No Mosteiro

O mosteiro de Ball ficava à beira da estrada que cruzava os campos de Locksley. Pastos de ovelhas e plantações de trigo o cercavam, e um rio raso e largo de águas cristalinas corria próximo.

O som murmurante da águas misturado aos balidos das ovelhas e da brisa que sacudia levemente as árvores deveria ser tranquilizante. No entanto, ao chegarmos diante do grande portão do lugar, meu coração batia descompassado e minha barriga se revirava.

A pele de meu rosto devia estar meio verde de tão pálida. Jack várias vezes se voltara para mim nas últimas horas com uma expressão preocupada, perguntando-me se eu não estava doente.

— Acho que comi algo estragado na última estalagem onde passamos a noite — eu mentia, colocando a mão sobre o estomago. Porém, o problema não era a comida...

Na verdade, eu estava em pânico.

Calculava que o tal Padre Ralph, tutor de Jack, já ouvira sobre meu futuro casamento com Elise. O castelo de Locksley era perto o suficiente para que as notícias chegassem, e com certeza o padre saberia de algo tão importante como a noiva de um dos Hastings estar hospedada lá.

Durante a viagem, eu abrira a boca várias vezes para contar sobre Elise a Jack. No entanto, ele parecia feliz. Seu sorriso alegre me impedia de continuar. As palavras simplesmente não saíam, e eu balbuciava apenas algumas bobagens ao invés da incômoda verdade.

Por fim, o portão se abriu e entramos em um pátio de pedras escuras. Desmontamos; nossos pertences e armas foram retirados dos cavalos por dois noviços, e logo depois os corcéis eram  levados por eles para os estábulos.

Eu rezava para que um raio me fulminasse, mas parece que os anjos estavam decididos a me fazer sofrer. O raio não veio...

No lugar dele, descendo a escada da ala principal, apareceu um monge muito magro, de rosto sulcado com rugas que lhe davam uma expressão sábia. Os olhos eram pacíficos como os de Jack, e um sorriso de boas vindas iluminava seus lábios. Era padre Ralph. Em outra ocasião, eu teria gostado de conhecê-lo.

O padre abraçou Jack e beijou o rosto dele de um lado e de outro como um pai faria ao reencontrar um filho amado. Os dois permaneceram por um instante trocando tapas nas costas; em seguida, o padre  perguntou a Jack:

— Quem é seu amigo? — Ele voltou-se para me observar.

Minha garganta estava tão seca que não consegui responder. Apenas, engoli em seco e fiz uma reverência curta enquanto Jack me apresentava:

— Gillian Hastings, irmão de Francis Hastings, o noivo de Lady Marion.

— Que estranha coincidência você estar na companhia de Jack... — O padre ergueu uma sobrancelha e estreitou os olhos. Eu sabia que ele me examinava atentamente.

— É uma história longa... — por fim minha voz saiu, embora meio rouca.

— E Robert? — o padre dirigiu-se a Jack, o qual cumprimentava os demais monges que haviam se aproximado para recebê-lo.

Os olhos dele se sombrearam ao ouvir a pergunta. Voltando-se para o padre novamente, Jack disse com uma expressão culpada:

— Sei que jurei protegê-lo, mas ele está em segurança. Hospeda-se na casa de uma jovem comerciante em Nottingham, Elizabeth de Flandres. Nada poderá acontecer com ele! Quer dizer — Jack sorriu com malícia — nada que ele não queira...

O padre entendeu e sorriu de volta. Depois, bateu mais uma vez no ombro de Jack e fez um sinal com o queixo, convidando-nos a entrar.

— Preciso saber tudo o que houve depois que você e Robert deixaram o mosteiro. E também sua história, lorde Gillian... — Novamente, ele voltou o olhar atento para me analisar.

Não sei se foi o olhar dele. Mas de repente um sentimento de culpa  desabou em meus ombros como um golpe do machado de um lenhador. A imagem de Elise e de Thiago cresceram em minha mente, mescladas a de Jack que me olhava com uma expressão sorridente, sem desconfiar que eu era um crápula traidor.

O leve enjoo que eu sentia aumentou subitamente, e eu levei a mão à boca, lutando para não vomitar aos pés deles.

Jack correu para me acudir.

— Gillian não está bem desde hoje cedo. Vou levá-lo ao quarto de hóspedes — avisou ao padre, puxando-me pelo braço.

***

O aposento para onde Jack me conduziu era o que se esperaria encontrar em um mosteiro. Era pequeno e simples, com apenas uma cama estreita e uma mesa ao lado dela.

Sem tirar as botas ou a capa de viagem, eu desabei na cama e tapei meus olhos com o braço. Respirei fundo algumas vezes, lutando contra o enjoo e o medo. Tenho que contar a verdade..., dizia a mim mesmo, uma, duas, dezenas de vezes.

Enquanto isso, Jack ajoelhara-se ao meu lado e tirava minhas botas, encarando-me com um olhar aflito. Depois, sentou-se na beirada da cama e começou a soltar as fivelas que prendiam minha capa sobre a túnica.

— Continue respirando fundo... — Ele jogou a capa em cima da mesa, e a seguir tirou meu cinto. O toque dele era reconfortante e suave, e eu, ainda escondendo o rosto, pensava em como seria não mais ter a companhia dele por perto.

Jack me fizera feliz nas últimas semanas. Ao lado dele o mundo se tornara um lugar divertido e alegre. E ele quase me fizera acreditar em Deus e nos anjos que nos protegiam com olhares vigilantes.

Em breve, assim que ele soubesse quem eu era de verdade, tudo aquilo terminaria. E então, eu voltaria para minha vidinha de sempre, infeliz, solitária e sem graça. Longe de Jack e de Thiago...

— Jack, preciso revelar-lhe algo —  murmurei.

Tirei o braço do rosto e olhei para ele, que me encarava com um ar sério e preocupado. No entanto, seus olhos azuis brilhavam como lápis-lazúlis. Eram lindos e preciosos, e eu não queria perdê-los.

— Diga-me... — Ele pousou a mão em meu rosto e aguardou.

— Eu... — comecei, e depois, mordi os lábios, hesitando. E por fim, disse: — Tenho medo de que padre Ralph descubra sobre nós.

Jack sorriu.

— Sabia que você escondia algo de mim... É só isso que lhe incomoda?

Fiz que sim com o queixo, enquanto me esforçava para manter a expressão o mais neutra possível. Eu era um mestre em disfarçar a verdade.

O sorriso de Jack se alargou. 

— Estava preocupado! —  Ele deixou escapar um suspiro. —  Pensei que fosse algo mais grave.

— Isso não é grave o suficiente? — Eu torci a testa, fingindo espanto.

— Padre Ralph vai sobreviver... E irá aceitar nosso amor! — Ele parecia decidido a contar sobre nós ao padre. E quando fizesse isso, com certeza o padre lhe avisaria sobre minha noiva abandonada em Locksley.

Eu segurei a mão de Jack que ainda estava em meu rosto e a apertei com força.

— Não quero que conte nada a ele!

— Devo me confessar. Não posso esconder algo assim! — Jack torceu os lábios, parecendo aborrecido com o pedido.

— Jure-me! Não dirá nada! — Insisti e sentei-me com um pulo, o enjoo agora substituído pelo medo.

Percebi que Jack ficara tenso, as costas eretas e os lábios comprimidos em uma linha reta. Os olhos haviam se escurecido.

— Você se envergonha de nós... — ele disse em tom seco. Em seguida, se levantou rapidamente e começou a se afastar.

— Não é isso! — Eu agarrei a manga de sua túnica, impedindo-o.

Jack franziu o cenho e se soltou com um solavanco de braço.

— Descanse! Vou pedir para um dos monges lhe trazer um tônico e um pão... — avisou-me e, dando meia volta, deixou-me a sós.

Com raiva de mim mesmo, eu deixei o ar escapar com força. Depois, desabei no colchão e fiquei olhando através da janela para o céu de cor clara e sem nuvens. Mas dentro de meu peito bramia uma tempestade de nuvens negras.

 O que farei?, perguntava-me em desespero, pela primeira vez na vida sem nenhum plano em mente.

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