Escolhas

Era noite, quando resolvi sair de meus aposentos e procurar Jack. Deixei Thiago distraindo-se com Robert em um jogo de xadrez e cruzei os corredores na direção do quarto dele.

Lady Bethany o hospedara junto com Edward. Certamente a dama queria indicar com isso que ele era bem recebido, tal qual um filho. Talvez se arrependesse do que fizera, obrigando Thomas a mandar Jack e a mãe para longe. E Thomas havia errado também, mas quem poderia condenar os dois? " Quem estiver livre de pecados que jogue a primeira pedra", dizia Cristo, lembrando que todo mundo tinha suas próprias maldades para lidar e portanto não se devia incriminar os outros.

Quando entrei no aposento de Edward eu tinha essas palavras na ponta da língua, pronto a confortar Jack. Mas logo vi que não seria necessário. Ele estava sentado nas almofadas diante da lareira com Edward, e ambos riam de alguma coisa, com olhos brilhantes e felizes. Era óbvio que Jack estava contente com sua nova família e não iria perder tempo com mil ressentimentos.

Eu faria isso... Acho que Robert também. Mas não, Jack. Porque ele era especial. Lindo. Alegre, um bom amigo e... um ótimo amante.

Entre Jack e Thiago, a escolha era difícil.

 No entanto, eu me decidira por Thiago, e era melhor que isso ficasse bem claro para Jack. No fundo, acho que queria me ouvir dizer aquilo para ter certeza.

— Como estão? — cumprimentei-os com um acenar de mão informal.

Os dois tinham silenciado assim que eu havia entrado. Edward se ergueu com um pulo e, com uma careta aborrecida, foi para o quarto contiguo e bateu a porta. De certo não queria papear com um dos Hastings.

Eu e Jack ficamos sozinhos. Nos entreolhamos, sorrindo.

— Há algum lugar onde possamos conversar? — indaguei.

Pegando uma manta forrada de pele sobre as almofadas, Jack  se  levantou.

— Venha! — Ele fez um sinal de cabeça para que eu o seguisse.

Caminhamos pelos corredores sombreados, iluminados pelo fogos dos archotes, e chegamos ao fim de um deles. 

Estremeci ao reconhecer a escada que subia em espiral. Já estivera ali uma vez. Era a torre mais alta de Locksley; o lugar de onde eu quase fizera uma besteira.

Jack percebeu que eu tinha hesitando com o rosto torcido em uma careta de medo. Chegando mais perto, ele pegou minha mão e a apertou. Depois, puxou-me para a escada.

Com ele ao meu lado, meu temor diminui um pouco. Subimos devagar, tateando com os pés pelos degraus estreitos na semiescuridão, até que finalmente chegamos na parte aberta da torre.

Estava muito frio, mas a paisagem lá de cima compensava o desconforto. As nuvens haviam sumido e o céu de inverno enchia-se de estrelas. Não sei se era porque Jack estava comigo, mas parecia que eu nunca vira um céu tão bonito em minha vida.

Engoli em seco e, com passos vacilantes, caminhei para a beirada. De lá podia enxergar as silhuetas negras de florestas, campos nevados e a vila de Locksley aos pés do castelo, com suas casas iluminadas por braseiros.

Jack postou-se perto de mim e jogou a manta que trouxera sobre os meus ombros. Depois, puxou-a sobre os ombros dele e passou o braço pelo meu. Aquecidos pela manta e pelo calor do corpo um do outro ficamos um bom tempo em silêncio, contemplando as estrelas e a belíssima paisagem.

— Jack... — eu disse por fim. — Robert irá para Poitiers. Depois de tudo o que aconteceu, ele não pode ficar aqui.

— Eu já sabia disso. — Ele desviou o olhar da paisagem e me fitou com um sorriso de canto. — Marion também está lá. Gostaria de ver esse reencontro...

Eu franzi a testa.

— Não consigo entender como os pais de Robert e o conde irão permitir tal coisa. Não seria melhor que os dois jamais se reencontrassem? Porque Marion deve se casar com Francis. Não é isso que foi confirmado hoje?

— Acho que tanto o conde como os Locksleys quiseram apenas ganhar tempo — Jack parecia refletir enquanto falava. — Apesar de todas as mentiras de Francis, eles sabem o que aconteceu de verdade. Não acredito que um dia deixem Marion se casar com ele.

Pensei um pouco e, depois meneei a cabeça, concordando.

— Lady Bethany é especialista em intrigas da corte. Passou a infância e a juventude entre duques e reis...

— Sim... Com certeza, ela tem um plano. Apenas não contou a ninguém, por que tem medo que Robert saiba. E então, ele faria exatamente o contrário e nada daria certo. — Jack deixou escapar uma risada, e eu o acompanhei.

Ficamos em silêncio novamente. Eu me sentia bem ao lado de Jack; já quase tinha me esquecido como era deliciosa a companhia dele, e mordia os lábios receando continuar.

— Mas você não me procurou para discutir intrigas políticas, não é mesmo? — Jack perguntou de repente. Sua expressão tinha se tornado séria e  o olhar me perscrutava, atento.

Eu respirei fundo para pegar coragem e continuar:

— Os Locksleys ofereceram a mim e a Thiago para acompanhar Robert na viagem. Nós dois fomos deserdados... Não temos muitas opções em nosso futuro. O que nos resta, além de nos engajarmos no exército de um rei ou de um duque?

— E entre o rei Henrique e seu filho rebelde, Richard da Aquitânia, o duque de Poitiers, você prefere o segundo. O filho que desafia o próprio pai e batalha contra ele... — Enquanto Jack falava, seus olhos, muito claros mesmo na escuridão da noite, se sombrearam.

— Não sei porque — respondi em tom irônico, — simpatizo mais com a causa do duque. Certamente todos os deserdados e rebeldes do mundo devem lutar no exército de Richard.

Desta vez, foi Jack quem respirou fundo, ainda com os olhos grudados nos meus.

— Thiago deve ir com Robert — ele afirmou. — Mas você... — hesitou, mordendo o lábio inferior de um jeito irritante, o que me fazia ter vontade de beijá-lo.  Mas enfim, terminou: — Você poderia ficar aqui comigo e aprender a administrar as terras do condado.

Meu coração batia rápido. Não podia mentir para mim mesmo e dizer que não havia pensado nisso. Ficar com Jack em Locksley. Deixar Thiago partir...

— E meu irmão? —  objetei. —  Ele vai querer se vingar quando me encontrar novamente.

— Francis não tem motivo para vir aqui enquanto não se casar com Marion. O que talvez não aconteça, como acabamos de dizer. Sua presença em Locksley seria útil, porque demonstraria que apoiamos os Hastings, mesmo que seja um deserdado.

A frase me aborreceu. Acho que eu esperava ouvir que ele me amava e por isso gostaria que eu ficasse. Irrefletidamente, deixei escapar um grunhido e soltei o braço dele. Contudo, Jack já me conhecia o suficiente para saber o que eu pensava e tomou meu braço de novo.

— Na verdade, quero que fique porque te amo — disse, muito sério, a voz levemente embargada. — Estava só arrumando desculpas para te convencer a ficar.

E depois, inclinando-se, segurou meu queixo com a mão e me beijou.

Lagrimas ridículas queriam escapar de meus olhos. A declaração dele me causava um enternecimento como eu nunca sentira antes. Eu, que durante toda a vida tinha sido odiado, agora merecia o amor de alguém como Jack.

Correspondi ao beijo, abraçando-o com força, até que o ardor em meu corpo alertou-me de que devia parar por ali, ou então... é fácil imaginar o então.

Colocando a mão sobre o peito dele, afastei-o.

Recuei alguns passos e deixei a proteção da manta e do corpo de Jack. Cruzei os braços sobre o peito, sentindo-me mais gelado do que nunca, e voltei meus olhos para as estrelas.

A dúvida sobre que caminho tomar era enorme. O vento de inverno me fazia tremer, mas ainda assim servia para me despertar. Inspirei o ar gelado, refletindo, enquanto Jack aguardava em silêncio atrás de mim.

Eu podia dizer qual dos dois amava mais, se Jack ou Thiago? Não... É claro que não. Como se pode mensurar o amor?

Por alguns instante, comparei os dois, sopesando-os na balança do meu coração. Eram completamente diferentes, quase opostos um ao outro. Thiago, orgulhoso, atormentado e melancólico, eu mal começava a descobrir as sombras que a alma dele escondia. E Jack, terno, confiante e alegre... Como eu seria feliz ao lado dele!

No entanto, parte de mim sabia o meu propósito no mundo. Por causa deste eu resgatara Elise do convento e entrara em uma casa em chamas para salvar Robert.

Virei-me para Jack. Minha decisão estava tomada.

— Perdoe-me, Jack. Eu o amo, mas...  — deixei escapar um suspiro — também amo Thiago. E ele precisa mais de mim do que você. Partirei na companhia dele.

Jack sorriu de um jeito triste e inclinou a cabeça de lado, me observando como se tentasse me entender. Eu fiquei parado, deixando que ele me analisasse.

Enfim, ele deixou escapar um suspiro alto e disse:

— Eu devia ter previsto sua escolha... Você está sempre querendo proteger os outros.

— Sim... Fico feliz em fazer isso — respondi confiante. 

Ele silenciou e baixou os olhos com as sobrancelhas cerradas. Apertou a manta contra o corpo como se de repente o frio o incomodasse.

Eu voltei a me aproximar e coloquei a mão no ombro dele.

— Você sempre fala em anjos e que devemos confiar neles. Quem pode dizer o que o futuro nos reserva? — comentei, porque afinal era sempre bom deixar portas abertas para uma reviravolta do destino.

Isso o fez sorrir. Ele ergueu os olhos e pousou a mão sobre a minha.

— Por mais que seja dolorido para mim, devo concordar. Será melhor você partir com Thiago e Robert. Seria uma temeridade deixar meu meio-irmão sem alguém para impedir que ele se meta em encrencas... Não acho que Thiago conseguiria evitar isso.

— Tem razão! Será uma tarefa bem difícil — brinquei.

— Rezarei por vocês... — Com um olhar de despedida, ele acariciou meu rosto com as pontas dos dedos e, depois, meus cabelos, devagar e suavemente, como se quisesse decorar minha aparência.

E de repente, deu meia volta e se foi, correndo escada abaixo.

Finalmente deixei que as lágrimas escorressem por meu rosto. Poderia ter ficado ali por muito tempo, sob o céu de estrelas que iluminava a neve branca sobre os telhados e árvores, enquanto dizia a mim mesmo que minha escolha era a melhor, embora jamais soubesse com certeza.  No entanto, estava muito frio e,  lá dentro, Thiago esperava por mim.

Assim como o panaca do Robert... suspirei de desânimo ao lembrar dele e, me virando, apressei-me para as escadas.


Notas da autora:

E então, o que acharam do capitulo?

Qual dos dois vocês escolheriam?

Ou são como Robert que diz: " Escolher é para os pobres de espirito, já que não se deve contrariar a deusa da Fortuna."

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