Thiago

Eu e o cavaleiro despencamos como pedras atiradas por um catapulta e caímos embolados, rodando sobre o gelo da estrada.

Minha cabeça  bateu em uma pedra. Berrei de dor, enquanto estrelas explodiam à minha volta.

Apaguei.

Depois de um tempo, não sei quanto, senti algo gelado em meu rosto e abri os olhos, piscando, atordoado.

Gemi. Minha testa latejava como se duendes pisoteassem nela. Mãos me ampararam e me fizeram sentar.

— Graças a Deus! Pensei que estava morto... — Ouvi a frase, acompanhada de um suspiro de alivio.

Pestanejei novamente, passando as mãos sobre os olhos para limpar minha vista enevoada.

Ainda tonto, percebi que dois olhos grandes e escuros me fitavam, ansiosos. E que pertenciam a um cavaleiro de cabelos também escuros, de ondas espetadas e um pouco mais curtas do que o meu. Por um momento, admirei o rosto diante de mim, achando-o belo, mas depois logo reprimi este tipo de pensamento.

Desde quando um homem pode achar outro bonito?, repreendi a mim mesmo em silêncio. A seguir, comecei a me levantar.

Mais uma vez, mãos ajudaram a erguer-me. Vi o comerciante ao meu lado, olhando-me com uma expressão preocupada. O cavaleiro desconhecido também tinha a mesma expressão em seu rosto bonito. Bonito?, praguejei, resmungando e fazendo uma careta.

— Está tudo bem? — O rapaz adiantou-se e pousou a mão em meu braço. Estremecendo, eu recuei como se tivesse recebido uma picada de cobra, sentindo o meu corpo queimar de um jeito estranho.

Certamente a queda afetara algo em minha mente. Balancei a cabeça e levei a mão a testa, e finalmente o mundo parou de rodar. Olhei para os lados, tentando me situar.

A carroça do comerciante estava parada atrás de nós, e o homem já voltava para ela, amaldiçoando os nobres que pensavam ser donos da estrada.

 O rapaz com o qual eu colidira parecia ser apenas um pouco mais velho do que eu, e vestia-se com roupas de escudeiro – botas, calça e túnica de couro sobre a cota de malha, com o brasão de sua família bordado no peito. Uma espada e um escudo de aparência antiga estavam amarrados na garupa de seu corcel, e este também parecia tão gasto quantos as armas.

E só então, vi meu próprio cavalo. Minha garganta se apertou e eu engasguei. Ele estava deitado de lado e relinchava baixo; uma de suas pernas estava torta e uma ponta do osso espetava-se, atravessando a pele.

Caminhei para ele, sentindo a angústia crescer em meu peito, e agachei-me ao lado, colocando a mão em seu focinho. Os olhos dele estavam abertos, cheios de dor.

 Estremeci, deixando escapar um lamento. Há dois anos o comprara na feira anual de Nottingham, e desde então era minha montaria preferida. Meu único amigo para falar a verdade.

Esquecido da presença do escudeiro, inclinei-me e abracei o pescoço dele. Deixei escapar lágrimas e alguns soluços desesperados. Despedia-me.

Sabia o que devia fazer. A perna quebrada causaria a morte dele em alguns dias, após muito sofrimento. Soluçando, rastejei até a espada, que sabiamente eu prendera a sela antes de iniciar a cavalgada irresponsável, e a soltei.

Meu cavalo relinchou, apavorado. Parecia adivinhar minhas intenções. Voltei-me para ele, e encostei a ponta da espada na veia de seu pescoço, preparando-me para sacrificá-lo. Minha mão tremia e lágrimas escapavam de meu rosto. Fechei os olhos, apertando o punho da espada, sem coragem para fazer o que era minha obrigação.

Subitamente, ouvi um relincho mais alto e abri os olhos, assustado. Então, vi o escudeiro agachado ao meu lado com uma adaga na mão. O sangue já escorria de um corte profundo no pescoço de meu corcel, que tremeu e resfolegou por alguns instantes, e depois imobilizou-se, com olhos fitando o vazio.

— Gostaria que alguém fizesse isso por mim, se o cavalo fosse meu — o escudeiro voltou-se para me observar. Seus olhos estavam tristes; não havia apreciado nem um pouco o que fizera, e isso me fez gostar dele instantaneamente.

— Obrigado... — balbuciei.

Ele assentiu e, a seguir, se pôs de pé e afastou-se, fazendo a gentileza de me dar um tempo para me recuperar.

 De súbito lembrei-me de meu orgulho e de que estava de joelhos, chorando diante de um rapaz que obviamente era um nobre de um ranking inferior, a julgar por suas roupas e armas puídas. Finalmente, após mais alguns soluços escondidos, limpei as lagrimas na manga da túnica e me ergui. 

Controlara-me, e meu rosto voltara a se transformar na máscara de orgulho que eu costumava ostentar. De queixo erguido, dirigi-me para o escudeiro, que segurava as rédeas de seu cavalo e aguardava, fingindo olhar a floresta ao nosso redor.

— Sou Gillian Hastings — apresentei-me, curvando a cabeça de leve.

— Thiago de Avenes... — Ele inclinou-se em uma reverência educada ao ouvir meu nome. E depois, sorriu. — É uma grande coincidência encontrá-lo. Estava a caminho de Hastings para encontrar-me com o conde.

Eu não sorri de volta. Primeiro porque ainda estava muito triste, segundo porque já lembrara-me de minha habitual arrogância, usada para manter-me a distância das pessoas e assim proteger-me.

— O que deseja de meu pai? — indaguei em tom altivo, examinando-o com um olhar de soberba.

O tal Thiago não se deixou intimidar e abriu mais o sorriso.

— Irei oferecer-me como escudeiro de seu irmão, Francis.

— Ah... É claro... Ele é o herdeiro! — deixei escapar, sentindo uma pontada de ciúmes.

Era muito comum que nobres vizinhos, vassalos de meu pai, mandassem os filhos para Hastings. Fazia parte da educação de um nobre servir aos grandes lordes, e serem sagrados como cavaleiros por estes. No entanto, todos sempre buscavam servir a Francis, e não a mim. Eu nunca me incomodara antes com isso... Mas, por algum motivo, pensar naquele belo rapaz sendo destratado e humilhado por meu irmão -  o que ele costumava fazer com aqueles que o serviam -  me deixou aborrecido.

Parecendo perceber o tom de ironia em meu comentário, Thiago encolheu os ombros, como se quisesse se desculpar.

— São ordens de meu pai... Ele deseja que eu conquiste a admiração e o favor do conde e de seu herdeiro.

Aquilo me enfureceu. Mordi os lábios e franzi a testa, contrariado, e repliquei em tom arrogante:

— Ótimo! Pode começar a conquistar a admiração de minha família agora mesmo! Siga a pé, e eu irei em seu cavalo.

Ordenara aquilo, porque ainda me sentia um pouco tonto, mas também porque desejava mostrar ao escudeiro que eu era quase tão importante como meu irmão. E sem esperar uma resposta, tomei as rédeas da mão dele e montei.

O rapaz me encarou, parecendo confuso e humilhado, mas não retrucou. Virando-se,  começou a andar à minha frente.

Após uma última olhada para meu cavalo, morto em meio à estrada, abafei a culpa em meu peito e o segui. Mandaria meus servos buscarem o corpo do animal e faria para ele um enterro digno de um rei. Obrigaria o capelão do castelo rezar uma missa, como se meu corcel fosse uma pessoa de verdade. Isso geraria um protesto entre os padres da região, o que causaria problemas a meu pai e meu irmão, e tal fato me divertiria ao menos um pouco.

Continuei com pensamentos de vingança e um tanto depressivos, seguindo atrás do escudeiro. Minha cabeça doía, assim como meu peito ferido durante o treino. Eu me sentia infeliz e miserável.

Depois de um tempo, Thiago diminuiu o passo e, por fim parou. Vi que ele observava o castelo de Hastings que surgira na curva da estrada. A fortaleza escura crescia diante de nossos olhos, as altas torres e muros delineando-se ameaçadoramente contra um céu avermelhado. Minha garganta se apertou. Eu mesmo considerava o meu lar um local opressivo e assustador. Como ele pareceria aos olhos de outro?

Emparelhei o cavalo ao lado dele e baixei meus olhos, examinando-o. Sua expressão parecia preocupada, e os olhos brilhavam de ansiedade.

— O que houve? — perguntei, esquecendo meus próprios problemas.

Ele voltou o rosto para me observar  e hesitou. Provavelmente decidia se podia confiar em mim. Por fim, disse:

— Meu feudo está falido. Primeiro enfrentamos um alagamento do rio, depois uma epidemia que dizimou os rebanhos de ovelhas. E para finalizar, uma infestação nas plantações...

— Por Cristo! Parecem as sete pragas do Egito — brinquei e ri, sem me comover com a desgraça dele.

Surpreendentemente, ele também deixou escapar uma risada ao invés de se ofender.

— Foi isso que os padres disseram. Eram pragas divinas! Que havíamos ofendido a Deus, e Ele nos amaldiçoara... — suspirou.

— E você acreditou? — indaguei, curioso.

Ele cerrou o cenho e estreitou os olhos na minha direção.

— Não! As chuvas de verão causaram o alagamento, que por sua vez ocasionou alguma doença na ovelhas. Sem elas, que comiam o pasto e o mato, a vegetação cresceu e invadiu as áreas cultivadas. Tentei explicar isso, mas ninguém acreditou em mim! — A voz dele era indignada.

Espantei-me. Inteligência... Era tão raro encontrá-la! Meu coração bateu mais forte, e eu me animei, contemplando o rapaz com um olhar mais atento.

— Então — o escudeiro continuou — não conseguimos pagar os impostos devidos ao seu pai, o conde. E é por isso que estou aqui. Servindo Francis, posso conseguir um adiamento ou até mesmo um perdão das dívidas de minha família.

Lá do alto do cavalo, eu o ouvia, enquanto tentava imaginar como me pareceria aos olhos dele, montado em seu corcel, usando minhas roupas suntuosas, com o sobrenome dos Hastings brilhando sobre mim. Provavelmente, calculava que deveria me adular também...

 A ideia me deixou perturbado. No fundo esperava que alguém gostasse de mim por ser quem eu era, e não por causa do nome de minha família. Meu mal humor voltou com força total.

Deixando a história dele solta no ar, sem nenhum comentário ou demonstração de piedade, resmunguei, batendo os pés nos flanco do corcel.

O animal começou a trotar em direção ao castelo.  E, maldosamente, eu sorri, quando notei que Thiago precisava correr para me acompanhar.

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