Zoológico (O retrocesso dos bichos)
Bom dia, boa tarde e boa noite. Não sei que horas meus queridos leitores estarão lendo este conto, mas creio que um cumprimento geral é o mais adequado. Sim, claro que são queridos. Mesmo afundados na repugnante mediocridade, são queridos. Por mais que eu saiba que não conseguirão, em sua plenitude, entender nos mais mínimos detalhes o que eu pretendo passar com essa minha narrativa, são queridos. Descontentes que não se aplacam a razão... Mas queridos.
Tudo bem. Não vou me alongar mais. Um parágrafo de cumprimento e explicação de cumprimento é demais... Já me arrependi de começar a escrever... Calma, calma. Alguém me disse uma vez para ter cuidado para não fazer um dragão maior do que ele é. Creio que eu estava fazendo isso. A propósito, o quão interessante o destino é. Acabei que, sem querer, introduzindo o tema do meu devaneio. Animais.
Certo, certo. Concordo com vocês, dragões não são animais. Eles nem existem, afinal. Ao menos não fisicamente. No fim das contas, qual a necessidade de algo existir fisicamente para ser real? Digo, dragões são tão reais quanto, sei lá, cachorros. Não estou querendo dar uma de Yoko Ono, mas vocês aceitariam melhor minha opinião sobre dragões se sonhassem junto com a minha mente problemática. Enfim. Agora eu juro que começo.
Estava eu em mais uma das minhas andanças desnecessárias com a minha família, pois sim, nós tínhamos muitas andanças desnecessárias. Quando me deparei, digo eu, mesmo na presença deles, pois apenas eu consegui ver aquela situação como ela realmente era. Com uma chacina feroz provida pelos animais do zoológico, e sim, nós estávamos no zoológico. Por que eu não disse antes que estávamos no zoológico? Oras, não era relevante naquele momento. Quando for necessário situar vocês, eu situo! Vocês são chatinhos, sabia?! Ou eu que sou... Enfim.
Eu digo zoológico, mas na verdade estávamos em um safari, aquele passeio que se faz de bugie no meio da savana, aquele bioma com plantas gramíneas e árvores espaças... Tá bom, isso aqui não é o exemplar escrito do telecurso 2000. Como fomos parar nesse safari, logo nós família de baixa renda e sucateada pelos impostos e desrespeitos do governo? Digamos que a vida é justa em alguns momentos.
E lá estávamos nós, quando, inconscientemente, eu me deparei com aquele incidente horrendo, ao menos para mim. Me surpreendi (nada de surpreendi-me no meu texto, não agora) em como meus pais olharam com uma certa naturalidade para “aquilo”. Tudo bem que eles são mais “vividos” do que eu e já devem ter visto muitos documentários da BBC, ou do Discovery channel, sei lá. Mas, sinceramente, sequer se impressionar com algo como “aquilo”... Só de lembrar já me dá arrepios, e olhe que eu não sou um ser com todas as faculdades mentais bem desenvolvidas.
O que chamo de “aquilo”, meus amigos, é uma mostra de como os animais são realmente seres inferiores aos seres humanos. Nós, com toda nossa grandiosidade, capacidades evolutivas, discernimento do certo e do errado e intelecto inigualável, realmente temos todo o direito de nos sobrepujar sobre seres tão inferiores. Digo, eles são primitivos. Tão nojentos, de hábitos medonhos e com um único senso de ordem natural na cabeça... Me dá (nada de dá-me também, não agora) náuseas toda vez que penso neles...
Realmente não entendo como George Orwell escreveu uma obra tão magnifica sobre esses pobres coitados esfomeados. Juro por Deus que “aquilo” era terrível. Basicamente duas gazelas, aparentemente usufruindo da liberdade e do merecido estado de natureza, referência a nossos camaradas Locke e Hobbes, foram atacadas por uma dupla de velozes guepardos que destroçaram seus corpos pela metade, quebraram violentamente seus pescoços e, como se não bastasse, estavam a desfilar, segurando em suas mandíbulas a cabeça de suas pobres vítimas.
Não estão achando isso nada de mais? Calma, ainda tem bem mais. Atrás dos guepardos, cansados da caça, um rebanho de gazelas corria desesperadamente. Os felinos, aparentemente, acharam que era uma tentativa de revanche. "Nos caçaram, agora nós caçamos vocês", era o que se ouvia da mente daquele rebanho deplorável. Tremendo engano. Nada mais que mais um grupo que tentava fugir da desgraça do ciclo da vida repugnante. O que acontecia de fato era uma perseguição. Um grupo de leões estava na espreita daqueles mamíferos saltitantes.
Os guepardos apenas saíram da linha de visão da confusão, largaram as cabeças e foram para o infinito e além, quer dizer, para qualquer lugar que não aquele. A chacina então começou. Sem pena nenhuma os leões abatiam friamente cada uma das gazelas. Eu não sabia que eles eram tão sanguinários até esse dia. Uma coisa é seguir o ciclo da vida. Outra é matar por matar. A escória dos animais...
Depois de ter uns seis corpos sem vida no chão, eles decidiram que estava de bom tamanho e foram se alimentar dos restos mortais. Friamente rasgavam músculo por músculo das pequeninas. O som dos ossos quebrando ecoavam por toda a savana. Era um banquete para os leões. Não foi tão matar por matar. Essa, porém, todavia e, entretanto, não foi a situação que mais me deixou abismado. Eu sequer vi essa cena inicial. Apenas ouvi a história pelo guia turístico, sim, tinha um guia turístico. Vários, para ser sincero.
O que me abismou, me deixou boquiaberto, me revoltou de uma forma que tomei nojo desses tais animais irracionais, foi a plateia da desgraça. Tudo "aquilo" acontecendo e eles estavam esperando apenas uma oportunidade para tomar vantagem da desgraça. Hienas, urubus, formigas, abutres, carcarás etc e etc e etc. Todos eles observavam aquela atrocidade como se fosse a mais bela obra de arte, arte está que para mim só podia ser abstrata, pois a chacina era tão sem sentido quanto os quadros do Kandinsky.
Ai, ai. Plateia tão desgraçada quanto os assassinos. Os tais animais carniceiros. Eles esperam o serviço terminar; pegam o que sobra e andam por ai exalando uma podridão, tanto interior quanto exterior, “incomensurável”.
É nítida a satisfação nos olhos deles enquanto observam seus “garçons” servirem os “petiscos” no prato. Digo petiscos, pois tenho certeza que os pratos principais deles são os próprios “garçons”. Tão fadigados ficarão da caça que baterão as botas de tanto fazer o mais do mesmo.
Tudo que pude ver da cena foi a plateia voando em cima dos restos das gazelas. Dá para acreditar que havia duas que sequer foram comidas? Não sei quantos leões foram, mas, né, duas vidas jogadas no lixo...
Droga. Já chega de tentar pintar essa viagem surrealista. Minha mente está quase pifando. Vou ser bem realista agora. O que de fato eu havia “contemplado” durante aquela andança com minha família era uma chacina no vulgo bairro da mosca, periferia da periferia da minha cidade Natal. Os mais atentos devem ter percebido que aquela situação não podia ser na savana. Por quê? Eu que não vou dizer. Volte você e leia se não percebeu...
A situação? Uma rixa de gangues. Parece que dois chegados do GTG (Gangue Terrorista do Gueto) tinham entrado na área dos GMM (Gangue Mata Mosca), ai já viu né, mexeu com os moral da área que é os GMM, a bala comeu! Foi corre pra lá, corre pra cá. Dois dos cabeça do GMM foram atrás, atirando sem pensar, até que os tiros acertaram os dois vagabundos.
Ai foi festa. Chuva de bala e mutilação a vontade. Isso até que os parça dos caras do GTG chegaram. Vinheram bem uns quinze. Sentaram o dedo no gatilho e atiraram pra valer, mas a quebrada era do GMM, eles sabiam pra onde ir. E foram mesmo. Se intocaram num buraco que ninguém achou.
Deu bom mesmo foi pra a policia, que aproveitou o corre corre de bala pra dar uns tiros também. Mataram seis do GTG, o resto correu voado. Deus sabe onde se meteram.
Isso foi o que chegou aos meus ouvidos por um dos guias turísticos, digo, por um dos moradores que estavam próximos a área barrada. Sim, foi essa a cena que meus pais viram com tanta naturalidade. Não só meus pais como todos que passavam ao redor. Tiravam fotos, riam, gravavam vídeos e comiam com os olhos os cadáveres que estavam jogados no meio da pista. Os policiais, por sua vez, analisavam alguns corpos enquanto que outros para eles eram como se sequer existissem. Pude ver até um cuspindo em um deles. Enquanto isso, a chuva caía e aquela cena se pintava cada vez mais escura e tensa.
Você pode estar pensando, “mas eles não eram vagabundos?!”, “não foram se meter com isso?!”, “é bom que morra mesmo!” etc e etc e etc. Tudo isso é irrelevante. Sabem o que é, ou melhor, quem é relevante, queridos leitores? Aquele animal que trata o próximo de forma tão inferior quanto um urubu trata os restos de um animal que ele come. Que é tão frio quanto um guepardo na hora de caçar sua presa. E bem menos reluzente quanto os majestosos reis da selva.
Eu amo os animais, com exceção desses “relevantes” que eu citei acima. É uma raça que não consigo suportar, sabe? Os tais homo sapiens. Eles se afundaram tanto em sua imaginária superioridade que atualmente nem sei o porquê gastei meu tempo escrevendo sobre eles. Na verdade eu sei. Porque sou um deles. Tão sapiens quanto qualquer um deles... Já que sou, nada melhor do que seguir seus passos. Bem, depois desse dia tomei algumas atitudes que me distanciaram cada vez mais dos meus pais e do resto do mundo verossímil. Mas isso é coisa para outro dia.
O que eu queria mesmo contar a vocês, queridos leitores, é que eu consegui, excepcionalmente há alguns minutos, fazer um espetáculo tão grande quanto esse que lhes contei. Não era escuro e sem humanidade. Nem era matar por matar. Muito menos descaso com o ser humano. Era algo quente e cheio de energia, com um proposito e necessidade, que atraiu muita plateia, mas muita plateia mesmo.
Pude expressar minhas emoções com esse majestoso espetáculo e pude ver que realmente nada nesse mundo vale a pena. A mais maravilhosa tocha humana. Um corpo queimado em chamas reluzentes à luz do dia, pendurado por uma corda e da forma como veio ao mundo. Acendi com minha epifania, mas apenas por um momento. Já que, apenas uma coisa estava à prova, e foi comprovada. Percebi que o brilho era grande em meus olhos, mas era maior ainda nos olhos da minha plateia! Se alguma dúvida lhe restou, prove o quanto é sapiens e tire elas por conta própria, pois do "homem" eu já desisti e em mais nada o ajudarei, apenas o destruirei, um por um até que esse retrocesso da natureza acabe.
Isso é tudo...
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