Mais Surpresas
Se eu fosse um herói, poderia ter lutado bravamente contra o meu desejo. Teria me erguido da poltrona, indignado, e mandado Elise e Karl para fora.
Mas eu não era um herói. Em um piscar de olhos, caí de joelhos, juntando-me a eles. Meu sangue transformara-se em lava liquida e minha alma fervia de desejo, enquanto eu os abraçava, beijando lábios que se misturavam às carícias atordoantes.
Talvez eu tenha sentido culpa em algum momento. Ou, talvez, não. Já não me lembro. Recordo-me apenas dos corpos entrelaçados, de nossas respirações ofegantes, e de que jamais sentira tanto prazer em minha vida.
Foi uma noite de descobertas. E a principal delas foi o reconhecimento de que um outro rapaz me atraía. Eu o desejara naquela noite. Eu o amara. Foi intenso, muito mais do que podia imaginar.
Surpreendi-me comigo mesmo, percebendo que havia um estranho dentro de mim que nem eu mesmo conhecia. E esse estranho, a parte escura de minha alma, não se importava com as regras, nem com o que era certo ou errado.
Em meio ao prazer proibido, a noite passou rápida. Incansáveis, nos amamos.
Até que a madrugada chegou. Estávamos bêbados de cansaço e amor, como se tivéssemos bebido um vinho forte. Era uma doce embriaguez.
Eu, que costumava me sentir solitário, de repente me vi apaixonado. Agora, sei que não era uma paixão de verdade, mas só um desejo físico. No entanto, naquele dia eu não sabia.
Feliz, sentindo-me livre, gargalhei alto. Os dois não entendiam porque eu ria, e mesmo assim me acompanharam.
Rimos, enquanto nos admirávamos, os rostos afogueados e os cabelos desalinhados nos deixando com uma aparência bela e selvagem.
Entretanto, tais risadas foram nossa perdição... De súbito escutamos batidas fortes na porta.
Silenciamos, nos entreolhando com olhos abertos de susto.
Eu devia ter planejado meus próximos passos. Costumo fazer isso; na maioria das vezes, reflito antes de agir. Mas não foi o que fiz.
Alegre e confiante, pensei que fosse apenas um soldado querendo saber o o que havia. Vestindo rapidamente minha calça e uma camisa usadas como roupas de baixo, rumei para a porta e a abri, já com a boca aberta para mandar o maldito embora.
Parei, estático e subitamente gelado. Diante de mim estavam os soldados. Três deles. Ao meio, estava o meu pai.
Sem esperar um convite, ele invadiu meu aposento. Olhou para Elise e Karl, que vestiam-se apressados, mas ainda pescavam as roupas espalhadas pelo chão. Em um relampejar, meu pai percebeu tudo. Não era necessário uma grande imaginação para entender o que fazíamos.
O rosto dele tornou-se vermelho. Os olhos, azuis como os meu, cintilaram de fúria.
— Meu senhor... — Desesperadamente, encolhi os ombros e comecei a inventar uma desculpa.
Ele fez um sinal para os soldados.
— Levem a jovem de volta aos aposentos dela. Amanhã minha esposa decidirá seu destino — ordenou, ignorando-me.
Um dos soldados adiantou-se e levou Elise, que se foi, preocupada e tremendo, sem voltar-se para nós.
Assim que ela saiu, o olhar de meu pai se deteve em Karl, que terminara de se vestir e o encarava com uma expressão de culpa mesclada ao medo, aguardando o castigo.
— O rapaz vai para o calabouço — meu pai decidiu-se. — Deem uma surra nele! Depois, o expulsem junto com toda sua família. Não os quero ver em minhas terras.
Gelei ao imaginar Karl apanhando dos soldados e sua família sendo expulsa, tendo que viajar pelas estradas em meio ao inverno. Cedric, pai dele, o mestre de armas, jamais arrumaria um outro cargo sem uma carta de recomendação. O que eles fariam?
Adiantei-me, colocando-me diante dele e dos soldados.
— Karl não tem culpa. Eu o obriguei a vir aqui — disse.
Nunca poderei descrever o asco que vi no rosto e nos olhos de meu pai. Estremeci, recuando, sem coragem para dizer mais nada.
Os soldados ultrapassaram-me, agarraram o braço de Karl e o arrastaram para fora. Ele saiu sem protestar.
Então, meu pai também agarrou-me o braço e empurrou-me para a janela. As pesadas abas de madeira estavam cerradas, presas por uma haste de metal.
— Abra-as — ele rugiu a ordem.
Com as mãos trêmulas, eu o obedeci.
O sol ainda não nascera, mas a aurora tingia o céu de vermelho e nuvens negras de inverno se misturavam aos tons rubros. Uma das torres, a mais alta, construída sobre a muralha, dominava a vista, sombria e escura, recortando o horizonte.
Era uma visão horrível, aterradora. Eu odiava aquela torre mais do que tudo.
— Você sabe porque lhe dei esse aposento? — Meu pai parou do meu lado, também observando a torre.
Eu mordi os lábios e meneei a cabeça em negativa.
Ele continuou:
— Para que possa ver a torre e recordar-se do que fez.
Não conseguia voltar-me e olhar para ele, mas o escutava. A voz dele era dura, impiedosa.
Eu tremia e queria fugir. Deixar-me ali, apenas para me obrigar a recordar do passado, era cruel demais. Sempre imaginara que a vista de minha janela fosse somente uma infeliz coincidência.
Engoli em seco, enquanto sentia meu peito afundar. Com muita dificuldade, consegui responder:
— Não tive culpa... — sussurrei, rouco, sem conseguir desviar o olhar da torre.
Meu pai permaneceu calado . O silencio dele era pior do que qualquer coisa. Tivesse ele falado algo, eu poderia ao menos continuar a me defender.
Então, de súbito, ele apenas se virou e se foi.
Eu fiquei ali, paralisado, os olhos grudados na torre. O vento de inverno zunia através da janela aberta, mas eu não conseguia nem mesmo sentir frio. Por dentro, também não sentia nada. Somente um vazio gelado que me impossibilitava até de pensar.
Por quanto tempo permaneci parado, não sei dizer. O tempo passa de maneira diferente nesses momentos. De repente, escutei um barulho de vozes vindo do patio do castelo, abaixo de onde eu estava.
Percebi que o sol se erguera. Vi Karl caminhando devagar, como se mancasse, e depois subir em um cavalo. Ao lado dele, surgiu uma carroça. Era o mestre de armas e sua esposa, que carregava um bebê nos braços, enrolado em uma manta.
Cedric bateu as rédeas nos cavalos que puxavam a carroça e partiu. Karl seguiu atrás dos pais, encurvado na sela, apertando um braço dobrado contra o peito como se sentisse dor.
Pestanejei, subitamente saindo de minha paralisia. Lembrei-me de que o haviam surrado. Que estavam partindo e eu nunca mais iria vê-lo. E que era inverno e eles não tinham para onde ir, depois de uma vida nos servindo.
Como um sonâmbulo, fui até o baú onde guardava o saco com os besantes de ouro. Abrindo-o novamente, o peguei.
Aquilo era tudo o que eu tinha. A unica riqueza que era minha de verdade. As economias que conseguira juntar devagar, de um jeito não muito honesto, planejando utilizá-las quando finalmente eu tivesse coragem para fugir dali.
Sem pensar duas vezes, apertei as moedas contra o peito e saí correndo.
Abri a porta, cruzei o corredor e desci as escadas que chegavam ao salão como um louco.
Os olhares dos que me viam abriam-se espantados, mas eu estava desesperado demais para refletir sobre aquilo. Continuei a correr, atravessando o pátio e o portão do castelo. Enveredei pela rua principal da vila que descia para a muralha, rumo à estrada.
Karl e sua família seguiam por ela. Ofegando, eu os alcancei.
— Parem! — ordenei, chegando perto de Karl e segurando as rédeas de seu cavalo.
Os olhos do rapaz baixaram para mim e pude ver o desespero e a tristeza dentro deles. Seu rosto estava coberto de hematomas, mas ainda assim, ele sorriu.
— Não se preocupe... Vou ficar bem — disse baixo, relanceando o olhar para o pai que nos encarava com ódio mortal, e depois voltando-o para mim novamente. A seguir, inclinando-se, sussurrou em meu ouvido: — Não me arrependo...
Eu não consegui sorrir de volta. Meu coração doía.
— Leve isso... — Ergui o saco de moedas para que ele o pegasse.
No entanto, ele pareceu perceber o que era. Erguendo o queixo com um olhar de orgulho, meneou a cabeça.
— Não posso aceitar!
Suspirando, eu me voltei para Cedric e tentei lhe entregar o saco. Este apenas cerrou o cenho e resmungou, irado, um palavrão. Certamente me culpava pela desgraça deles e, em parte, estava certo.
Foi a mulher com o bebê no colo quem, por fim, o aceitou.
— William irá precisar disso! — Ela indicou a criança, mas sua expressão também mostrava seu desprezo por mim.
Afastei-me para a lateral, abrindo espaço para que eles continuassem. Cedric instigou os cavalos e partiu. Karl ficou parado apenas mais um instante, com os olhos pousados em mim, e depois, baixando a cabeça brevemente em despedida, seguiu o pai.
Fiquei ali no meio da rua, vendo-os se afastarem, até que cruzaram a muralha e se foram. Nunca mais soube deles. Mas os besantes eram suficientes para recomeçarem em outro lugar, e foi isso que não me fez enlouquecer com a culpa.
Subitamente, percebi que meu corpo tremia de frio. E que moradores da vila me olhavam, espantados, como os do castelo haviam feito. Só então baixei o olhar e pousei as mãos no peito, notando o que havia de errado. Eu estava descalço e vestia apenas as finas calças e camisa de baixo. Meu cabelo, sempre arrumado, arrepiava-se em ondas embaraçadas.
Escondendo uma praga, deixei que a máscara costumeira de orgulho voltasse a cobrir meu rosto e, em passos altivos, caminhei de volta ao castelo.
Nota da Anne: drama e mais drama... Este Gillian surpreende.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top