Um Desafio

Um dia ensolarado e feliz; é assim que me lembro daquele dia em Locksley.

Eu e Thiago acompanhamos Sir Thomas Locksley pelos campos. A região era próspera, os camponeses bem dispostos e alegres, diferentes dos de Hastings, que encaravam os nobres com raiva e temor.

Thomas explicou-me que revertia a maior parte dos impostos coletados em melhorias, distribuindo boas sementes, investindo em novas técnicas de plantação e cuidados com os rebanhos de ovelhas, e até mesmo em algumas escolas. Aquilo tudo me parecia um completo absurdo, pois em meu condado deixávamos o povo com o mínimo possível para a sobrevivência, preocupados com nossos próprios luxos. Contudo, parecia ter dado certo, pois eu podia ver que as terras eram ricas e a prosperidade dos camponeses aumentava ainda mais a dos senhores de terra.

No entanto, logo esqueci de tudo aquilo, porque meu coração estava em Thiago. Ele montava ao meu lado, como sempre, calado e misterioso. De vez em quando nossos olhares se cruzavam e trocávamos meio-sorrisos. O mundo ao redor parecia apagar e sobrávamos apenas eu e ele, perdidos em nossa paixão recente, esquecidos de quem éramos.

Ao nosso lado, seguiam Elise e Marion, montando magníficos corcéis, vestidas belamente, prontas para arrasar corações de cavaleiros. Em torno delas pairava Robert, como um falcão desejando abocanhar suas presas. Lançava gracejos para uma e para outra, com olhos dourados e ardentes, e recebia olhares ardentes em troca. De Marion, ardentes de ciúmes, e de Elise, ardentes de desejo.

— Preste atenção! Ou logo perderá sua noiva... — De súbito, Thiago saiu de seu mutismo e cochichou em meu ouvido.

Eu sorri, cúmplice, e dei de ombros.

— Um novo amor põe um velho para voar — sussurrei de volta.

O dia passou, entre conversas agradáveis e gracejos, e a noite chegou rapidamente para mais um jantar.

Logo, eu percebia a ordem das coisas naquela família. Thomas Locksley e o conde William gravitavam ao redor de Lady Bethany, que mandava em ambos sem que os pobres coitados protestassem. Era um costume do amor cortês, onde os cavaleiros deveriam ser submissos à dama. Invenções de trovadores louco... Ainda assim, os três agiam como se aquilo fosse uma lei. Lady Bethany os comandava, sempre entre sorrisos, bela como uma deusa, e mesmo eu já os acompanhava, pronto a conquistar o mundo em nome dela.

Por sua vez, ela e Marion cercavam Robert como se o insolente fosse uma joia preciosa. Este, herdando o gênio da mãe, considerava-se o centro do mundo. Belo e mimado, preocupava-se apenas com ele próprio.

E deste jeito eram felizes.

Poderia mentir e dizer que eu não os invejara. Contudo, meu coração queimava com uma dor amarga ao compará-los com minha própria família.

Ainda hoje, ao lembrar-me daquele dia, confesso que daria minha vida para viver em um lugar como esse, e jamais poderei perdoar Robert por ter desprezado tudo.

No entanto, assim são os humanos. Nunca estamos contentes com nada, sempre buscando algo diferente do que já possuímos. Há um vazio dentro de nossa alma, um desejar jamais satisfeito que nos impulsiona para terras estranhas. Como poderia culpar Robert por buscar um sonho impossível, se eu mesmo ainda luto pelo meu a cada nova manhã?

Poderíamos ter passado um bocado de tempo em Locksley. Elise, sabiamente, preferia permanecer ali enquanto nosso casamento não se realizasse. No entanto, por causa de Thiago e a dívida de sua família, eu e ele deveríamos voltar a Hastings.

Como eu planejara, havíamos conquistado a confiança do conde Fitzbur e de Thomas Locksley. Ambos decidiram nos ajudar a obter um perdão para Thiago e a reconciliação com meu irmão. Eu sabia que não seria uma tarefa fácil. Só não imaginava o quanto...

***

Quando atravessamos os escuros muros de Hastings, os que estavam no pátio – soldados, artesãos e membros de nossa corte – pararam imóveis. Olhares rancorosos de acusação seguiam a mim e a Thiago.

Com certeza, alguns teriam elevado a voz com xingamentos se não estivéssemos cercados pelos cavaleiros do conde. Mas, este e Thomas cavalgavam ao nosso lado com posturas altivas, armados com escudos e espadas, deixando claro que estávamos sob a proteção deles.

Escudeiros e valetes correram para avisar meu pai de nossa chegada. Enquanto cavalariços nos ajudavam a desmontar e levavam nossos corcéis, aguardamos o convite do intendente de Hastings para entrar na torre principal.

O conde foi primeiro, caminhando com passos orgulhosos e confiantes. Seguimos atrás dele, cercados pelos cavaleiros de Locksley.

Thiago estava pálido, os olhos escuros ainda mais negros sombreados pela preocupação, a mão crispada no punho da espada. Eu o acompanhava com uma expressão tão fechada quanto a dele.

Ao fundo do salão, Francis estava em pé junto de meu pai, e ambos nos fitavam com olhares de absoluto rancor e desprezo.

Engoli em seco, sentindo o coração dolorido. Orgulhava-me de ser racional, e portanto deveria estar pronto para tal recepção, mas dentro de mim reinavam o caos e a confusão. Meu peito ardia com um misto de medo, raiva e, ao mesmo tempo, desejo de ser amado.

O conde William, Thomas e meu pai trocaram os cumprimentos de costume. E então, o conde começou:

—Em breve faremos parte de uma mesma família, por isso é minha obrigação intervir — disse sério. — Gillian e seu escudeiro Thiago buscaram meu conselho e ajuda. Contaram-me sobre a luta com Francis, que os abordou na estrada, certamente preocupado com a honra do irmão e de lady Elise. Mas era noite, e Thiago, sem reconhecer Francis, apressou-se a defendê-los... Este mal entendido não pode quebrar laços de sangue e amizade determinados por Deus.

Francis arregalara os olhos ao ouvi-lo. Provavelmente estava surpreso por eu não ter contado a verdade quanto ao ataque à Elise. De minha parte, eu temia descobrir a versão que ele inventara, o que não demorou muito.

— Gillian desonrou à dama — retrucou meu pai. — Enviei a jovem a um convento na esperança de que ela espiasse seus pecados e ao mesmo tempo ficasse segura contra a devassidão dele. Mas eis que ele foi atrás dela, acompanhado pelo vil escudeiro! Francis, desconfiando da vilania, seguiu atrás deles, desejando impedir um erro irremediável.

Terminando, meu pai voltou-se para Francis, ordenando-lhe que falasse.

— Eu desejava resguardar o nome da dama. Esse é o dever de um cavaleiro — Francis começou. — No entanto, Thiago, que jurara proteger-me, atacou-me traiçoeiramente.

Parte de mim já esperava aquilo. Contudo, apertei o punho da espada e avancei um passo na direção dele, indignado. Thiago, ainda mais pálido e com olhos flamejantes de ódio, imitou-me.

Espadas de ambos os lados foram tiradas, dos cavaleiros de Hastings e do conde, e os sibilos metálicos das armas ressoaram pelo salão.

— Thiago me acompanhava! — rugi exaltado, erguendo a lâmina em ameaça. — Era o dever dele proteger-me!

Os olhos de Francis se estreitaram como os de uma cobra, e na hora percebi meu erro. Parei, congelado, praguejando em silêncio. Havia defendido Thiago com ímpeto demais. Meu irmão agora não tinha mais dúvidas de que eu me importava com ele.

Avançando em minha direção, Francis levantou sua arma em posição de ataque. Thiago, sem pestanejar, postou-se à minha frente.

Ambos pararam a um passo um do outro, encarando-se em desafio. Talvez tivessem se atracado, mas por sorte Thomas Locksley colocou-se entre eles com braços erguidos.

— Paz! — exclamou Thomas . — Abaixem as armas!

— O escudeiro traiu-me! — Francis vociferou, ainda apontando a espada para Thiago.

— Apenas o impedi de cometer um ato do qual se arrependeria depois... — Thiago retrucou entredentes.

— Traidor! — Francis desta vez gritou alto, estremecendo de raiva. — Uniu-se a meu irmão! E todos sabem que Gillian deseja minha morte para herdar o condado!

Com um rugido, Thiago investiu. No entanto, foi impedido pelos cavaleiros de Locksley que o seguraram pelos braços.

— Exijo provar minha inocência! — Ainda preso entre os homens, Thiago bradou, orgulhoso. A honra era tudo para ele, que tinha pouca coisa além disso. Para um empobrecido aspirante a cavaleiro, nada era mais importante do que seu próprio nome. — Desafio-te para um duelo! Deus provará quem tem razão.

Ao redor, todos ficaram em silêncio. A discussão tornara-se coisa séria. Invocar Deus em um duelo significava que ambos poderiam lutar até a morte se assim quisessem.

Enfim, Thiago foi soltou e parou de queixo erguido, fitando meu irmão com olhos cheios de orgulho.

Francis pestanejava, hesitando. Devia saber que Thiago era um excelente combatente, pois treinara inúmeras vezes com ele.

Eu me calara, observando a cena, esforçando-se para conter uma risada irônica. Meu irmão se metera em uma enrascada! No final, foi nosso pai que o salvou.

— Meu filho não terá honra alguma em duelar contra um escudeiro... — disse ele. — Alguém do mesmo ranking deve tomar o lugar de Thiago.

Ele estava certo. Eram as regras da corte, feitas para proteger os da alta nobreza. Do contrário, grande parte dos vassalos menores iriam desafiar seus senhores, decididos a livrar-se deles.

Meu pai calculava que ninguém iria se pronunciar, acabando com a disputa ali mesmo.

— Thiago receberá algumas chibatadas como castigo — decidiu ele — e será enviado de volta à suas terras. O caso se encerra aqui.

Estremeci, sentindo o sangue ferver, indignado com tamanha injustiça.

— Eu tomo o lugar dele! — bradei sem pensar, adiantando-me. — Fui acusado também.

Os olhos de todos recaíram sobre mim, surpresos por eu arriscar a vida por um escudeiro.

— Será um prazer enfrentá-lo, irmão. — Francis torceu os lábios em um sorriso perverso.

Subitamente, compreendi. Meu irmão podia ser cruel, mas era inteligente, um exímio jogador de xadrez. Provocara Thiago de propósito, antevendo minha reação.

E eu, como uma criança inocente, havia caído em sua armadilha!


Nota da autora: não esqueçam os comentários! Estou aqui, ardendo de raiva de Francis... Só para não perder o costume.

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