Robert


Era manhã quando meus olhos se abriram. Jack estava deitado ao meu lado, na cama da estalagem ao lado da taverna, para onde havíamos nos dirigido na noite passada.

Eu sorri e levei as mãos aos cabelos dele, despenteados e loiros, que cobriam parte de seu rosto.

— Jack — murmurei o nome dele, chegando mais perto e beijando-lhe os lábios de leve.

Ele acordou. Soergueu o corpo com uma expressão surpresa, olhando para os lados como se tentasse adivinhar onde estava.

Por um instante, senti meu coração afundar. Imaginava que ele iria se erguer com um pulo e fugir direto para a igreja mais próxima. Depois, ficaria ali pelo resto da vida, penitenciando-se por seus pecados.

Mas felizmente, era apenas minha imaginação fértil que sempre esperava o pior... Jack apenas sorriu e deitou-se de novo, erguendo os braços com um bocejo preguiçoso.

— Não está se sentindo culpado? — Eu cerrei as sobrancelhas, não acreditando muito na tranquilidade dele.

— Culpado? — Ele franziu a testa e me olhou em dúvida. A seguir, sorriu, entendendo o meu medo. — Deus é Amor... Porque eu me culparia por amar alguém?

Fiz um muxoxo com os lábios, não convencido pela resposta.

— O amor — retruquei, irônico — é algo tão passageiro quanto as tempestades de verão.

Eu me lembrava de Thiago, é claro, e de minha infidelidade. Como podia acreditar no amor, se eu mesmo o desprezava?

Jack não pareceu se abalar com a minha resposta.

— O amor está em todo o lugar. Mas temos olhos que não veem e ouvidos que não ouvem... — disse, e depois, ergueu-se e começou a se vestir.

Aquela era uma frase do Evangelho. Jack tinha sempre uma na ponta da língua.

Com um suspiro, eu também me levantei e coloquei minhas roupas. Quando terminamos, ficamos parados, nos encarando, sem saber o que dizer um para o outro.

— Preciso encontrar-me com Robert — ele quebrou o silêncio. — Jurei a padre Ralph que o protegeria.

"Então... Adeus! Foi bom conhecê-lo", eu pensei em dizer. Mas minhas palavras foram exatamente o contrário.

— Robert deve estar na casa de Elizabeth... Ele saberá sobreviver sozinho! E se você for comigo até Londres? — hesitei, surpreso comigo mesmo. Não tinha planejado ir a Locksley para meu casamento?

— Londres... — Jack ergueu os olhos, pensativo.

— Sim! A cidade é linda! — insisti com uma bela mentira.

Londres era uma cidade grande, confusa e malcheirosa, cheia de ladrões por toda parte. Eu a visitara alguns anos atrás e jurara que jamais pisaria nela. No entanto, sabia que nela seríamos dois desconhecidos em meio à multidão, portanto livres para fazer o que quiséssemos.

Os olhos de Jack brilhavam.

— Sempre quis conhecê-la... Mas... E Robert?

— Envie um garoto até a casa de Elizabeth para avisá-lo de que você está bem. Mais tarde passamos lá e você conversa com ele.

Eu já fazia planos. Que se danasse o maldito Robert!

Iria até o acampamento dos nobres e buscaria meu corcel e meus pertences. Pegaria o dinheiro que meu pai me prometera, e então sumiria no mundo. Livre como um pássaro! E com Jack ao meu lado!

Mas e Thiago? E Elise? Uma vozinha incômoda murmurou dentro de mim. Contudo, eu rapidamente a abafei, sem o mínimo sentimento de culpa.

— E então? — Abri um sorriso e me aproximei de Jack. Peguei a mão dele e beijei-lhe o dorso. — Londres? — insisti.

Naquele momento, não me importava com ninguém. Tudo o que eu queria era minha tão sonhada liberdade.

***

E afinal foi o que fizemos. Juntos, seguimos para o acampamento ao encontro de meu pai.

Apresentei Jack rapidamente como meu novo escudeiro, dispensando o valete que iria me acompanhar na viagem. Meu pai mal o olhou, sem prestar muita atenção nele, e o mesmo fez Francis que parecia furioso com alguma coisa.

Peguei minhas roupas e armas, meu corcel de batalha e, com a ajuda de Jack, arrumei tudo preso na garupa e na sela. Ansioso por se livrar de mim, meu pai cedeu um cavalo a Jack sem nem mesmo perguntar nada sobre ele.

As despedidas foram rápidas e frias. Eu imaginava que nunca mais o veria, mas ainda assim queria partir o mais breve possível. Em pouco tempo deixávamos o acampamento, prontos para pegar a estrada.

— Ainda falta eu despedir-me de Robert... — Jack me lembrou, quando eu já ameaçava instigar meu cavalo rumo ao sul, entusiasmado por começar uma nova vida.

Com um suspiro, eu retive as rédeas e me voltei para ele.

— Tem certeza de que quer encontrá-lo?

Jack assentiu.

— Ele é meu amigo... — disse, e com uma expressão decidida, virou o cavalo para Nottingham.

Eu torci o nariz.

— Vamos ver se é mesmo... — resmunguei, mas por fim segui atrás dele.

***

A verdade é que Jack queria se despedir de Robert, mas ao mesmo tempo tinha medo. Porque no último instante ele resolveu que deveríamos voltar a taverna e apenas vê-lo no dia seguinte.

— Vamos deixá-lo descansar um pouco — Jack disse. Eu pude perceber o receio na voz dele e isso me irritou muito.

— Descansar do quê? — eu grunhi, aborrecido pelo atraso e mais aborrecido ainda porque começava a notar que Jack tratava Robert como um ser superior a ele.

Eu me colocava no lugar de Jack e me imaginava no mosteiro, aguardando a chegada de Robert. Jack, um pobre órfão sem nome ou futuro... E Robert, o arrogante e orgulhoso herdeiro do feudo.

A consequência disso foi que passei a desprezar Robert, mesmo que ele não tivesse feito nada para me ofender. Passamos a noite na hospedaria, e somente no final da tarde seguinte Jack se animou a enfrentá-lo. Talvez adivinhasse o que estava por vir...

Era o início da noite quando chegamos à casa da comerciante Elizabeth. Fomos muito bem recebidos. Robert realmente estava hospedado lá, nos contou ela, e ainda não decidira que rumo tomar.

Com certeza o gavião já se esqueceu de Marion e está sobrevoando novas presas..., eu pensei. A comerciante era linda e inteligente, e eu calculava que Robert iria se fazer de vítima para atrair a atenção dela. Mulheres adoram consolar um jovem desprezado por outra.

Enquanto eu trocava amenidades com ela, ambos sentados no suntuoso salão da casa, Jack foi a procura dele que aguardava na varanda.

Um pouco depois, Jack entrou no salão como um raio em meio à tempestade.

Eu e Elizabeth silenciamos, nos entreolhando com expressões assustadas.

Robert o seguira e estacara na porta com uma careta de surpresa.

— Gillian? — O tom da voz dele era de espanto misturado com horror.

— Olá, Robert! — Acenei, casualmente. — Não imaginei que iríamos nos encontrar tão cedo... — disse. Panaca, xinguei-o em silêncio.

— Eu esperava que não... — ele resmungou em resposta.

Jack havia se dirigido até um armário no canto do salão. De lá, começou a retirar seus pertences, uma velha espada, o arco e uma sacola.

Robert cruzou por nós e foi até ele.

— Você está louco? O que pensa que está fazendo? Londres? Por quanto tempo? E por que com Gillian?

— Por Cristo!! Você é que está me deixando louco com tantas perguntas! — Jack protestou. — Vamos passar uns dias em Londres. Eu quero conhecê-la. Gillian ofereceu-se para ir comigo.

— Mas... Padre Ralph ordenou-lhe que tomasse conta de mim! Vai me deixar sozinho?

Os dois tentavam falar baixo, mas ambos estavam nervosos e era possível ouvi-los.

— Você saberá se virar sozinho... — Jack retrucou. — Elizabeth nos disse que ficará hospedado aqui por algum tempo. Assim que voltar eu te procuro!

— Gillian não é confiável! Por favor, não faça isso! — Robert implorou.

Eu queria levantar e desafiá-lo para um duelo. Mas mordi os lábios e continuei ouvindo.

— Eu sei o que estou fazendo... — Jack tentava acalmá-lo.

— Jack! Ele... — Robert hesitava. E depois continuou com uma fala entrecortada: — Eu... Você já deve ter reparado nas flores e abelhas na primavera... E... eu sei que a Igreja considera isso um pecado e não sei se você já reparou que alguns animais... de vez em quando, sabe...

— Sei! Você está tentando me falar sobre sexo. Acha que sou imbecil? — Jack franziu o cenho.

Eu escondi uma risada. Acabe com ele, Jack!, torci.

Mas Robert não se dava por vencido.

— Desconfio que talvez... talvez ele... ele possa ser um daqueles homens que gostam de outros homens. Ouvi boatos quando estive em Hastings e... — a voz dele parecia constrangida.

Eu quis matá-lo. Meu sangue ferveu e meu peito ardia de raiva. Por Jack, apertei as mãos nos braços da poltrona onde me sentava e sorri para Elizabeth, fingindo não ter escutado.

— Eu já sei disso! — Jack protestava e olhava para Robert com uma expressão indignada.

— Já sabe?!

— Também não sou quem você gostaria que eu fosse... — Os olhos de Jack se voltaram para o chão. E em seguida para Robert, que já havia compreendido tudo.

— Mas... E Lilian? Você não gostou dela? — Robert insistia.

Lilian? Quem era a vagabunda? Desta vez, franzi o cenho e quase me levantei para tirar satisfação com Jack.

— Não fiquei com a garota... Não tive vontade! — Jack rebateu.

Ufa... Deixei escapar um suspiro.

— Maldição! Você não tentou o suficiente! — Robert esbravejava, parecendo decepcionado como se o amigo tivesse falhado em fazer algo, apenas por não ter se esforçado o bastante. — Você passou a vida no mosteiro e não sabe nada sobre o amor e sobre as pessoas! Você está confuso!

Mais uma vez me segurei. Queria pegar a cabeça de Robert e batê-la contra a parede.

— Confuso?! Você é que está confuso! Disse estar apaixonado por Marion! Então, por que está aqui? — Jack apontou para o salão. — Porque não está com ela em Locksley?

— Você sabe que não posso fazer isto! Eu sofreria muito em vê-la se casando... — Robert defendeu-se, parecendo surpreso com a mudança de rumo da conversa.

— Então, você também não sabe nada sobre o amor! Está preocupado em como iria se sentir e não com ela. Ama apenas a si mesmo! Se a amasse de verdade estaria ao lado dela, não conseguiria ficar longe mesmo que a dor e o sofrimento transformassem sua alma em cinzas. Um verdadeiro amante é como um mendigo na porta de sua amada, contentando-se com migalhas! — Jack o acusou. — E ainda por cima nem é meu amigo de verdade! Está sempre me dando ordens e querendo que eu me ajuste ao que pensa ser o certo!

Isso mesmo, Jack. Agora você acordou..., eu sorri para mim mesmo.

— Você é louco! Onde inventou isso? — Robert falava alto e se agitava com uma expressão indignada. — As únicas coisas que você sabe sobre a vida estão escritas no Evangelho!

Jack permaneceu em silêncio. Então, colocou o arco no ombro e cansado de tamanho escândalo, voltou para junto de mim.

Levantei-me rapidamente.

— As duas donzelas já acabaram de discutir? — Sorri, irônico.

— Sim! Vamos! — Jack virou-se para Elizabeth, que tivera a habilidade de fingir-se de morta durante a discussão,  e fez uma mesura educada, agradecendo-a. — Obrigado por ter guardado meus pertences. Eu deixei a túnica que me emprestou para a festa com seu criado, agradeço por isso também!

— Foi um prazer poder ajudá-lo, Jack! Pode passar aqui sempre que precisar... E você também, Gillian! Seu irmão Francis esteve aqui hoje de manhã. Vocês dois são adoráveis!

— Obrigado, Elizabeth! — Meu sorriso se alargou e adiantando-me, beijei a mão dela em um gesto cortês. Depois, voltei-me para Robert que nos observava com uma cara infeliz, parado ao canto do salão. — Fique tranquilo! Vou cuidar de Jack como se fosse meu irmão. Prometo devolvê-lo inteiro!

Robert grunhiu e não respondeu.

Adeus, babaca! Acenei em despedida e Jack fez o mesmo. Eu torcia para nunca mais vê-lo.

Deixamos a casa. Já era noite e mais uma vez nossa partida deveria ser adiada para o dia seguinte. Mas eu estava tranquilo. Jack caminhava ao meu lado pelas estreitas ruas de Nottingham em silêncio, e eu podia pressentir que estava aliviado.

— Tudo bem? — perguntei depois de um tempo.

Ele assentiu com um sorriso.

— Foi melhor do que eu esperava...

— Melhor do que você esperava? — Arqueei as sobrancelhas, surpreso. — Eu me segurei para não desafiar Robert para um duelo!

Jack parou e, desta vez, me encarou com um olhar realmente sério.

— Se deseja minha companhia, prometa que irá protegê-lo.

— Eu? — Abri a boca em protesto e coloquei a mão sobre meu peito, apontando-me. — Está maluco?

— Jure! — Jack insistiu, tomando minhas mãos entre as dele.

Eu o encarei por um instante.

— Tem certeza? — Torci o rosto com desgosto. Só me faltava ter que proteger o imbecil.

— Jure... — Ele assentiu. Aquilo parecia ser muito importante para ele.

Escondi um suspiro resignado e sorri.

— Juro por Deus e pela Virgem! Vou protegê-lo. Seu juramento a Padre Ralph será também o meu.

Na verdade, tinha certeza que nunca mais iria encontrar o arrogante Locksley.

Jack sorriu e apertou minhas mãos, selando o juramento.

Bem... Só posso dizer que eu devia ter ficado com minha maldita boca fechada.



Nota da autora. Só para defender um pouquinho Robert para quem não leu sobre Amor e Lobos volume 1, ele não estava irritado por Jack estar com outro rapaz, mas somente porque era Gillian, um dos Hastings.

Robert não é tão arrogante assim...  

Quer dizer, pensando bem, talvez seja! 

 Gillian devia ter desafiado ele para o duelo.

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