, mas sua voz soou fraca, quase insignificante.

━━━ O que era preciso para quem? Pra você? ━━━ retrucou Astra, avançando outro passo. O cansaço era visível em seus ombros. ━━━ Você sempre fala sobre proteger Zaun. Sobre proteger o que é nosso. Mas quem é “nosso”, Silco? Porque parece que você só está protegendo a si mesmo.

O silêncio que se seguiu foi denso, esmagador. Astra passou o braço sobre o rosto, limpando as lágrimas que se recusavam a parar, mas não havia suavidade em seu gesto, só frustração. Ela estava quebrada, mas o que mais doía era que Silco era o culpado.

━━━ Eu te amava. ━━━ sua voz tremeu, quase um sussurro. ━━━ Eu te amava, e você sabia disso. E mesmo assim, me fez isso. Fez isso com ela.

O coração de Silco apertou em um lugar que ele não sabia existir. O peso daquelas palavras o atingiu como uma correnteza, mas ele não deixou transparecer. Sua máscara de aço permaneceu firme, mas Astra podia ver através dela. Ela enxergava as rachaduras.

━━━ Vá para o seu quarto, Astra. ━━━ a ordem saiu fria, calculada, mas a voz traiu o peso que ele tentava esconder.

━━━ Você não manda em mim. ━━━ as palavras saíram baixas, mas cheias de certeza.

Astra o olhou uma última vez, os olhos vermelhos e inchados, mas ainda queimando com a força de alguém que estava disposta a enfrentar tudo, até ele.

━━━ Eu espero que valha a pena, Silco. Espero que, quando tudo isso desmoronar, você tenha alguma coisa pra chamar de vitória. Porque se algo acontecer com a Powder, eu… eu não estarei aqui pra ver.

Silco ficou em silêncio por um momento, observando os olhos de Astra. Ele sabia o quanto ela se importava com Powder, sabia que sua lealdade era mais forte do que qualquer medo que ela pudesse ter. Mas ele também sabia que não podia ceder às emoções. Aquela era uma guerra que exigia sacrifícios.

A porta bateu atrás dela com uma força que fez o som reverberar pela sala como um disparo seco. O eco parecia se arrastar, deixando o ambiente ainda mais vazio, como se Astra tivesse levado consigo todo o oxigênio ao sair. Silco permaneceu imóvel, os ombros rígidos, o rosto esculpido em uma máscara de pedra. Mas por baixo daquela fachada inabalável, as palavras dela ecoavam, afiadas como lâminas, cortando-o de dentro para fora.

Eu te amava. Havia sido a primeira vez que Silco ouviu aquelas palavras vindas de Astra. E provavelmente, talvez fosse a última.

As palavras ecoavam em sua mente como um sino quebrado, reverberando nos cantos mais escuros de sua consciência. Ele, que tanto se orgulhava de sua frieza, sentiu-se desarmado diante daquelas três sílabas, tão simples e tão devastadoras. A voz dela ainda parecia presente no ar, carregada de algo mais profundo do que raiva, uma dor crua e inescapável.

Astra o amara. Ela o disse com uma certeza que agora parecia uma acusação, uma faca afiada enterrada no espaço entre o peito e o orgulho. Silco nunca soube lidar com palavras como aquelas. Palavras de afeto, de confiança… porque elas carregavam consigo uma vulnerabilidade que ele não podia permitir.

Com os olhos ainda fixos no espaço vazio que Astra deixara, Silco sentiu o peso daquilo se instalar como uma pedra em seu estômago. Ele tentou racionalizar, era necessário, mas, pela primeira vez, a justificativa parecia um sussurro fraco em meio ao rugido da verdade. Ele fez o que era preciso, mas, ao fazê-lo, havia destruído a única coisa que Astra ainda lhe oferecia sem hesitação, confiança.

Ele passou a mão pelo rosto, o gesto lento, como se tentasse apagar a sensação que aquelas palavras deixaram em sua pele.

Eu te amava. Amava. No passado.

Silco nunca teve medo de inimigos, nunca temeu os desafios de Zaun ou os esquemas de Piltover. Mas o ódio nos olhos de Astra? O nojo na voz dela? Aquilo o assombrava de uma maneira que ele não saberia explicar nem para si mesmo.

E ele ficou ali, no silêncio de seu covil, sentindo-se pela primeira vez como algo que ele tanto desprezava, um homem fraco.

Singed voltou ao cômodo, o som suave de seus passos parecendo fora de lugar. Ele parou ao lado da mesa, os olhos clínicos e calculistas fixos em Silco. Por um momento, apenas o silêncio se estendeu entre os dois, pesado e sufocante.

━━━ Ela ainda é jovem. ━━━ Singed murmurou, quase casualmente, como um observador distante.

A tentativa patética de consolo parecia uma ofensa, uma nota desafinada em meio àquela melodia amarga. A voz de Singed era calma, quase indiferente, como se tudo aquilo fosse apenas mais um experimento com resultados inconvenientes.

Silco não respondeu. Não desviou o olhar do espaço vazio onde Astra esteve segundos atrás. Sua expressão permanecia impassível, mas havia algo nos olhos dele, algo que nem mesmo Singed conseguiu ignorar.

O silêncio se alongou, esticando-se como um fio prestes a se partir. Singed, percebendo que não obteria resposta, voltou a mexer nos instrumentos sobre a mesa.

Silco, por sua vez, ficou parado, imóvel como uma estátua. Sua mente girava, repetindo as palavras dela como um mantra cruel. A traição fora necessária. Era o que ele continuava dizendo a si mesmo. Uma decisão fria, calculada, tomada por alguém que não podia se dar ao luxo de errar. Ele havia feito o que era preciso para proteger Zaun, para proteger Astra, mesmo que ela não pudesse enxergar isso agora.

Necessária. Mas, pela primeira vez, a palavra soava vazia. Pela primeira vez, ele não tinha certeza se acreditava nisso.

Seus dedos tremeram levemente antes de ele fechar as mãos em punho, cravando as unhas na pele até sentir o desconforto o trazer de volta à realidade. Astra era forte. Ela voltaria, ele dizia a si mesmo. Ela entenderia. Um dia, ela entenderia.

E ainda assim, enquanto olhava para os cacos do vaso espalhados no chão e o vazio onde Astra estava, Silco sentiu algo que não sentia há muito tempo, dúvida. E o silêncio, sempre fiel, foi sua única resposta.

Astra caminhava de forma desajeitada, os passos instáveis e arrastados, como se o próprio chão conspirasse para derrubá-la. Cada movimento era uma luta contra o corpo ainda frágil e o peso esmagador que parecia prender seus pulmões. Era difícil manter o fôlego, difícil sequer pensar com clareza, quando tudo ao seu redor parecia engolir a pouca força que restava.

Ela estava exausta. Não apenas fisicamente, mas emocionalmente também. Tudo nos últimos dias parecia desabar sobre ela em uma avalanche cruel e incessante. A sensação era como uma bola de neve girando cada vez mais rápido, revestida de espinhos que se cravavam em seus pés a cada passo, fazendo doer mais e mais ao continuar.

Mesmo assim, Astra estava pronta para sair. Ela precisava sair. A ideia de Powder na mira de uma arma, ou pior, sendo levada para Água Mansa, fazia seu coração parar. Era um pensamento sufocante, uma imagem que se desenhava em sua mente com cores fortes demais. Astra podia ver os olhos inocentes e assustados de Powder, cercados pela escuridão e pela pior escória que Zaun já produziu. Aquilo era quase insuportável.

Ela não podia deixar acontecer.

Os boatos chegavam aos ouvidos de Silco como um fio constante de informações sussurradas. Era impossível não ouvir quando a base inteira parecia vibrar com fofocas abafadas e conversas preocupadas. Astra, encostada contra uma das paredes, escutava tudo, cada fragmento, cada detalhe. Um grupo de crianças da Subferia explodiu um prédio na Cidade Alta.

Foi fácil conectar os pontos. Violet. A irmã mais velha de Powder. Powder. Ela disse que Vi a levaria para a próxima missão. A alegria e o orgulho na voz dela ainda ecoavam na memória de Astra, como um punhal enfiado em sua consciência. “Vi disse que eu tô pronta.”

Pronta. O peso daquela palavra parecia dobrar agora. Porque, no dia seguinte, tudo desmoronou. Uma explosão. Uma missão que dera errado. E o inferno que os defensores estavam fazendo para encontrá-los parecia não ter fim.

Astra sabia que Piltover não perdoava o povo de Zaun, não quando algo ameaçava sua preciosa Cidade do Progresso. Mas aquilo? Perseguir crianças? Caçá-las como animais? Aquilo ultrapassava qualquer noção de justiça ou vingança. Era crueldade. O auge do desprezo e do abuso de poder.

A cada nova fofoca, a cada palavra murmurada sobre os defensores varrendo os becos, Astra sentia seu peito se apertar. Ela podia imaginá-los, as botas dos enforcers pisoteando as ruas que ela conhecia tão bem, arrastando crianças pela escuridão, tratando-as como criminosas apenas por existirem no lugar errado.

Powder. O nome ecoava em sua mente, trazendo com ele uma onda de desespero que ela mal conseguia conter. Astra não conseguia mais ficar parada, não podia ficar ali, presa naquela sala abafada enquanto Powder estava lá fora, vulnerável, indefesa.

Ela respirou fundo, o ar entrando com dificuldade, como se estivesse respirando vidro. A dor em suas pernas e a fraqueza em seus músculos tornavam cada passo uma tortura, mas ela continuou.

Ela não poderia viver consigo mesma se deixasse Powder para trás.

━━━ Aonde pensa que vai, garota? ━━━ a voz dura de Sevika cortou o silêncio do corredor como uma lâmina, ecoando em meio à escuridão.

Astra congelou por um instante, os ombros enrijecidos pelo tom ríspido e o peso da presença que agora bloqueava seu caminho. A brasa fraca do cachimbo de Sevika era a única fonte de luz, iluminando o contorno de sua silhueta alta e robusta que preenchia o corredor como uma sombra viva.

Era óbvio que ela estava ali. É claro que Silco a havia mandado para detê-la, ele nunca permitiria que Astra se lançasse em meio à tempestade que ele próprio ajudara a criar.

Astra apertou os punhos ao lado do corpo, a respiração irregular e o peito carregado de raiva. Quando finalmente avançou um passo, sua voz veio firme, mas vibrante de tensão.

━━━ Eu não preciso te dar satisfações. ━━━ sua resposta soou afiada, cortante como vidro. ━━━ Agora, saia da minha frente.

Sevika permaneceu imóvel, implacável como uma estátua. Ela levou o cachimbo de volta à boca, puxando uma tragada longa e silenciosa. Quando soltou a fumaça, o sorriso que surgiu em seu rosto era quase cruel, algo sombrio demais para ser apenas sarcasmo. Era desgosto. Desprezo puro.

━━━ Você soube, não foi? ━━━ murmurou Sevika, o olhar fixo em Astra, como se esperasse o momento exato em que ela quebraria.

A pergunta fez a raiva de Astra se inflamar ainda mais. O coração dela bateu mais rápido, como um tambor descompassado.

━━━ Do que aquele covarde fez? ━━━ cuspiu ela, os olhos queimando sob a fraca luz. ━━━ Sim. Mas não graças a você.

Sevika inclinou a cabeça ligeiramente, como uma predadora avaliando a presa, mas Astra não recuou.

━━━ Traidora.

A palavra saiu pesada, cheia de rancor, e cortou o ar como um chicote. Sevika, pela primeira vez, não respondeu imediatamente. Seu sorriso desapareceu, substituído por uma expressão fria, mas com algo perigoso nos olhos.

━━━ Cuidado com as palavras, garota. ━━━ respondeu finalmente, a voz grave, ameaçadora, mas controlada. ━━━ Você ainda não sabe o que está fazendo.

━━━ E você não sabe o que está defendendo. ━━━ Astra retrucou sem hesitar, avançando mais um passo. Ela estava tão perto agora que podia ver o brilho fraco do olhar de Sevika, algo entre o julgamento e a paciência prestes a se esgotar. ━━━ Ele entregou crianças, Sevika. Crianças. E você ainda acha que isso é proteger Zaun? Acha que isso é "fazer o necessário"?

A fumaça do cachimbo subiu mais uma vez, mas Sevika não respondeu. Seu silêncio parecia carregado de algo que ela não queria admitir, talvez culpa, talvez algo ainda mais profundo. Mas ela não cederia, não tão fácil.

━━━ Você está machucada, Astra, e não está pensando direito. ━━━ Sevika finalmente disse, o tom frio, mas mais baixo agora. ━━━ Vai se matar antes de conseguir fazer alguma coisa.

━━━ Se eu não fizer nada, Powder vai morrer. ━━━ as palavras saíram de Astra como um soco no próprio estômago.

Sevika piscou uma vez, a mandíbula travada. Por mais dura que fosse, até ela sentiu o peso daquelas palavras.

━━━ Se afaste. ━━━ exigiu, a voz quebrada, mas inabalável. ━━━ Você não pode me parar. Não hoje.

Sevika segurou o olhar dela por um longo momento, um embate silencioso onde nenhum dos lados parecia disposto a ceder.

━━━ Sinto muito, demôniozinho, mas você não vai passar. ━━━ Sevika murmurou, a voz baixa e grave como um trovão distante, enquanto avançava com passos firmes.

Astra congelou, o coração batendo forte no peito. Ela já conhecia aquele tom, aquela firmeza que precedia algo inescapável.

━━━ Sevika... ━━━ começou ela, tentando manter a calma, mas a advertência morreu em sua garganta.

Sevika não lhe deu tempo para reagir. Com a força que só alguém como ela possuía, segurou Astra pelos ombros, como se ela não passasse de uma folha de papel. Em um movimento seco e bruto, Astra sentiu o peso do próprio corpo ser lançado para o lado, como um saco de trapos, suas pernas fracas não conseguindo suportar o impacto.

━━━ Sevika, me larga! ━━━ gritou, a voz vibrando entre raiva e desespero. Ela se contorceu, tentando se desvencilhar, mas os dedos de Sevika eram como garras, firmes e implacáveis.

━━━ Já chega dessa palhaçada, garota. ━━━ Sevika rosnou. ━━━ Você não vai sair por aí e se jogar no meio de um campo de guerra. Não sob a minha vigia.

Astra bufou, o peito subindo e descendo enquanto tentava lutar contra a força que a segurava no lugar.

━━━ Eu não sou uma criança, Sevika! ━━━ rosnou de volta, os olhos ardendo de lágrimas que ela se recusava a deixar cair. ━━━ Eu tenho que ir. Você não entende!

━━━ O que eu entendo, é que você vai se matar por causa de uma decisão idiota. ━━━ Sevika retrucou. ━━━ Já chega de drama. Volte para o seu quarto.

Sem esforço, ela virou o corpo e começou a caminhar pelo corredor escuro, segurando Astra como se fosse um fardo leve. Astra chutava, tentava alcançar qualquer coisa para se agarrar, mas Sevika era muito mais forte.

━━━ Me larga agora! Eu juro, Sevika, eu vo...

━━━ Você vai ficar quieta, é o que você vai fazer. ━━━ cortou Sevika, o tom ríspido.

Quando chegaram ao quarto de Astra, Sevika empurrou a porta com o ombro, abrindo-a com força. Ela atravessou o espaço apertado e largou Astra sobre a cama com um movimento brusco, mas o suficiente para não machucá-la.

━━━ Você não pode fazer isso! ━━━ gritou Astra, se levantando, mas Sevika já estava um passo à frente.

Com um movimento rápido, Sevika puxou a chave do bolso e trancou a porta por fora. O som do trinco ecoou pelo quarto, selando a decisão de forma definitiva.

━━━ Sevika! Abre essa porta! Você não pode me manter aqui! ━━━ Astra correu até a porta, batendo nela com os punhos.

Do outro lado, Sevika inclinou-se contra a porta, a mão firme segurando a chave. Ela não respondeu, permitindo que o som das batidas e dos gritos de Astra diminuísse.

━━━ Você não é forte o suficiente ainda. E, francamente, garota, nem inteligente o suficiente para entender quando é hora de recuar. ━━━ finalmente falou, a voz baixa.

Astra parou por um instante, respirando com dificuldade, as mãos ainda apoiadas na madeira da porta.

━━━ Ela vai morrer, Sevika. ━━━ sua voz quebrou, transformando-se em um sussurro sufocado. ━━━ E você está ajudando ele a deixá-la morrer.

Sevika fechou os olhos por um momento, a mandíbula tensa, mas não respondeu.

━━━ Volta pra cama, Astra. ━━━ murmurou finalmente, empurrando-se para longe da porta.

━━━ Sevika! ━━━ o grito dela veio mais uma vez, mas Sevika já estava se afastando, os passos firmes e resolutos ecoando pelo corredor.

Lá dentro, Astra desabou contra a porta, os punhos cerrados enquanto as lágrimas que ela tanto tentou conter finalmente caíam. A madeira era fria contra sua testa, e o sentimento de impotência era sufocante, como se o mundo inteiro conspirasse contra ela.

Do lado de fora, Sevika parou no meio do corredor, levando o cachimbo à boca e soltando uma longa nuvem de fumaça. Ela sabia que Astra não a perdoaria por aquilo, e talvez nem devesse.

Mas ela não tinha escolha. Não naquele momento.

[ . . . ]

Dentre todas as sombras vazias que dançavam em sua mente, Astra sabia que a voz de Powder era a pior de todas. Não era como as outras. Não gritava insultos. Não a mandava destruir ou espalhar caos, como os sussurros venenosos que costumava ignorar. Não havia ódio em suas palavras. Era pior. Muito pior.

Ela chorava.

Era um choro desesperado, cheio de dor e desamparo, como o som de um coração se partindo em mil pedaços. A voz ecoava em sua cabeça, um lamento interminável que apertava seu peito, sufocando cada respiração.

━━━ Você me deixou... ━━━ dizia a voz, entre soluços. ━━━ Você prometeu que estaria lá. Prometeu... e me deixou.

Astra fechava os olhos com força, mas não adiantava. A voz estava em todos os cantos de sua mente, espreitando, dilacerando. Era um veneno que escorria por suas veias.

━━━ Eu estava com medo. Eu precisava de você.

Ela se encolhia contra as paredes frias de seu quarto, o coração batendo tão rápido que parecia que iria explodir. Cada palavra era uma lâmina, afundando mais fundo.

━━━ Você me deixou morrer, Astra. É sua culpa. ━━━ o grito que acompanhava a última frase fazia seu corpo inteiro estremecer. Não era apenas dor. Era algo que corroía, que arrancava pedaços de quem Astra era, como se quisesse deixá-la vazia.

Ela cambaleou pelo quarto, os pés tropeçando em destroços enquanto as lágrimas queimavam seu rosto. A dor era insuportável, como se mil agulhas estivessem perfurando sua pele, uma a uma, lentamente.

Era dilacerante, a corroía de dentro para fora como fogo devorando papel. Uma combustão espontânea que parecia consumir até a última partícula de quem Astra era.

━━━ Cala a boca! ━━━ gritou, sua voz ecoando no quarto vazio.

Ela se lançou contra a mesa, derrubando tudo o que estava sobre ela. Frascos de vidro, ferramentas, cacos espalharam-se pelo chão, mas nada disso fazia diferença. Ela precisava calar aquela voz. Precisava.

━━━ Cala a droga da boca agora! ━━━ gritou novamente, sua voz rouca e quebrada.

Ela se debatia, as mãos arrancando objetos das prateleiras e os arremessando sem rumo, como se pudesse expulsar a voz junto com os cacos espalhados pelo chão. Os móveis foram virados, derrubados, destruídos.

O pequeno banquinho em que Powder passava horas sentada, conversando animadamente com Astra enquanto ela estava em um semi-coma, tornou-se seu próximo alvo. Ela agarrou o móvel com ambas as mãos e o arremessou contra a janela com uma força quase desumana. O vidro se estilhaçou em centenas de fragmentos, o som perfurando o ar e cortando o silêncio sufocante como uma navalha.

━━━ Você me deixou morrer.

Astra caiu de joelhos, suas mãos puxando os cabelos enquanto um soluço escapava de sua garganta. Era um som feio, quebrado, o tipo de som que não pertencia a alguém que ainda lutava para sobreviver.

Sua respiração estava pesada, cada inspiração um esforço para não desmoronar completamente. Seus olhos, agora injetados, encontraram a adaga largada sobre os cacos no chão. Sem hesitar, ela a agarrou e pressionou a lâmina contra a palma da mão. O corte foi preciso, profundo. O líquido carmesim emergiu como uma nascente escura, escorrendo pelos dedos e pingando no chão.

A dor aguda percorreu seu corpo, mas, de alguma forma, foi um alívio. Um lembrete de que ainda estava viva. O oxigênio entrou em seus pulmões, carregado e quente, como se apenas naquele momento ela voltasse a respirar.

Mas não era o suficiente.

Ela buscou desesperadamente no bolso até encontrar o frasco de cintila. O líquido pulsava com um brilho rosa fosforescente, refletindo nas lágrimas que manchavam seu rosto. Ela segurou o frasco com dedos trêmulos, sua respiração ofegante ecoando pelo quarto vazio. Sabia o que aquilo fazia. Sabia o que significava.

A memória do garoto no laboratório de Singed inundou sua mente como uma onda fria. O corpo dele, irreconhecível, retorcendo-se enquanto a cintila o transformava em algo monstruoso. As veias pulsantes, os olhos tomados por um fervor selvagem. A lembrança era tão clara que quase podia sentir o cheiro de carne queimada e o som dos ossos quebrando.

Astra apertou o frasco contra o peito, sua mão ainda sangrando do corte recente. A dor não era suficiente. O sangue não era suficiente. Ela precisava de mais. Precisava de algo para silenciar aquele grito.

Ela encarou o líquido brilhante mais uma vez. Sabia que aquilo era perigoso. Sabia que poderia não sobreviver. Mas nada disso importava. Ela não queria mais hesitar, porque hesitar doía mais. Porque, naquele momento, a possibilidade de virar uma aberração parecia menor do que a agonia de continuar sendo ela mesma.

━━━ Eu precisava de você! Você me deixou morrer! É sua culpa, Astra! É tudo sua culpa! ━━━ o grito final de Powder ecoou em sua mente, tão alto e penetrante que Astra sentiu como se algo dentro dela tivesse quebrado.

Ela abriu o frasco com um movimento brusco, o brilho da cintila iluminando seu rosto manchado de lágrimas. Sem pensar, levou-o aos lábios e bebeu o líquido de uma só vez.

A queimadura foi imediata. A cintila desceu por sua garganta como fogo líquido, rasgando tudo em seu caminho. Astra caiu de joelhos, o frasco vazio caindo de sua mão enquanto ela se contorcia no chão. O grito que escapou de seus lábios foi quase inumano, gutural, reverberando pelas paredes como um eco de dor pura.

O líquido parecia estar vivo dentro dela, pulsando em suas veias, invadindo cada célula de seu corpo. Seus músculos começaram a pulsar e inchar, como se algo tentasse escapar de dentro. Era como ter agulhas perfurando sua pele ao mesmo tempo em que lâminas afiadas rasgavam seus nervos.

Ela arqueou as costas, os olhos arregalados enquanto sua visão se tornava um borrão de luzes e cores. A espinha se curvou em um arco impossível, e cada osso em seu corpo parecia prestes a se partir.

━━━ Faz parar... faz parar... ━━━ murmurou entre gritos, mas ninguém estava lá para ouvir.

O suor escorria pelo rosto dela, misturado ao sangue que ainda fluía de sua mão cortada. Seus dedos cravaram-se no chão enquanto seu corpo inteiro tremia, como se estivesse tentando expulsar algo que não pertencia a ele.

E então, por um momento, houve silêncio.

O corpo de Astra caiu no chão, imóvel, enquanto a luz pulsante da cintila começava a desaparecer de suas veias. Sua respiração era lenta, irregular, mas ela estava viva. Cada músculo doía como se tivesse sido rasgado e costurado novamente.

Quando finalmente abriu os olhos, o mundo parecia diferente. Cada som, cada cheiro, cada detalhe do quarto estava ampliado, como se tudo fosse mais vivo, mais intenso. Mas havia algo errado.

Powder ainda estava lá.

━━━ Você me deixou. Você sempre vai me deixar? ━━━ a voz continuava, mais baixa, mas tão cortante quanto antes.

Astra cerrou os punhos, sentindo a nova força que corria por seu corpo. Não era perfeita. Não era natural. Mas era suficiente.

━━━ Não. ━━━ murmurou, sua voz rouca, mas firme. ━━━ Dessa vez, eu vou chegar a tempo.

Ela se levantou, as pernas ainda trêmulas, mas estáveis. E, com o coração pesado e os olhos ardendo de fúria, saiu do quarto, pronta para enfrentar o que quer que viesse.

Powder ainda estava lá fora. E Astra não deixaria que aquilo terminasse em mais um grito.

Ela olhou para os cacos de vidro no chão, as gotas de sangue misturando-se ao pó e aos reflexos do brilho neon de Zaun que entrava pela janela destruída. O ar frio e cortante da cidade soprou em seu rosto, mas ela não sentiu. Seu corpo estava pulsando com energia nova, uma força perigosa, instável, mas irresistível.

A porta ainda estava trancada. Astra riu, uma risada seca e sem humor.

Ela caminhou até a porta, seus passos mais firmes do que antes. A fraqueza que a consumia há semanas parecia um pesadelo distante, algo que ela não permitia mais que a prendesse. Seus dedos tocaram a maçaneta, e por um instante ela hesitou, os pensamentos rápidos e fragmentados passando pela mente.

A lembrança de suas próprias palavras a fez apertar a maçaneta com tanta força que a cintila amplificada em suas veias a distorceu sob seus dedos. Um estalo metálico ecoou pela sala, e ela empurrou a porta com força, arrancando-a parcialmente da moldura.

O corredor estava vazio, ela avançou, cada passo mais confiante. O coração batendo rápido em seu peito parecia o tambor de guerra que a empurrava adiante. Zaun pulsava lá fora, e ela sabia que cada segundo perdido era um segundo mais perto de Powder cair nas mãos erradas.

Astra correu pelas ruas de Zaun como se fosse feita de fogo e fumaça, o corpo impulsionado pela cintila que pulsava em suas veias. Cada batida do coração parecia empurrá-la mais rápido, ignorando a dor nos músculos e o ar rasgando sua garganta.

Ela reuniu todas as pequenas lembranças de falas ditas por Silco e Sevika, ou qualquer outro de seus capangas, ela lembrou-se de quando caminhou no esconderijo de Singed, no velho mercado abandonado, nos limites de Zaun. Era lá que Silco e Sevika estavam. Onde Vander estava. Onde tudo estava prestes a desmoronar.

Enquanto corria pelas ruas sujas e vazias, o cheiro de ferrugem e óleo queimado começou a invadir suas narinas, tornando-se mais forte a cada passo. Era um cheiro pesado, familiar, como tudo que Zaun tinha de pior e mais cru. Quando as estruturas decadentes do mercado finalmente surgiram diante de seus olhos, Astra sentiu o coração apertar.

As sombras altas das torres quebradas se erguiam como sentinelas sinistras, o mercado parecia mais morto do que nunca, mas Astra sabia que, por trás daquela fachada desolada, o caos estava vivo, fervendo, esperando para explodir.

O som de gritos e passos apressados ecoava pelo ar. Conforme Astra se aproximava, as vozes tornavam-se mais nítidas. Capangas de Silco estavam espalhados pelo corredor suspenso que levava de um lado para outro do mercado. Em uma fila, eles corriam, batiam e apanhavam até cair no chão inconscientes ou cair lá de cima.

Ela respirou fundo, sentindo o coração bater forte em seu peito. Do outro lado do mercado, Vander estava preso a correntes, seu corpo exausto e ensanguentado. Violet lutava com fúria, golpeando os capangas de Silco com tudo que tinha, enquanto Mylo tentava abrir as correntes de Vander com dedos trêmulos. Claggor estava logo atrás, tentando abrir um buraco na parede para escaparem.

Silco estava parado logo atrás do caos, as mãos cruzadas nas costas, a expressão fria e calculista de sempre. Ele observava a cena como um mestre de xadrez assistindo suas peças se moverem no tabuleiro. Ao lado dele, Sevika se mantinha firme, pronta para intervir ao menor sinal de fraqueza em suas forças.

Astra, escondida na penumbra de uma das estruturas corroídas, observava tudo de longe, os olhos fixos na cena. Quando viu Violet, o coração dela apertou.

Os cabelos rosa brilhavam sob a luz fraca e trêmula do mercado, e o rosto de Vi, endurecido pela determinação, era inconfundível. Ela lutava com tudo que tinha, cada movimento carregado de força e desespero. Astra prendeu a respiração, imaginando se Powder também poderia estar ali. A ideia de vê-la naquele caos fez seu estômago se revirar.

Ela tentou escanear o ambiente, os olhos percorrendo freneticamente cada canto entre as sombras, destroços e corpos em movimento. Mas não havia sinal de Powder.

Ainda assim, uma sensação crescente de pânico começou a subir por sua espinha. Ela está aqui. Eu sei que ela está.

Enquanto seus pensamentos corriam, um estrondo violento ecoou pelo mercado, e um pedaço de metal retorcido caiu não muito longe de onde Astra estava. Ela desviou instintivamente, o impacto fazendo o chão tremer sob seus pés. O caos parecia se intensificar, os gritos ficando mais altos, as explosões mais frequentes.

Astra viu Mylo e Claggor tentando abrir as correntes de Vander. Eles estavam desesperados, gritando instruções um para o outro enquanto Vi se ocupava em afastar os capangas de Silco. Mas o tempo parecia estar se esgotando.

Do outro lado, Silco permanecia imóvel, o olhar fixo na cena. Seus lábios se curvaram levemente em algo que parecia um sorriso satisfeito.

Astra sentiu uma onda de raiva queimando em seu peito. Ele estava gostando disso. O caos, o sofrimento, a destruição, tudo fazia parte do plano dele, e ele estava ali, assistindo como se fosse um espetáculo.

Ela cerrou os punhos, sentindo o peso da cintila ainda pulsando em seu corpo.

━━━ Seu desgraçado. ━━━ murmurou para si mesma, os dentes rangendo de ódio.

Mas, antes que pudesse fazer qualquer movimento, algo chamou a atenção de Astra.

O último dos homens de Silco caiu com um baque surdo no chão, e o caos pareceu parar por uma fração de segundo. No silêncio inquietante que se seguiu, seus olhos congelaram em uma visão que parecia sair diretamente de seus piores pesadelos.

Ele. O monstro de Singed.

A criatura que antes fora humana agora se erguia à frente de Silco, seu corpo completamente destruído pela Cintila. A carne estava deformada, inchada e pulsante, como se lutasse para se ajustar à força monstruosa que o dominava. Veias roxas florescentes brilhavam sob a pele rasgada, iluminando-o com um brilho doentio. Seus olhos, ou o que restava deles, eram duas órbitas selvagens e vazias, tomadas por um fervor incontrolável.

Astra ficou imóvel, incapaz de desviar o olhar. Um calafrio percorreu sua espinha enquanto memórias do laboratório de Singed invadiam sua mente. Ela sabia o que a cintila podia fazer, o que havia feito a ele. Ele não era mais humano. Era uma arma viva, um monstro implacável e insano.

E ele estava correndo em direção a Violet.

Os passos da criatura eram rápidos e desajustados, como se ele não tivesse controle total sobre o próprio corpo. Mas, apesar disso, ele avançava com uma força imparável, derrubando tudo em seu caminho.

━━━ Vi! ━━━ o grito de Astra cortou o ar, mas Violet não percebeu a tempo.

A criatura a atingiu como um trem desgovernado. Violet tentou socá-lo, desferindo golpes rápidos e potentes, mas era como tentar quebrar uma parede de ferro. Com um movimento brutal, a criatura agarrou-a no ar, as mãos monstruosas envolvendo o pescoço de Vi com força suficiente para esmagar.

Astra, escondida entre os destroços, engoliu em seco. Elas não eram amigas. Nada entre elas indicava laços de alguma coisa, e ainda assim, naquele momento, Astra sabia que não podia deixar Violet morrer. Porque, se ela caísse, Powder cairia junto. Família era tudo para Powder. Astra sabia disso como ninguém. E, se isso significava contradizer Silco, ignorar suas ordens e enfrentar uma criatura deformada pelo poder da cintila, então era exatamente o que faria.

Sem pensar, Astra agarrou um pedaço de ferro pontiagudo que estava ao seu lado. O metal estava sujo, enferrujado, mas era o suficiente. Respirando fundo, ela se concentrou e arremessou a arma improvisada com toda a força e precisão que conseguiu reunir.

O ferro voou pelo ar, girando, até se cravar com força no ombro da criatura. Não foi o bastante para derrubá-lo, mas o impacto o fez rugir de dor e largar Violet bruscamente no chão. Vi caiu de joelhos, tossindo e tentando recuperar o fôlego enquanto a criatura girava, procurando pela origem da intervenção.

Foi nesse momento que os olhos de Silco também se voltaram, e ele finalmente a viu.

Astra.

Seus olhos se arregalaram, traindo sua surpresa. Ele não esperava vê-la ali. Mas Astra não olhou para ele. Não naquele momento. Ela não tinha tempo para a decepção no rosto de Silco ou o medo velado que podia sentir em seu olhar. Sua mente estava fixa na criatura e na sobrevivência de Violet.

Com o corpo ainda pulsando pela cintila, Astra se lançou em um salto ágil, escalando rapidamente um andaime abandonado que levava até lá em cima. O metal velho rangia sob o peso de seus passos rápidos, mas ela não hesitou. Quando chegou perto o suficiente, desferiu um soco certeiro, mirando entre o abdômen e o flanco da criatura.

O impacto foi ensurdecedor. A criatura cambaleou com o baque, e a passarela onde estavam tremeu violentamente, pedaços de metal se soltando e caindo no chão lá embaixo.

━━━ Vai, agora! ━━━ gritou Astra, os olhos fixos na criatura, enquanto seus punhos se preparavam para outro golpe.

Violet hesitou por um segundo, ainda ofegante, mas então começou a se arrastar com dificuldade para a sala onde Vander e os outros estavam. Ela segurou a maçaneta com mãos trêmulas e conseguiu fechar a porta com um leve tilintar da tranca.

O som foi suficiente para distrair Astra por um instante, mas um instante foi tudo o que o monstro precisou. Com um rugido selvagem, ele investiu contra ela, os movimentos rápidos demais para sua reação. Antes que pudesse se esquivar, a criatura a acertou com força, jogando-a contra o chão da passarela. O impacto foi brutal, o metal frio machucando suas costas e o ar escapando de seus pulmões em um único golpe.

Astra tentou se levantar, mas a criatura já estava sobre ela, sua sombra grotesca cobrindo todo o espaço. Os olhos dela encontraram os da criatura por um breve momento, selvagens, furiosos, completamente tomados pela cintila.

Ela sentiu o peso dele pressionando-a, as garras afiadas se cravando no chão ao seu lado, como se estivesse medindo o momento exato para esmagá-la. A dor latejava em suas costelas, mas o pânico era mais forte.

Se ela caísse agora, tudo estaria acabado. Para Violet. Para Powder.

Com os dentes cerrados, Astra aproveitou um momento de hesitação da criatura e levantou uma perna, chutando-o com toda a força que conseguiu reunir. O golpe acertou o joelho do monstro, fazendo-o perder o equilíbrio por um segundo, mas foi o suficiente para que Astra rolasse para o lado e escapasse.

O monstro rugiu novamente, mais irritado agora, e se virou para atacá-la novamente. Mas Astra, com o coração martelando no peito e o corpo gritando de dor, já estava de pé, buscando freneticamente outra arma ou estratégia para manter a criatura afastada.

Silco observava tudo. Seu olhar estava fixo em Astra, uma mistura de incredulidade e raiva queimando em seus olhos. Sevika, ao lado dele, apertava o punho, como se estivesse esperando por um comando para agir.

━━━ Tire a minha filha dali. ━━━ ele balbuciou entre dentrs, assoviando para que o monstro a deixasse.

A criatura parou abruptamente, os movimentos violentos congelando por um instante. Seus olhos, tomados pelo brilho pulsante da cintila, giraram lentamente em direção a Silco. Um silêncio tenso pairou por um segundo, quebrado apenas pelo som de metal rangendo e destroços caindo ao fundo.

━━━ Deixe-a. ━━━ murmurou Silco, o tom firme, mas baixo o suficiente para que apenas a criatura entendesse. ━━━ Acabe com eles.

A criatura soltou um rugido gutural, carregado de algo entre frustração e fúria, como se resistisse à ordem. Mas, depois de um instante, cedeu. As veias pulsantes sob a pele deformada brilhavam com uma intensidade feroz, e ele recuou um passo, passando por Astra como uma sombra ameaçadora.

Astra tentou se mover, sua mente correndo em mil direções. Ele estava indo para a porta. A porta onde Violet, Vander e os outros estavam.

Mas antes que pudesse intervir, sentiu algo frio e afiado perfurar a pele de seu braço. A dor foi instantânea e acompanhada por uma onda de calor que percorreu seu corpo. Astra se virou rapidamente, apenas para ver Sevika ao seu lado, segurando uma seringa vazia, o olhar frio cravado nela.

━━━ Sevika! ━━━ rosnou Astra, se debatendo contra o peso que começava a tomar conta de seus membros. Ela chutou com força, acertando o joelho de Sevika, forte o suficiente para fazê-la tropeçar e largar o braço de Astra.

Mas não adiantou, seu corpo já estava reagindo. Um peso esmagador tomou conta de seus músculos, e suas pernas cederam por um breve instante. Suas pálpebras ficaram pesadas, e cada movimento parecia mais difícil do que o anterior.

━━━ O que… o que você fez? ━━━ perguntou, a voz enrolada, mal saindo de seus lábios enquanto o mundo ao seu redor parecia ficar mais lento.

Sevika não respondeu imediatamente. Apenas a encarou por um momento, o rosto inexpressivo enquanto observava Astra lutar contra o inevitável.

━━━ Salvando você. ━━━ murmurou.

O som dos punhos do monstro batendo contra a porta ecoou pela sala, um estrondo tão violento que parecia fazer o chão vibrar. O metal da porta rangia, quase cedendo sob os golpes incessantes. Astra tentou se levantar novamente, os músculos tremendo com o esforço, mas o peso que a dominava era demais.

━━━ Você está… deixando eles morrerem. ━━━ sussurrou ela, cada palavra um esforço monumental.

Sevika suspirou, ajoelhando-se ao lado dela. Ela a ergueu no colo com facilidade, os braços fortes segurando Astra como se ela não passasse de uma boneca de pano. Astra se contorcia levemente, o corpo pesado demais para lutar como gostaria, mas sua mente permanecia alerta, recusando-se a se entregar completamente.

Ela olhou para cima, tentando focar o rosto de Sevika através da visão turva. Os músculos dela gritavam por descanso, a cintila que havia tomado estava se esgotando, e o que quer que Sevika tivesse injetado parecia amplificar o cansaço. Cada movimento fazia suas pálpebras pesarem mais, como se o mundo ao seu redor estivesse tentando apagá-la.

━━━ Eu odei... ━━━ tentou dizer, mas a palavra ficou presa em sua garganta. Antes que pudesse terminar, um estrondo alto preencheu o ar, reverberando pelo edifício como um trovão que se recusava a desaparecer.

Astra sentiu o impacto como uma onda de choque que a atingiu no peito, cada fibra do seu corpo reagindo. Foi como se o edifício inteiro pulsasse com uma energia azul caótica, instável, que parecia corroer tudo ao redor.

A luz brilhante preencheu o ambiente, ofuscando a visão de Sevika e fazendo-a parar abruptamente. Astra tentou virar a cabeça, forçando os olhos a se abrirem. Ela sabia o que era. O brilho azul, o som, a vibração... tudo aquilo só podia ser uma coisa. Powder.

O chão sob os pés de Sevika começou a tremer, pequenos fragmentos de pedra e metal caindo do teto. A luz azul continuava pulsando em rajadas irregulares, cada vez mais intensa.

━━━ Merda. ━━━ Sevika olhou para Silco, que estava mais à frente, o rosto sério enquanto observava o caos.

Astra conseguiu reunir forças suficientes para levantar a cabeça por um breve instante. Sua visão encontrou Silco, parado como uma estátua no meio do tumulto. Ele não parecia surpreso, apenas observava, o rosto tão inexpressivo quanto sempre.

Outra explosão sacudiu o prédio, mais forte do que a primeira. Desta vez, as janelas remanescentes se despedaçaram completamente, e as paredes começaram a ceder. A estrutura inteira parecia prestes a desmoronar.

━━━ Precisamos sair daqui! ━━━ Sevika gritou, segurando Astra com mais firmeza enquanto se movia rapidamente em direção a Silco.

Sevika caminhava contra as rajadas de vento e poeira que preenchiam o ambiente. O brilho azul continuava iluminando tudo, crescendo em intensidade, até que parecia que todo o edifício estava sendo engolido por ele.

E então veio outra explosão, uma tão poderosa que o chão tremeu violentamente.

Sevika perdeu o equilíbrio por um momento, quase deixando Astra cair. Silco virou-se rapidamente, a expressão finalmente traindo algo que parecia cautela.

━━━ Vamos! Agora! ━━━ gritou ele, gesticulando para Sevika enquanto pedaços do teto começavam a cair.

A última explosão foi como o rugido de um predador insaciável, mais voraz e destrutiva do que todas as anteriores. O prédio inteiro estremeceu, os cacos do chão e pedaços de metal voando em todas as direções, enquanto o mundo ao redor de Astra parecia desacelerar, cada fragmento de caos se movendo em câmera lenta.

Uma rajada de energia avançou na direção de Silco, a luz pulsante brilhando em sua intensidade cruel. Mas antes que ele pudesse ser atingido, Sevika agiu. Sem hesitar, ela jogou Astra no colo de Silco, empurrando-os para longe com força suficiente para os afastar do perigo. A rajada atingiu Sevika diretamente. Seu corpo foi arremessado como uma boneca de pano, o som do impacto ecoando pelo local. O braço esquerdo foi destruído, estilhaçado em centenas de pedaços de carne que se misturaram aos destroços no chão.

Sevika caiu, inerte, enquanto as rajadas de energia continuavam a consumir tudo ao redor. A explosão atingiu os tanques de combustível e os frascos de cintila, iniciando um efeito dominó de destruição. O fogo se espalhou, pulando de uma estrutura para outra, enquanto explosões menores reverberavam em sucessão.

Explosões menores reverberavam em sucessão, cada uma mais próxima, mais intensa, até que o mercado abandonado começou a ceder sob a força da destruição. Os pilares que sustentavam o teto rangiam em protesto, o som alto e metálico ecoando como um aviso de colapso.

A luz das chamas refletia nos frascos restantes de cintila, que ainda vibravam com um brilho ameaçador. Quando o fogo finalmente os alcançou, as explosões que se seguiram foram ainda mais vorazes, lançando cacos de vidro e ondas de energia por toda parte. O ar ficou carregado de calor sufocante, e o cheiro acre de fumaça misturava-se ao de combustível queimado e metal derretido.

A destruição parecia sem fim, uma reação em cadeia que consumia o ambiente em um frenesi caótico. Estruturas caíam, janelas explodiam, e o chão tremia como se o próprio o local estivesse tentando se livrar de seus últimos traços de existência.

No meio de tudo isso, o som das chamas era abafado por gritos e os rugidos do monstro, que continuava a investir cegamente, alimentado pela cintila e pela ordem de Silco. Cada passo da criatura parecia contribuir para o colapso ao seu redor, enquanto os destroços caíam em cascatas incontroláveis.

O impacto final atingiu Astra como um golpe direto, jogando-a contra uma pilha de destroços. Tudo ficou embaçado, os sons ao seu redor se dissolvendo em um zumbido ensurdecedor. Seu corpo não respondia, cada movimento era um esforço monumental. Quando finalmente conseguiu abrir os olhos, tudo ao seu redor era fogo e fumaça.

A visão dela pousou em Sevika, caída no chão. O braço destruído, os olhos fechados, o corpo imóvel. A figura dela parecia tão grande e invencível antes, mas agora… agora era só uma silhueta contra o caos.

Um soluço escapou dos lábios rachados de Astra, fraco demais para ser ouvido em meio à destruição.

━━━ Mate eles. ━━━ as palavras cortaram o ar, trazendo Astra de volta à realidade. A voz de Silco era um grito exasperado, carregado de fúria e desespero. Astra virou o rosto lentamente, a visão ainda borrada, mas clara o suficiente para vê-lo de pé, os olhos brilhando de raiva.

Tudo ao redor parecia se resumir a fogo e fumaça, o cheiro insuportável de corpos queimados invadindo as narinas de Astra como uma lembrança viva do inferno. Era como estar na guerra de novo. Sozinha. Esquecida. E completamente aterrorizada.

O mesmo cheiro acre de fumaça e sangue pairava no ar, misturado ao som incessante de explosões e metal retorcendo. Cada ruído parecia perfurar os ouvidos de Astra, misturando-se com o zumbido insistente que não a deixava pensar.

O fogo lambia as paredes ao seu redor, lançando sombras grotescas que dançavam como espectros. Os gritos abafados de dor e desespero ecoavam como fantasmas de algo que ela nunca conseguiu esquecer.

Violet... Vander... todos estavam desaparecendo em meio ao caos. Era como se ela não existisse mais, como se fosse apenas um pedaço de destroço que o fogo logo consumiria.

Seu corpo tremia, mas não por causa da dor física.

━━━ Eu não quero morrer aqui... ━━━ murmurou, a voz fraca, engolida pelo rugido das chamas.

A guerra não ouvia pedidos. Ela não perdoava, nem dava tempo para lamentos. Astra sabia disso. Sempre soube. E, ainda assim, cada segundo naquela destruição parecia mais cruel do que o último.

Silco se aproximou, ajoelhando-se ao lado de seu corpo, os olhos frios fixos em seu rosto enquanto afastava os cabelos dela, que estavam grudados na pele suada e suja.

━━━ Tudo bem. ━━━ disse ele, em um tom baixo, quase gentil, que parecia cruelmente fora de lugar. ━━━ Vamos acabar com isso.

Ele se levantou, os passos lentos e calculados, e começou a caminhar em direção a Vander. O rugido das chamas e os estalos do metal rangendo ao fundo pareciam acompanhá-lo. Astra tentou se mover, mas seu corpo se recusava. Tudo doía, cada músculo e osso gritando em protesto.

Ela apertou os punhos, mesmo que mal conseguisse movê-los, enquanto a raiva fervia sob a superfície de sua exaustão.

Ela apertou os punhos, os dedos se fechando com dificuldade, o esforço mínimo parecendo imenso em seu estado. A dor e o cansaço pesavam sobre ela como correntes, mas havia algo mais forte começando a se formar. Raiva.

Era como uma chama que resistia ao vento, pequena, mas impossível de apagar. A raiva fervia sob a superfície de sua exaustão, cada batida lenta de seu coração a alimentando, mesmo que seu corpo gritasse por descanso.

E então tudo voltou a rodopiar. O mundo ao seu redor parecia girar, os sons se misturando em um zumbido caótico. Tudo se fundia em um redemoinho indistinto. Nem mesmo sua visão a ajudava. Tudo estava borrado, as sombras se movendo como fantasmas que a perseguiam. Ela tentou levantar a cabeça, mas o peso era insuportável. As chamas pareciam crescer em sua direção, o calor insuportável se aproximando como se o fogo fosse um predador.

Mas a raiva ainda estava lá. Ela cerrou os dentes, as lágrimas escorrendo de seus olhos enquanto lutava para não desmaiar de vez. Cada músculo tremia, e sua mente corria em círculos, incapaz de encontrar uma saída, mas recusando-se a ceder.

Não assim. Não agora. O redemoinho de caos ao seu redor continuava, o mundo desmoronando em câmera lenta, mas algo dentro dela ainda se segurava. Mesmo enquanto tudo parecia desmoronar.

Silco voltou, os punhos cerrados e sujos de sangue. Sua expressão era indescritível, uma mistura de raiva e contemplação, como se cada pensamento estivesse calculado, mas prestes a explodir. Ele era metódico sempre foi , mas naquele momento, Astra viu nele algo mais, algo como manipulação pura.

Sem dizer uma palavra, ele se abaixou e a pegou no colo. O toque era firme, quase possessivo, e não deixou espaço para resistência. Sevika, caída e ferida, foi carregada por outro capanga. Enquanto Silco caminhava, Astra mal conseguiu se manter consciente. Mas, no fundo, uma lágrima escorreu de seus olhos, quente e amarga. Ela pensou que poderia tê-la perdido. Sevika tinha se sacrificado por ela.

Os acontecimentos seguintes foram borrões. Fragmentos de memória vinham e iam como flashes, gritos distantes, o cheiro de pólvora impregnando suas narinas, o sangue, o fogo. Cada detalhe era uma agulha perfurando sua mente, mas nada fazia sentido.

Finalmente, quando abriu os olhos, o mundo parecia estar em câmera lenta.

O cenário era de completa devastação. O concreto sujo estava coberto de cinzas e sangue seco, pedaços de metal e vidro espalhados ao redor. E então ela viu.

Uma pequena silhueta ao longe.

A figura estava curvada, quase caída no concreto, as mãos escorregando pelos lados do corpo como se não tivessem mais força para se manter erguidas. Astra piscou algumas vezes, tentando afastar o embaçado de sua visão. O coração disparou. Ela sabia quem era antes mesmo de conseguir ver direito.

Powder.

Os cabelos azuis inconfundíveis brilhavam sob a luz trêmula das chamas ainda queimando ao fundo.

━━━ Não…  ━━━ a voz de Astra saiu como um sussurro rouco, mas ela não conseguia se mover.

Silco estava lá, parado em frente à silhueta. Ele segurava algo na mão direita, algo que Astra reconheceu imediatamente, mesmo em meio à sua visão turva. Sua adaga.

O cabo de metal girava lentamente entre os dedos de Silco, o movimento tão casual que parecia um gesto de tédio, mas Astra sabia que não era. Nada em Silco era casual. Seus olhos estavam fixos em Powder, analisando cada movimento da garota como se estivesse desenhando um plano invisível no ar.

━━━ Olá, garota. Onde está a sua irmã? ━━━ ele murmurou, quase simpático.

Astra se debateu, tentando se livrar do peso que a prendia. A energia começou a voltar, lenta e instável, mas suficiente para fazê-la reagir. O desespero era uma força que ela conhecia bem, e agora ele a impulsionava.

Powder não respondeu. Ela permaneceu parada, os olhos fixos no chão, o corpo tremendo como se estivesse prestes a desmoronar. O movimento foi rápido, desesperado, como uma criança buscando proteção. Os braços pequenos e trêmulos de Powder se enroscaram ao redor de Silco, enquanto ela enterrava o rosto em seu peito, soluçando de maneira incontrolável.

━━━ Ela me deixou. ━━━ Powder murmurou entre soluços. ━━━ E ela não é mais minha irmã.

Silco hesitou por um momento, a adaga girando em seus dedos antes de ser deixada de lado com um leve som de metal contra o concreto. Ele baixou o olhar para Powder, que ainda soluçava de forma descontrolada, e seus braços a envolveram com uma delicadeza desconcertante, quase gentil.

━━━ Sabe, você é igualzinha a mim, querida. ━━━ murmurou ele, sua voz baixa, carregada por um tom melancólico que parecia tão distante de sua usual frieza. ━━━ Traída, enganada por aqueles em quem confiava. Mas não se preocupe... eles vão ter o que merecem. Todos eles.

As palavras dele caíram como pedras no peito de Astra, que parou onde estava, congelada. Era como se o tempo ao seu redor tivesse parado, as chamas e os gritos se dissolvendo em um vazio absoluto. Ela observava, imóvel, enquanto Powder não parava de chorar. A garota enterrava o rosto no peito de Silco, como uma criança buscando abrigo, os soluços ecoando baixinho, abafados pelo tecido do casaco dele.

Ela deu um passo vacilante à frente, o corpo tremendo de fraqueza, mas cada fibra sua a impulsionava para continuar. Silco percebeu o movimento e, por um instante, virou o rosto para Astra. Seu olhar era calmo, controlado, mas por trás daquela máscara de frieza havia algo mais, algo perto do carinho paternal.

Sem hesitar, Silco puxou Astra para o abraço, os movimentos firmes, mas carregados de um cuidado inesperado. A cabeça dela tombou contra o peito dele, pesada pela exaustão e pelo peso das emoções que a esmagavam.

━━━ Astra... ━━━ murmurou Powder, sua voz tremendo com a mistura de alívio e confusão.

Os olhos avermelhados de tanto chorar se ergueram, e as íris azuis brilhantes estavam agora tingidas de um tom de rosa forte, vívido.

Astra, com o corpo trêmulo e fraco, ergueu a mão com dificuldade e tocou o rosto de Powder. Havia algo indefinível naquele gesto, uma mistura de proteção e dor, como se ela estivesse tentando ancorar a garota à realidade. Ela deu um pequeno aceno, quase imperceptível, antes de inclinar-se para beijar a têmpora de Powder. Um longo e doloroso suspiro escapou de seus lábios, carregado por todas as palavras que ela não conseguia dizer.

Silco as segurou com mais firmeza, os braços envolvendo ambas com um cuidado que era quase paternal. Astra e Powder, suas meninas.

━━━ Vocês estão seguras agora, minhas meninas. ━━━ murmurou ele, a voz baixa e suave, mas com um tom de convicção que fazia suas palavras parecerem uma promessa.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top