Discussões


O salão principal havia sido decorado para a festa com tapeçarias nas paredes, flores e mesas dispostas nas laterais cobertas por toalhas avermelhadas. Um grupo de menestréis tocava acima de um tablado de canto; servos e criados corriam com bandejas, servindo os nobres que comemoravam o noivado de meu irmão e lady Marion Fitzbur.

Eu tinha me encantado com Marion; a donzela era linda e suave como uma rosa no início da primavera. Cabelos negros, olhos verdes, bochechas discretamente rosadas e um sorriso feliz nos lábios. Amável, sedutora, encantadora...

Meu coração se contorcia ao imaginá-la nos braços de Francis. Secretamente, eu jurava a mim mesmo que jamais deixaria isso acontecer. Como poderia impedir o casamento ainda não sabia, mas felizmente, ela ainda passaria um ano em Poitiers, na Aquitânia, terra natal de sua madrinha, lady Bethany de Locksley. Então, eu ainda teria bastante tempo para bolar um plano.

Ao contrário do que eu imaginara, Elise não os acompanhara. Certamente estava com receio de reencontrar meu irmão, e eu não podia deixar de dar razão à ela. Seria melhor que ela permanecesse em Locksley. Depois do torneio de Nottingham, eu pretendia encontrá-la e então nos casaríamos. A seguir, eu partiria para o exército do rei e levaria Elise comigo para Chinon, a fortaleza de Henrique na Aquitânia.

Aquele futuro me parecia muito promissor e adequado. Se não fosse por Thiago, eu estaria muito contente.

Mas, como os trovadores dizem, o amor não se deixa limitar pelos planos perfeitos... Ao contrário, ele parece ter prazer em despedaçá-los, deixando o coração de quem ama em migalhas, aflito e desesperado.

E era assim que eu me sentia, vendo Thiago dançar com uma das donzelas de nosso castelo, minha prima, Delany Hastings, uma ruiva de corpo sinuoso. Ela sorria para ele e o maldito lhe devolvia o sorriso. Os olhos dos dois se encontravam... E as mãos estavam dadas durante o volteio da dança em meio ao centro do salão.

Parado em pé a um canto, eu o admirava, ardendo de raiva e despeito. Thiago me parecia ainda mais bonito naquele dia. Ele aprontara-se para a festa com uma túnica verde bordada, o cabelo escuro caindo em cachos densos quase até os ombros, a postura altiva atraindo olhares cobiçosos das jovens damas. Imaginava que logo ele também arrumaria uma herdeira para casar-se, e assim conseguiria o tão almejado dinheiro para salvar o seu feudo.

Maldito traidor..., franzi a testa e grunhi, notando que Delany sussurrava algo no ouvido dele, fazendo-o enrubescer.

— Gillian? — Ouvi uma voz suave atrás de mim.

Voltei-me. Era Marion. Ela usava um vestido claro e trazia os cabelos presos em um penteado rebuscado que ressaltava seus olhos verdes. Não pude deixar de sorrir.

— Você viu Robert? — ela continuou, parecendo esforçar-se para disfarçar a ansiedade na voz e no olhar.

Peguei a mão dela, sorrindo de um jeito irônico.

— Graças a Deus, não! — brinquei, porque o arrogante Locksley estava mesmo desaparecido desde o início da festa.

— Ele deveria estar aqui... — Ela torceu os lábios em uma expressão desgostosa. — É meu melhor amigo! Como pode me deixar sozinha em um momento deste?

— Talvez ele tenha encontrado uma companhia para se distrair.... — sugeri, calculando que o rapaz com olhos dourados de águia já devia estar bicando suas presas nos corredores escuros do castelo.

Marion puxou rapidamente a mão da minha.

— Vocês, homens, não se preocupam com outra coisa além disso? — Ela torceu o nariz com um olhar indignado e, a seguir, afastou-se.

Suspirei. Pelo visto não era somente eu que tinha problemas amorosos...

Os trovadores continuavam a tocar o alaúde e cantavam, animando o salão. No entanto, eu continuava a me sentir infeliz. E ver Thiago rodopiar de braços dados com as damas não estava me ajudando em nada!

Desanimado, decidi partir para meu refúgio; o melhor lugar do mundo, a biblioteca do castelo.

Enveredei por um corredor lateral até a porta, a abri e entrei, fechando-a atrás de mim com um suspiro de alivio. O silêncio da pequena saleta era como um remédio tranquilizador para minhas aflições, e a visão de meus amados livros nas prateleiras me consolava.

Eu gostava de colecioná-los e os considerava quase sagrados. Livros eram raros e valiosos. Feitos de pergaminho e com grossas capas de couro, padres copistas passavam meses ou até mesmo anos preenchendo-os com belas figuras e letras elaboradas. Muitos eram trazidos até Hastings por mercadores de locais longínquos como a Andaluzia.



Aproximando-me da estante, peguei um de meus preferidos - a  "Odisseia" de Homero. Sentei-me em uma poltrona de canto, escondido de tudo e de todos, desejando esquecer-me de minhas preocupações e de meu coração dolorido.

Uma luz fraca vinha da janela, mas não queria correr o risco de ser descoberto, então estreitei os olhos e forcei a vista, acostumado a ler à meia luz. Logo depois já envolvia-me em cantos de sereias e redemoinhos perigosos que ameaçavam Ulisses, o herói, e seus companheiros.

Ulisses acabara de ser amarrado no mastro do navio para não pular na água ao encontro das sedutoras sereias, quando de súbito a porta se abriu. Estremeci, assustado, vendo Thomas Locksley entrar, trazendo Robert pelo braço como se este fosse uma criança pequena.

Thomas parecia furioso. Os olhos queimavam e as sobrancelhas estavam cerradas. Empurrou Robert para dentro, fechando a porta atrás deles com uma batida forte.

— Senhor... Eu estava... Fui só dar uma volta rápida, mas... 

O belo Robert estava muito bem vestido, usando uma suntuosa túnica azul escura que lhe deixava com a aparência de um príncipe, os cabelos loiro- escuros em ondas rebeldes moldando-lhe o rosto anguloso. Com certeza estivera ocupado com as donzelas, mas não conseguia explicar-se, e apenas  balbuciava com uma expressão de desespero. Pobre coitado!

— Não me interessa onde esteve ou o que estava fazendo! — Thomas o interrompeu bruscamente, encarando-o com olhos duros. — O conde de Hastings e o conde de Fitzbur estranharam sua ausência. Era sua obrigação estar na festa!

Robert encarou o pai com o queixo erguido, sem se deixar intimidar.

Eu pensava em me levantar e avisá-los de que estava ali, mas ainda continuava sentado, imóvel, meio fascinado pelo olhar destemido com o qual Robert enfrentava o pai. Algo que eu sempre desejara fazer, mas nunca tivera coragem.

— Tinha coisas melhores com as quais me distrair... — ele grunhiu para Thomas Locksley.

— Garoto irresponsável! — Thomas rugiu, franzindo a testa. — Nós seremos vassalos de Francis e Marion depois que eles se casarem e herdarem as terras. Você deverá jurar-lhes lealdade! Será que é tão orgulhoso que não consegue entender isto?

Thomas está certo..., disse a mim mesmo. Robert é bem arrogante!, pensei, dando razão ao pai dele.

— Sim, é claro... — Robert retrucou, cerrando o cenho, parecendo muito irritado com a ideia. — Obrigado por não me deixar esquecer! Você é vassalo do conde Fitzbur e, no futuro, seremos vassalos de Marion e Francis, os herdeiros. Se Francis estalar os dedos ordenando algo, terei de obedecer-lhe como um cachorro treinado. Talvez eu deva abanar o rabo como um cachorro faz ao ver o dono quando um dos Hastings se aproximarem. É isso que você faz com o conde Fitzbur... E quer que eu o imite?

Arregalei os olhos, assustado. Como o arrogante podia falar aquelas palavras maldosas? Thomas era leal e correto. O condado de Fitzbur, gerido por ele, era o mais próspero da região... Já ia me levantar para defender Thomas, que emudecera, parecendo tão surpreso quanto eu.

No entanto, repentinamente ele avançou e, erguendo a mão, bateu forte no rosto de Robert.

Paralisei de novo. Deus..., lamentei-me, sem saber o que fazer e encolhendo-me na poltrona.

Robert havia se curvado com o tapa. Contudo, logo endireitou-se e continuou a encarar o pai com uma expressão orgulhosa de desafio, olhos dourados e brilhantes cuspindo fogo.

— Você tem que aprender a me respeitar! — Thomas crispava os punhos e rugia como um dragão. — Quem você pensa que eu sou? Acha que é melhor do que os outros?— Apontou um dedo para o rosto de Robert, acusando-o. — Tornou-se assim por causa de seus malditos tutores! Tutores que eu paguei e que lhe transformaram em um rapaz insolente!

A seguir, começou a andar de um lado para outro da sala, grunhindo nervoso, enquanto Robert finalmente abaixava a cabeça e mordia os lábios, esperando-o terminar.

— Nunca mais me desafie! —Thomas por fim voltou-se para ele.

Robert ergueu o rosto. Achei que iria retrucar, mas sua coragem não foi grande o bastante. Ele apenas voltou o olhar para o chão.

— Sim, senhor... Desculpe-me!

Meu coração se apertou. Thomas estava certo... Mas ao mesmo tempo, ver Robert ser derrotado me enchia de tristeza. Eu me colocava no lugar do maldito arrogante e me via discutindo com meu pai como ele fizera.

Thomas respirou fundo e cravou os olhos nele com uma expressão séria.

— Desculpá-lo? Não! Vou trancá-lo na masmorra assim que voltarmos a Locksley — respondeu em tom seco.

Em seguida, dando meia volta, deixou a sala, batendo a porta com força atrás dele.

Eu continuava imóvel, preso como um rato em uma ratoeira. Se Robert percebesse que eu assistira a cena lamentável entre ele e o pai, com certeza me odiaria pelo restante da vida. Encolhi-me um pouco mais e quase parei de respirar, rezando para ele ir logo embora.

No entanto, Robert ficou parado no meio da sala, tremendo de raiva. Depois, sentou-se em uma cadeira e apoiou os braços na mesa de madeira em frente, escondendo o rosto com as mãos e respirando fundo algumas vezes.

Deus...., lamentei-me de novo. Será que o maldito arrogante chorava? Chateado, resolvi levantar-me para consolá-lo.

Contudo, de repente Robert ergueu o rosto. Envergonhado, eu me encolhi novamente. A atenção dele voltou-se para os livros enfileirados na estante que ocupava a parede ao lado da mesa.

— Quem diria que os malditos Hastings sabiam ler! Francis é tão tolo que provavelmente mal deve escrever o próprio nome... — ele resmungou.

É verdade, assenti em silencio, sorrindo ao escutá-lo.

Levantando-se, Robert limpou as lágrimas com a manga da túnica, foi até a estante e examinou os títulos das capas.

— A escrita é o que dá ritmo ao Absoluto — murmurou. — É o elo entre os mundos visível e invisível. Os livros são minha prece e a caligrafia, testemunha da beleza divina. Padre Ralph costumava dizer isso...

O maluco fala sozinho..., abanei a cabeça, sentindo um pouco de pena. Mas a frase do padre era bonita e merecia ser repetida, considerei.

Ele retirou um dos livros da estante e acariciou a capa de couro, admirando-o. Folheou-o devagar. Distraído, continuou a virar as páginas.

Estremeci, notando que ele pegara "O Banquete" de Platão. Aquele era o único exemplar em toda a Inglaterra. Eu pagara uma fortuna por ele, usando minhas moedas roubadas. Adiara meus planos de fuga por causa daquele livro! E o maluco arrogante iria estragá-lo sem saber o tesouro que tinha nas mãos.

Tossi e pigarrei forte chamando-lhe a atenção. Mexam comigo, mas nunca com meus livros!

Ele levantou os olhos, surpreso ao descobrir que não estava sozinho.

—Robert, por favor, cuidado com meu livro! É um dos meus preferidos! —supliquei. — Não sabe a preciosidade que têm nas mãos... Este exemplar custou-me uma pequena fortuna e você pode danificá-lo.

O rosto dele se torceu e os olhos estreitaram-se. Era óbvio que minha presença ali o aborrecia.

Fechando o livro, Robert guardou-o na estante com cuidado. A seguir, virou-se.

— Há quanto tempo está aí?

—Já estava aqui antes de vocês chegarem — Dei de ombros com uma risada rápida. — Preferi passar despercebido e esperar que vocês resolvessem o assunto e saíssem.

O rosto de Robert tornou-se vermelho. A ideia de que eu assistira à discussão era insuportável para seu espírito orgulhoso. Você deve obedecer aos Hastings, a ordem do pai ecoava em meu ouvido.

— Então, ficou nos espionando como um corvo. Um corvo negro e agourento! — provocou-me.

Isso já era demais! Levantei-me, ofendido.

— Hei! Estava escondido aqui porque não gosto de festas! Que culpa tenho se você e seu pai entraram discutindo um com o outro como gato e rato?

— Você podia ter grasnado como um corvo e nos avisado de sua presença... — ele sorriu, irônico.

Mas que panaca idiota... Crispei as mãos e respirei fundo para controlar-me.

— Por que nos olha com ar superior desde que chegou ao castelo? — perguntei. — Eu e meu irmão nos esforçamos para tratá-lo de maneira adequada! — Isso era verdade. Eles haviam chegado há dois dias; desde então me esforçara para tratá-lo com a mesma cortesia com que eu fora recebido em Locksley.

Robert soltou uma risada sarcástica.

— Trataram-me de maneira adequada... Como um senhor de terras trataria um servo! — retrucou. E dando meia volta, caminhou em direção à porta. — Va t'faire enculer chez les grècs sussurrou um palavrão.

No entanto, eu o ouvi, e finalmente perdi a paciência.

— Seus pais são vassalos do conde de Fitzbur. Mas dizem que o conde prefere morar em Locksley ao invés de ficar em seu próprio castelo, não é mesmo? — perguntei, ressaltando a palavra "vassalos".

—Sim... E qual o problema? — Robert já estava com a mão na aldraba da porta, entretanto deteve-se por um instante.

— Ouvi dizer que sua mãe e o conde Fitzbur são amantes — Meneei a cabeça e abri os olhos como se estivesse espantado. — E que seu pai finge não saber de nada por que assim mantém o poder sobre o condado. Isto é verdade?

Eu sabia ser bastante mal quando queria... Talvez vocês já tenham percebido.

Robert se encolheu como se  uma adaga fosse cravada em suas costas.

— O que diz? — Ele virou-se, franzindo a testa e cerrando os punhos.

— Você ouviu... — Enfrentei-o sem medo.

Rugindo, Robert investiu em minha direção com um pulo. Contudo, fui mais rápido e desviei-me. A seguir, corri para um dos cantos da sala.

Robert cercou-me, medindo-me. Tínhamos a mesma idade, e também altura e pesos semelhantes. De repente, com o rugido de uma fera, ele atacou velozmente.

Mais uma vez, escapei para o lado, fugindo com uma risada alta e um berro de socorro. Na pressa, esbarrei em uma das cadeiras que caiu com um estrondo. Desviando-se dela, chutei-a na direção de Robert, enquanto esquivava-me para longe.

— Covarde! — Robert berrou, pulando a cadeira e avançando.

Levantando as mãos em posição de luta, preparei-me para o confronto. Garoto doido, eu xingava em silêncio, com o coração disparado e, confesso, um pouco assustado pela raiva dele.

Subitamente, a porta se abriu.

Um soldado entrou na sala, atraído pelo barulho.

— O que houve? — Ele examinou a cadeira com um olhar desconfiado.

Um silêncio pesado desceu sobre a sala.

Robert ficou imóvel e abaixou os punhos.

Eu sorria. O arrogante estava perdido. Quando o pai dele soubesse da briga, provavelmente o deserdaria para sempre.

Contudo, surpreendentemente, de súbito fiquei com pena. Imaginei-me no lugar dele, e o que meu pai faria comigo naquela situação. Algo terrível... Talvez me prendesse na torre de novo ou algo do tipo.

Fiz um movimento com os braços como se demonstrasse um golpe.

— Meu amigo iria ensinar-me um novo truque de luta — menti.

— Aqui na biblioteca? — O soldado estranhou.

Cerrando as sobrancelhas, ordenei em tom firme:

— Sim, aqui! Quem é você para fazer perguntas a mim? Retire-se imediatamente!

O soldado assentiu e enfim saiu, fechando a porta com um olhar ainda desconfiado.

Voltei-me para Robert.

— Perdoe-me! Não quero brigar. Falei aquilo sem pensar... — Ergui as mãos espalmadas em sinal de paz. — Não desejo prejudicá-lo ainda mais.

Robert mordeu os lábios mais uma vez e me encarou em silêncio. Percebia meu olhar de pena. E pior ainda: notei que ele também desconfiava dos boatos acerca de sua família...

Eu já me culpava, dizendo a mim mesmo que devia ter calado a boca.

— Dane-se! — Robert fulminou-me com um olhar de raiva e, a seguir, com um sinal de mão nada cortês, apressou-se para fora.

Soltando o ar com força, deixei-me cair novamente na poltrona. Maldito arrogante e prepotente!, xinguei-o por um bom tempo. O louco era parecido com uma tempestade de verão. E eu me sentia como se uma raio tivesse me fulminado. Esta confuso e atordoado, com o coração batendo disparado no peito.

Felizmente, em breve eu estaria bem longe de tudo...



Nota da autora:



Os filósofos gregos eram traduzidos para o latim pelos monges e distribuídos pela Europa e Inglaterra. No entanto, Aristóteles foi traduzido anteriormente a Platão. Portanto, "O Banquete" de Platão talvez não estivesse disponível na época da historia e, em caso afirmativo, seria mesmo muito raro. Mas tomei a liberdade criativa porque penso que este seria um livro que tanto Robert como Gillian adorariam, pois seu tema é o Amor em todas as suas formas.

Quanto a frase em francês: melhor não traduzir!

Esta ultima cena já faz parte de Sobre Amor e Lobos, volume i. É contada na maior parte pela visão de Robert, embora em terceira pessoa.

Está disponível no Wattpad, corram lá depois para comparar.

E me digam se estão gostando!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top