Nottingham II

O soldado que me acompanhava apareceu do nada, puxou a espada e postou-se ao meu lado.

Então é mesmo isso! Ele está apaixonado por Marion, pensei, congratulando-me pela descoberta, e continuei sentado, olhando para Robert com uma expressão calma.

Felizmente, John colocou-se  entre nós. Apertou o ombro de Robert, alertando-o com a voz baixa e controlada:

— Acalme-se! Se arrumar uma briga aqui na cidade será expulso do torneio. São as regras!

Robert respirou fundo; as mãos dele tremiam de raiva e os olhos soltavam faíscas.  Eu permanecia sentado com as pernas cruzadas, aguardando o momento em que seria atacado com uma expectativa divertida.

Contudo, o esquentado Locksley conseguiu se controlar. Pegando uma sacola que estava no chão ao lado da mesa, colocou o arco às costas e afastou-se em passos rápidos.

Deixei o ar escapar, aliviado. Por fora, mantivera uma expressão impassível, mas na verdade meu coração batia descontrolado como se mil trovões ressoassem no peito. Por que fizera aquilo?

Balancei a cabeça, tomei um gole do copo de cerveja a minha frente e ri sozinho. Ver Robert encolerizado era engraçado.

***

No dia seguinte, acordei bem cedo.

Hoje aconteceria o famoso torneio de arco. Os melhores arqueiros da Inglaterra competiam nele. A maioria deles eram soldados, caçadores e guardas florestais; homens simples do povo, pois os nobres dedicavam-se às justas de cavalaria.

De vez em quando eu treinava com o arco. Gostava de atirar, mas não me considerava um grande arqueiro. Ainda assim, todos os anos acompanhava o torneio com a dedicação de um fã entusiasmado. Por isso, vesti-me rápido e deixei a tenda onde minha família dormia, separados por tecidos leves que não impediam os roncos altos de meu irmão e meu pai.

Thiago assombrara meus sonhos, mas apesar disso eu me sentia alegre. Em breve recomeçaria uma nova vida.

O sol da manhã brilhava forte e uma brisa suave trazia o cheiro da floresta e das flores que circundavam a região.

Com pensamentos felizes, engoli o desjejum que um valete me trouxera, prendi minhas armas ao cinto, coloquei meus anéis e um belo colar ornado com gemas sobre a túnica. E assim, belamente vestido, parti para o campo onde o torneio aconteceria.

Caminhei até a cerca que delimitava o local de grama baixa, onde alvos haviam sido montados. Os arqueiros já estavam por lá, trazendo longos arcos e alijava de flechas presas ao ombros, e conversavam entre provocações espirituosas.

Por um momento desejei ser um deles, homens livres, sem as intermináveis obrigações de um nobre.

Mas então, meus olhos baixaram para os anéis de ouro em meus dedos. Considerei que jamais conseguiria viver sem o luxo com o qual estava acostumado, sem criados para me servirem, e odiaria ter que me preocupar em como a comida chegaria à minha mesa.

O conforto e a total liberdade eram trilhas opostas. E somente um louco teria a coragem de enveredar pela última.

De repente, meu olhar foi atraído para dois arqueiros que conversavam sob a copa de uma árvore. Logo reconheci um deles, Robert. Ele trazia um arco no ombro como os outros arqueiros e conversava com um deles, um rapaz alto, muito loiro, tão bonito quanto um anjo. Não pude deixar de admirá-lo e, curioso, fui na direção deles.

Robert me viu, e os olhos dele emitiram um brilho metálico e feroz. Ignorando isso, aproximei-me com um sorriso. O amigo dele me analisava com cativantes olhos azuis e abria um sorriso mais cativante ainda.

— Olá, Robert! Vim torcer por você! — eu disse com uma expressão inocente. — Espero que não tenha ficado chateado comigo ontem. As vezes falo coisas sem pensar... Perdoe-me!

Robert resmungou e deu de ombros com indiferença. Então, voltei-me para o rapaz loiro:

— E quem é você? — perguntei.

— Um amigo... Jack de Ball.

— Eu sou Gillian Hastings. Talvez Robert já tenha comentado algo sobre mim... — Meus lábios se curvaram em um sorriso de ironia. — Imagino que provavelmente não tenha sido um comentário favorável!

Nossos olhares cruzaram-se, estudando um ao outro.

O rosto de Jack iluminou-se com um sorriso amigável.

— Robert exagera um pouco... Ele costuma ser meio dramático.

Robert olhou-o indignado.

— Hei! Cuidado com o que fala sobre mim! — reclamou.

Eu e Jack rimos e trocamos um olhar cúmplice. Devo confessar que eu estava fascinado pela beleza de Jack, pelo sorriso alegre e olhos azuis claros como o céu. Eu podia ver a paz nos olhos dele, uma paz que raramente eu encontrara no olhar de outro.

Então, a imagem de Thiago cruzou minha mente e me fez desviar os olhos, sentindo-me culpado. Resolvi despedir-me rapidamente e me afastei a procura de um bom lugar para assistir ao torneio.

No entanto, podia pressentir que o olhar de Jack me acompanhava. Ou seria apenas minha imaginação fértil, criando miragens para seduzir meu coração infiel?

***

As pessoas começavam a se aglomerar ao redor  para assistir ao torneio.

Os juízes se aprontaram. Um deles segurava uma lista e começou a chamar os competidores pelos nomes, apontando os locais onde deveriam ficar. Seriam realizadas baterias de dez arqueiros em cada uma. Eles disparariam três flechas. Os três melhores participariam da nova fase.

Encostado a cerca, eu acompanhava Robert e Jack.

Robert dirigiu-se para o local que lhe indicaram. Os arqueiros de sua bateria conversavam e provocavam uns aos outros até que o viram aproximar-se. Era o mais jovem do grupo e logo todas as atenções se dirigiram para ele.

— É a primeira vez que vai competir, rapaz? — um deles perguntou.

Ele fez que sim. Pobre coitado... Cada arqueiro parecia ter uma piada preparada na ponta da língua:

— Devia ter ficado com sua mãe... Não vá começar a chorar quando perder!

— Que arco é este, garoto? Ele não é um pouco grande para você?

— Sua mãe esqueceu de pentear seus cabelos? — outro disse, referindo-se às ondas revoltas do cabelo dele que pareciam estar mais acentuadas naquela manhã.

Eu ri alto com aquela humilhação. O panaca arrogante estava tendo um castigo merecido!

Ele apenas deu um sorriso em resposta e posicionou-se, estudando o alvo a alguns metros de distância. Seu rosto tinha uma expressão nervosa.

Os que assistiam do lado de fora da cerca berravam, torcendo e fazendo piadas.

Robert respirou fundo, posicionando a flecha no arco. O alvo não estava tão longe, seria um disparo fácil. Tudo o que ele precisava era ficar calmo.

De repente, percebi que eu estava torcendo por ele.

— Disparar! — o juiz gritou, abaixando uma bandeira vermelha.

Robert abriu os olhos, levantou o arco e mirou. Soltou a flecha e esta atingiu o centro geométrico do alvo.

O juiz deu a ordem para o segundo disparo. Ele conseguiu repetir o feito, cravando a flecha bem ao lado da outra. E a terceira entre as duas.

Eu vibrei, junto com a plateia. Robert conseguira passar para a próxima bateria de disparos.

Procurei por Jack, que estava mais ao longe, e vi que ele também conseguira. Os arqueiros ao redor dele o cumprimentavam, e ele respondia com um sorriso aberto que o deixava ainda mais bonito.

Ainda mais bonito..., resmunguei, indignado comigo mesmo. Deixara Thiago há poucos dias e agora já estava ali, admirando outro.

Esforcei-me para voltar minha atenção ao que acontecia no campo.

Os arqueiros que não foram chamados dispersavam-se, lançando imprecações contra o sol, o vento e a bebida do dia anterior.

O juiz levava os competidores até outro ponto do campo, onde nove alvos estavam emparelhados à uma distância um pouco maior. Os três melhores de cada bateria competiriam entre si. Em um canto mais distante, outros nove alvos também estavam armados.

A plateia ao redor havia aumentado, e eu cruzei entre as pessoas, tentando me aproximar de Jack para acompanhar os disparos dele.

O juiz chamou os competidores, pedindo que se posicionassem.

Jack ergueu o arco. Um raio de luz iluminou os cabelos dele com um brilho dourado; o rosto dele, concentrado no disparo, era de uma beleza estonteante. Eu o observava, fascinado como se estivesse em meio a um sonho.

De súbito, ao meu lado, escutei duas garotas darem gritos alegres e baterem palmas, torcendo por ele. Aquilo me fez acordar. Cruzei os braços, aborrecido comigo mesmo, recriminando-me por minha infidelidade.

Dando meia volta, procurei por Robert.

Ele já havia vencido a segunda bateria. Novamente conseguira disparar três flechas no centro do alvo, assim como John, que o acompanhava.

Em seguida, ambos juntaram-se aos vencedores do outro grupo. Jack estava entre eles. Os seis disputariam entre si; destes, quatro chegariam à final.

Jack ficou ao lado de Robert, limpando o suor do rosto. Já era quase o meio do dia e o sol estava forte.

Os seis arqueiros posicionaram-se. Pela primeira vez, nenhum deles fez qualquer comentário. Precisavam estar totalmente concentrados se quisessem vencer.

Os alvos haviam sido colocados ao longe. O disparo seria bem mais difícil do que os anteriores devido à distância.

O juiz deu o sinal e os competidores dispararam uma flecha em seguida da outra.

Conferi os alvos.

Os disparos de Robert haviam sido perfeitos. Ele ergueu os braços e berrou com alegria, comemorando.

O panaca arrogante até que é um bom arqueiro, refleti, um tanto surpreso com a descoberta. Na verdade eu considerara Robert apenas mais um nobre mimado e não esperava muito dele além de conversas tediosas sobre caçadas e conquistas amorosas...

Jack, no entanto, havia errado uma das flechas e estava fora da competição. Ele tinha uma expressão decepcionada, mas ainda assim aproximou-se de Robert e cumprimentou-o com alegria, como um bom amigo faria.

De longe, eu os observava, admirando a ambos secretamente, desejando me unir a eles e tornar-me um amigo, mas sem coragem suficiente para tal. Eu era um Hastings, e Robert nos odiava porque Marion iria casar-se com meu irmão.

O torneio se reiniciaria após uma pausa para o almoço; eles se afastaram rumo à cidade acompanhados por John de Barnesdale e outros arqueiros e, sem saber o porquê, segui atrás deles.

Algo me atraía irremediavelmente para os dois. Até hoje, não sei o que foi. Talvez eu me sentisse sozinho. Ou talvez tenha sido uma brincadeira da deusa Fortuna, que se diverte ao embaralhar destinos...

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