Capítulo 4 (não revisado)

"No meio das armas, calam-se as leis."

Cícero.


Ele tinha dezesseis e ela quinze anos quando se conheceram no segundo grau. Era uma garota linda como poucas, cabelos castanho-claros e olhos azuis, marcantes. O corpo tinha proporções magníficas, com a cintura fina e seios bonitos, muito alta. Mal a viu, Omar apaixonou-se perdidamente, mas levou quase seis meses até conseguir conquistar a moça, logo começando a namorar com Júlia. Os primeiros dois anos foram simplesmente maravilhosos, especialmente quando descobriram o sexo, que faziam com frequência e que lhes dava muito prazer.

Depois, começaram as pequenas discussões, a maioria provocada por ciúmes de ambas as partes. Brigavam e ficavam separados por períodos de uma a três semanas, para depois voltarem arrependidos e recomeçarem, curtindo-se intensamente porque, apesar de tudo, amavam-se muito.

Nessa época, ele entrou na faculdade de direito e ela terminava o terceiro ano, preparando-se para fazer o vestibular para matemática.

No quinto ano de namoro, tiveram uma briga feia e terminaram, como tantas outras vezes já haviam feito, sempre achando que era a derradeira. Furioso com os constantes ciúmes infundados da Júlia e sem se dar conta que fazia o mesmo, Omar saiu com outra garota, decidido a tentar mudar de ares. Para sua infelicidade, concluiu que de nada adiantaria porque simplesmente amava demais a namorada, mas o problema é que Júlia acabou sabendo disso.

Frustrada e enraivecida por ter sido enganada, especialmente porque apesar das brigas ela jamais o traíra, aproveitou uma noite em que a turma saiu e, apoiada por uma leve bebedeira do melhor amigo do Omar, ficou com ele em meio ao silêncio generalizado dos amigos que ficaram espantados.

Vendo isso, o jovem levantou-se da cadeira e saiu do bar, arrasado e com o coração partido, ouvindo o amigo se declarar profundamente apaixonado por ela. Júlia não notou isso porque, apesar de tudo, também não estava lá muito sóbria.

Naquela noite, Omar caminhou muito pelas ruas praticamente vazias, enquanto pensava no futuro e no que fazer, até que foi para casa e deitou-se, tentando dormir um pouco, porém sem obter qualquer sucesso.

De manhã, Omar acordou abatido e com a sensação de que tudo foi um pesadelo, até que a realidade se fazia cada vez mais presente à medida que ficava mais desperto.

Enquanto tomava café sozinho, alguém bateu à porta. O jovem abriu e viu Moacir, este com a cara muito arrependida e desesperada, completamente sem jeito de como começar a abordar a situação.

– Omar, sei que deves estar com muita raiva de mim, mas eu não estava sóbrio. Também sei que isso não é desculpa; entretanto, nós precisamos de conversar.

– Entra. – Sentaram-se na sala e o amigo ficou constrangido por não saber como tocar no assunto. Apesar de tudo Omar estava muito calmo, mas não escondia a mágoa. – E então, Moacir, podes falar.

– Tchê, me perdoa. – Praticamente implorou. – Eu não sabia o que fazia e dizia.

– Há quanto tempo tu gostas dela, Moacir?

– Desde sempre, Omar, desde que a vi pela primeira vez.

– E guardaste isso só para ti?

– Cara, ela namorava o meu melhor amigo, ou seja, tu. O que esperavas? – desabafou nervoso, esfregando as mãos. – Mas ontem vocês estavam separados e brigados há duas semanas. Quando saíste com Lana, eu pensei que tinham terminado de vez e só atinei para a coisa ao acordar de manhã. Olha, dormi sozinho e não transei com ela, ok?

Omar ficou calado, pensando muito. Sentia-se arrasado por dentro e teve uma dor bastante profunda, mas reconheceu que ele mesmo foi o principal culpado daquilo, brigando com a namorada, quase sempre por sua própria culpa, quase como que um vício, sem falar que foi o primeiro a sair com outra garota, mesmo não tendo consumado nada.

– Então? – Moacir interrompeu suas reflexões. – Poderias me perdoar?

– Tu não tens culpa, cara. Eu é que sou um imbecil em tudo. Como foi a prova para a polícia? – perguntou, mudando de assunto.

– Estou passado e aguardo para ser chamado. Mas acho que este não é o foco do momento.

– Eu sei. Apenas queria ganhar um pouco de tempo.

– Tempo para quê, Omar? – perguntou o amigo. – Estamos um impasse e precisamos de saber o que fazer.

– Tempo para criar coragem e tomar uma decisão. – Olhou para os olhos do Moacir que, nervoso, desviou o olhar pousando-o sobre a mesa de centro. Omar continuou. – Vou sair do caminho. Não está dando certo, eu e essa guria, e não podemos continuar esta vida de brigas. Realmente amo muito a Júlia e isso tudo está acabando comigo, mas não posso continuar assim.

– O que pretendes fazer?

– Ainda não sei. Acho que vou para Porto Alegre.

– E a facul?

– Peço transferência para a UFRGS. Federal com federal é fácil, principalmente com as minhas notas.

– Bem, acho que vou indo. – Moacir, levantou-se.

– Só tem uma coisa, tchê, não te esqueças que estou apenas saindo do caminho. Terás de ser muito cuidadoso para conquistá-la, porque ela fez aquilo por vingança e não por gostar de ti. Não penses que vais sair namorando com ela.

– Eu sei, Omar. – Moacir ficou triste e preocupado. Ergueu o olhar para o amigo e continuou. – Eu a amo, mas nem sei como a conquistar. Acho que vai dar tudo errado, cara. Mesmo assim, obrigado por seres compreensivo.

– Nisso, vais ter que te virar, pois mesmo que quisesse te ajudar, não poderia. – Despediram-se e Omar ficou pensando no que faria, quando o pai entrou em casa.

– Oi, pai.

– Opa, filho, que cara mais séria!

– Pai, eu quero ir viver em Porto Alegre e entrar na polícia federal de lá, achas isso possível?

– Sim, eu posso ajudar e podes ficar na tua tia Marina até teres condições de viver por ti. Pelo jeito, tu e Júlia brigaram de novo. Penso que está na hora de criares juízo, Omar, e crescer um pouco.

– Acho que é exatamente isso que pretendo fazer, pai. – Omar olhou para o pai e este viu seus olhos muito tristes. – Não dá mais. Eu a amo loucamente, mas isto não é vida e sei que sou culpado em muitas coisas. Acho que a distância e um emprego responsável são o que preciso para amadurecer. Quem sabe em alguns meses possa voltar e resolver tudo.

– Muito bem, a tua mãe falará com Marina. O chefe da federal de Porto Alegre é o teu padrinho, meu amigo de infância, e ele vai mexer os pauzinhos para ti. E a universidade?

– Segunda vou pedir transferência para a UFRGS. – Após conversar com o pai por mais de duas horas, Omar saiu de casa para pensar.

Caminhou muito pela cidade, pois vivia perto de tudo e não precisava de sair com seu carro, além de não desejar. Triste, sentou-se sozinho num bar, ainda pensando no que teria de fazer, sentindo uma grande dor. Bebia uma cerveja quando Júlia apareceu ao seu lado, sentando-se. O rosto dela demonstrava profunda preocupação, arrependimento, medo e nervosismo. Pôs a mão sobre o seu braço e disse:

– Amor, precisamos conversar – pediu ela. – Me perdoa por ontem, por favor...

– Acho que não há mais nada a ser dito, Júlia.

Porra, Omar – desabafou a moça. – Tu que começaste isso tudo. Eu só fiz aquilo porque estava com raiva...

– E fizeste com o meu melhor amigo, Júlia – interrompeu, acusador, virando o olhar para a namorada. – Fizeste para me magoar e conseguiste de verdade, me deixando arrasado e humilhado perante nossos amigos.

Ela ficou calada, sabendo que Omar tinha razão.

– Eu sei que também errei contigo, mas o que fiz foi justamente para acabar com essa situação que vivemos: uma discussão atrás da outra. Só que eu descobri que te amo muito e não consegui ir adiante com Lana, nada além de meia dúzia de beijos e um pedido de desculpas por não conseguir continuar. Eu não fiquei com ela, Júlia, não consegui, mas a nossa vida está toda errada e temos que repensar – continuou Omar, muito sério. – Não dá mais para viver assim, uma semana na boa e um mês brigando...

– Eu te amo, Omar. – Júlia começou a chorar e ele viu o amigo parado ao longe, observando o par. – Pelo amor de Deus, não faz isso.

– Fazer o quê, Júlia?

– Terminar geral...

– Jú, eu também te amo, mais que qualquer coisa no mundo, mas não está dando certo – insistiu, muito triste. – Os nossos gênios não combinam. Na verdade, somos ambos bastante imaturos e começamos muito cedo, cedo demais. Eu acho que está na hora de crescer, como diz o meu pai.

– Mas...

– Mas o quê? – interrompeu o namorado. Com o coração destroçado, ele continuou. – Hoje, nós discutimos e xingamos. Daqui a dez anos, vamos quebrar pratos na cabeça um do outro e os nossos filhos sofrendo com isso. Não, não dá. Eu te amo, mas vou seguir meu rumo.

Omar deixou dinheiro em cima da mesa e levantou-se, enquanto Júlia chorava sem parar. Ele finalizou dizendo:

– Talvez quando nós, especialmente eu, formos suficientemente maduros para que nossa relação seja estável e harmoniosa, Júlia, então nesse dia voltarei e conversaremos novamente, se estiveres disposta e disponível. Adeus, meu amor, eu te amo, mas é necessário pelo nosso bem. – Inclinou-se e beijou sua testa, saindo para casa e segurando as lágrimas.

Enquanto ela chorava sentada na mesa, Omar viu o amigo aproximar-se, mas não ficou para ver o que ia acontecer. Já sofria demais para se judiar com isso. Por precaução, ele desligou o telefone.

― ☼ ―

No dia seguinte, o jovem foi à universidade solicitar a transferência para a UFRGS. Perdeu o dia inteiro com os procedimentos burocráticos, mas acabou conseguindo. Fez as malas colocando-as na bagageira do carro e tomou o seu rumo no dia seguinte muito cedo, sem se despedir de ninguém exceto dos pais.

A viagem foi calma e tranquila pois o jovem conhecia bem o caminho até à casa da tia porque visitava o primo com alguma frequência.

A tia Marina, que adorava aquele sobrinho, acolheu-o de bom grado, mas notou que Omar nunca ria nem demonstrava felicidade, estando sempre muito reservado.

Preocupada, aproveitou um dia em que apenas ambos estavam em casa e chamou o jovem para conversar.

– Filho, o que te deixa tão triste? – perguntou. – Tu nunca foste assim!

– Precisei de deixar algo muito importante para trás, tia, mas também algo que me fazia mal, muito mal.

– Quem sabe tu me contas isso? – pediu Marina, pondo o braço em volta dos seus ombros, fazendo-o sentar-se no sofá. – Desabafar um pouco faz muito bem, meu filho.

O jovem começou a contar tudo e a tia serviu um café para ambos enquanto ouvia atentamente e em silêncio. Quando terminou, ela permaneceu calada por alguns minutos, até que rompeu o silêncio, pousando a xícara vazia na mesa ao lado:

– Por pior que possa parecer, Omar, foi a melhor coisa que tu fizeste para ambos. Isso é realmente o fruto da vossa imaturidade e só o tempo pode consertar as coisas. Se tiver que ser para ficarem juntos, será. Bem sei que dói muito, mas vocês não podiam continuar assim sem acabarem no caos. – Mudando de assunto, a boa senhora continuou. – O teu pai ligou, durante a tarde. Disse que o telefone estava desligado e deixou comigo os dados para a entrevista, que será amanhã.

– Obrigado, tia Marina – afirmou, pegando o papel com as informações anotadas. – Desligo o telefone durante as aulas por respeito aos professores.

Omar levantou-se e continuou, em meio a um suspiro:

– Sabe, realmente falar fez com que me sentisse um pouco melhor, mas a saudade está me matando.

– Eu sei, meu querido – respondeu a tia. – Vais ingressar na polícia federal?

– É, acho que meio que virou tradição de família.

– Não sei se gosto disso, Omar – comentou Marina. – Eu insisti tanto para Mateus não fazer isso e nada adiantou. Vocês parecem esquecer como é ruim perder alguém importante como foi com o teu tio.

– Alguém precisa fazer isso, tia, e nós temos talento – contradisse o sobrinho. – Mas tranquilize-se, que nós faremos de tudo para não termos o mesmo fim. O tio Carlos foi um grande azar, na verdade.

– Talvez tenha sido, filho – respondeu com um suspiro e um sorriso amargo. – Mas isso não diminui a minha dor, mesmo depois de seis anos.

― ☼ ―

Omar entrou na polícia federal passando facilmente e em primeiro lugar no concurso aberto a pedido do chefe. Logo destacou-se como sendo um dos melhores da corporação, surpreendendo muitos veteranos que ficavam alucinados com a capacidade de tiro instintivo do jovem.

No fim do primeiro mês, surgiu a oportunidade para participarem de um curso especial desde que certos pré-requisitos fossem alcançados e Omar estava no topo da lista, seguido do primo em segundo lugar e apenas mais quatro calouros. Por consequência disso, ele e o primo começaram a receber um treinamento muito especial.

Era muito intensivo, altamente exaustivo e de tal forma puxado que exigia o máximo das capacidades de cada um deles. Ele nunca imaginou que a federal tivesse aquele tipo de curso que chegava a ser muito pior que os treinos de sobrevivência do exército. Na primeira semana um dos candidatos foi eliminado e ao término do segundo mês mais um, sobrando apenas quatro deles. No sexo mês, eles formaram-se e passaram a integrar o esquadrão mais secreto do país, onde Omar destacou-se de forma absurda, superando até os veteranos mais calejados.

Mais seis meses passaram e ele, apesar desse tempo todo, não deixava de pensar na Júlia, sentindo umas saudades que quase chegavam a doer fisicamente. Nessa semana, recebeu a notícia de que Moacir e Júlia estavam de casamento marcado, o que o deixou muito abalado e deprimido.

Sentiu-se tão mal que faltou às aulas da universidade e sentou-se em um bar, sozinho. Tinha uma vontade enorme de desaparecer no nada, de não ter existido nem existir e já estava bem alto quando o primo deparou-se com ele, ao entrar no mesmo bar. Riu-se um pouco da cara dele em sempre bem-humorado, Mateus disse:

– Tchê, tu numa manguaça braba. Qual é a peleja em que te meteste? – Sem esperar convite, sentou-se com o primo e começou a ficar preocupado, pois viu que a coisa era séria ao notar o rosto muito deprimido do Omar. – A tua cara num tá nada boa, mano. Quem sabe tu dás uma desabafada comigo?

– Júlia vai casar, Mateus, com Moacir – respondeu com a voz embargada e sumida. – A merda é que, no fundo, sempre alimentei uma esperança de voltarmos e acertarmos as nossas diferenças. Isso tá doendo demais. Dói muito, tchê, e tá difícil aguentar, muito difícil mesmo, Mateus.

– Omar, faz um ano que vocês se apartaram e, antes disso, vocês estavam que nem gato e rato. Cara, acredita em mim que é melhor assim. Tá na hora de tocar o barco e conhecer outras gurias. Até agora tu andas que pareces um padre, tchê. Acorda!

– Talvez tenhas razão, Mateus. Bah, que merda de vida eu fui arrumar para mim.

Porra, nem fales uma bobagem dessas, Omar. Olha para ti, cara! Estás te formando no fim do ano com uma das notas mais altas da faculdade. Entraste na polícia federal há apenas um ano e já estás cotado como o melhor agente da corporação, sem falar que serás o chefe do esquadrão negro na semana que vem, o mais jovem da história do esquadrão! Logo o mais mortal e secreto esquadrão de todas as polícias.

– É sim, tenho tudo... menos felicidade. – Omar sentiu uma tristeza enorme e baixou a cabeça sobre a mesa. Vendo seu estado, o primo afirmou:

– Acho melhor te levar para casa – ajudou-o a se levantar, embora com alguma dificuldade pois apesar de ser bastante alto e forte, o primo era bem maior. – Vieste de carro?

– Não, não vim – respondeu. – Eu sabia que não ia prestar.

– Pelo menos tu és consciente. Por acaso queres tirar folga amanhã? – perguntou o primo. – Eu aviso o chefe que não te sentes bem.

– Não. Amanhã estarei melhor. Obrigado, Mateus, é bom ter um primo legal para nos apoiar nessas horas.

― ☼ ―

Parou no pedágio e, lentamente, voltou à realidade. Faltavam duzentos e cinquenta quilômetros, mas ele sentia muita fome, uma vez que estava de jejum. Sabia que dali a dez quilômetros havia um posto com um excelente restaurante, onde sempre costumava parar quando ia para a sua cidade natal.

Parou lá, pediu um café com leite, duas torradas simples e sentou-se em uma mesa nos fundos. Tranquilo, comeu a sua refeição enquanto pensava nela, a mulher que jamais deixou de amar por todos aqueles anos, literalmente o amor da sua vida.

Terminou de comer e voltou para a estrada, pois pretendia chegar antes do final da manhã. Inevitavelmente, voltou a se lembrar do passado, enquanto conduzia.

― ☼ ―

Omar recuperou-se devagar, mas foi sempre retraído e muito reservado, raramente participando das farras que a turma do esquadrão fazia. Começou a sair com uma garota e até divertiu-se com ela, mas nunca se deixou envolver. Nenhuma namorada durava mais de um mês, pois bastava ela se apaixonar por ele que se afastava no ato. Seis meses depois, o chefe chamou-o e o delegado estranhou bastante a sua cara muito triste. Omar sentou-se na cadeira.

– Como te sentes, Omar? – perguntou o superior, fechando a porta do gabinete. O jovem notou que ele estava com algo entalado na garganta, algo que o incomodava demais. Respondeu de forma evasiva:

– Vou indo, chefe, mas o senhor é que não parece nada bem. Aconteceu alguma coisa, precisa de ajuda?

– Omar, ontem o teu pai e a sua equipe tentaram interceptar um carregamento de armas contrabandeadas do Paraguai, a vinte quilômetros de Santo Agostinho. O confronto foi terrível e quatro agentes nossos foram mortos. Infelizmente, não há outra forma de dizer isto: teus pais estão entre as baixas.

Tremendo e desamparado, o delegado baixou a cabeça e deixou cair algumas lágrimas em silêncio. Seu superior, amigo de infância dos pais, tentou confortá-lo, estando ele mesmo muito abatido por tê-los perdido. Ofereceu um copo de água para Omar que o pegou com as mãos tremendo e vertendo parte do conteúdo no chão. Quando se acalmou, o jovem olhou para o rosto do superior. Seus olhos estavam manchados de vermelho e o coração despedaçado de tanta dor. Tomando uma decisão, falou com a voz ainda muito tremida, entretanto bem resoluta:

– Senhor, eu peço uns dias de folga para resolver assuntos pessoais e preciso de ir falar com a minha tia antes que ela saiba da pior forma. Não bastou perder o marido há uns sete anos, agora perdeu a irmã...

– Tens quinze dias, filho – interrompeu o chefe. – Estão aguardando por ti em Santo Agostinho para o funeral e precisas de ver os vossos bens já que és filho único. Se achares uma pista sobre os criminosos, basta informares que eu ponho todo o esquadrão negro lá, mas na surdina, ok?

– Obrigado, chefe. – Saiu da sala e foi para casa dar a notícia à tia, que ficou arrasada. Por estar doente, ela não foi para o funeral com o sobrinho.

– Se achares uma pista – disse o primo, pondo a mão no seu ombro –, é só chamar que estarei sempre pronto.

Com pressa, entrou no carro, ligou a sirene e pôs o giroscópio no tejadilho, acelerando absurdamente e chegando à sua cidade natal ainda no final da manhã. Foi direto para o cemitério onde encontrou os tios e dois primos por parte de pai. A meio da tarde, os corpos foram sepultados.

Desesperado e solitário, deixou o carro na casa dos pais, agora sua, e sentou-se num bar para beber algo, casualmente o mesmo onde se despediu da Júlia.

Novamente ele bebeu demais, desejando afogar todas as mágoas que persistiam em permanecer bem vivas. Naquela mesa, lembrou-se do dia em que falou com Júlia pela última vez, sentindo ainda mais sua dor. Apoiou os cotovelos sobre a mesa e cobriu o rosto com as mãos, fechando os olhos e segurando o choro. Pouco depois, alguém pousou suavemente uma mão no seu ombro.

Ergueu o rosto e deparou-se com ela, vendo que a moça nada mudou e sentindo uma vontade forte de tomá-la nos braços e beijá-la. Entretanto conteve-se, embora a custo, e apontou a cadeira para Júlia, mas não se levantou nem a beijou.

– Oi, Omar, já soube dos teus pais – disse a moça, enquanto sentava ao seu lado. – Sinto muito.

– Infelizmente, são os precalços da nossa profissão, Júlia. Soube que te casaste. Por onde anda Moacir?

– Em Porto Alegre, fazendo uma especialização. Volta semana que vem. E tu, como estás?

– Como achas que devo estar? – perguntou, disfarçando o verdadeiro sentimento. – Acabei de perder os meus pais!

– É muito ruim, eu sei. Foi horrível com a minha avó, imagina os pais, ainda por cima ambos ao mesmo tempo.

Beberam juntos conversando pouco e apenas de coisas triviais. A moça notou que ele estava alcoolizado, embora não muito. Ela também já começava a sentir os efeitos da bebida. Suspirou, tomou coragem e disse:

– Sabes, Omar, eu ainda te amo e jamais te esqueci.

– Entretanto, casaste com Moacir – resmungou o ex-namorado, bastante chateado. – Se me amavas, por que te casaste?

– Tu foste embora, Omar, me deixaste – disse, muito triste e um tanto acusadora. – Sinceramente achava que nunca mais te ia ver...

– Eu me afastei e te disse que ambos precisávamos de amadurecer. – Omar interrompeu a moça, muito sério. – Jamais falei que nunca mais voltaria, Júlia, antes pelo contrário; disse que voltaria e iria procurar-te, caso quisesses e estivesses disponível.

– Sinceramente, acho que não ouvi isso, Omar, senão jamais teria casado. Juro por Deus. Deves ter dito na hora que eu chorava, pois não lembro grande coisa a partir de quando comecei a chorar.

– Agora é tarde, não achas? – ripostou. Mais calmo, continuou, erguendo o olhar para ela. – Me diz, como vocês vivem?

– Vivemos bem. Ele é doce e gentil, mas eu não o amo. Não devia ter casado. – Júlia suspirou, muito abatida. – Não é nem nunca foi como nós. Pensei que podeira vir a ser, mas me enganei feio.

– Só que vocês não brigam nem discutem, certo?

– Sim, tens razão. – Ela confirmou e olhou nos seus olhos. Após uns segundos sem falar, continuou. – Mas vejo que mudaste, da mesma forma que eu, Omar. Às vezes me pergunto como seria nós dois de novo, até porque sempre tive esperança que voltasses para cá, para mim...

– Pelo bem de todos, Jú – interrompeu de novo, cada vez mais infeliz –, devemos esquecer o passado.

– E tu, esqueceste? – perguntou-lhe à queima-roupa. – Casaste?

Omar ficou calado algum tempo, olhando bem dentro dos olhos da ex que o encarou e não desviou o olhar.

– Não – respondeu finalmente –, nunca esqueci, mas de nada adianta discutir isso.

– Pelo amor de Deus, eu te amo – implorou Júlia, desesperada. Omar sacudiu a cabeça. – Meu amor, diz sinceramente e na minha cara que não me amas.

– Não posso porque não é verdade, mas tu optaste por casar com Moacir. – Ele insistiu. – Fizeste a tua escolha, Jú.

– Há o divórcio...

– Não estragues a tua vida, amor – disse a palavra sem pensar, sem nem mesmo se dar conta –, que eu já estraguei a minha.

– Acho que também estraguei a minha. – Ela suspirou profundamente. –Só que acho que podíamos consertar as coisas. Pensa, por favor, pensa, meu amor.

– Preciso de ir para casa que já estou bêbado. – Levantou-se com alguma dificuldade. – Se beber mais, acabo incapaz de andar.

– Já estás quase assim. – Ela levantou-se e ajudou-o, apoiando o delegado. – Vamos que te ajudo.

Ao sentir o corpo dela colado no seu, Omar quase que se descontrolou e seu coração disparou. Com muita dificuldade, manteve a calma, caminhando até à sua casa com ela. A moça abriu-lhe a porta, ajudando-o a entrar. No hall de entrada, parados frente a frente, Júlia não se aguentou e abraçou-o.

– Adeus, meu amor – disse ela, beijando-o. – Eu te amo mais que qualquer coisa neste mundo.

Aquele toque nos seus lábios atuou como gatilho para uma explosão forte e descontrolada. Sentiu a cabeça latejar e o pulso acelerar, ficando muito ofegante. Numa paixão arrebatadora, tomou a moça nos braços e puxou-a para si, beijando-a sem parar e sendo plenamente correspondido. Fecharam a porta e fizeram amor ali mesmo, no chão do hall de entrada. Quando se acalmaram, Júlia puxou por ele e levou-o para o quarto, onde recomeçaram a se acariciar, fazendo isso por uma parte da noite. Omar, alcoolizado, esqueceu de tudo e só pensou na mulher que amava loucamente, até que acabaram adormecendo nos braços um do outro. Ela acordou um pouco mais cedo e, quando abriu os olhos, ficou deitada, feliz, vendo o rosto dele, sereno e até sorridente.

O delegado despertou para se deparar com os olhos dela que o beijou delicadamente. Assustado, sentou-se.

– O que foi que fizemos, Júlia? – perguntou. – Isto está totalmente errado!

– Errado ou não, ambos desejamos, Omar e não me arrependo nem um pouco – encostou-se mais, insinuante. – Antes pelo contrário, quero mais.

Mesmo sabendo que era errado, não resistiu ao toque do corpo nu contra o seu, fazendo mais uma vez. Quando pararam, ele nada disse e levantou-se para tomar banho. Ao abrir o chuveiro, ela alcançou-o e banharam-se juntos, em silêncio, mas ainda se acariciando e beijando, repetindo a dose. Finalmente, mais calmos e com as tensões aliviadas, foram para a cozinha tomar café. Nenhum dos dois falou durante algum tempo até que ela foi a primeira a se manifestar:

– Omar, tu és o homem da minha vida e...

– Júlia, tá tudo errado – interrompeu, triste. – Tu te casaste, caramba, e ainda por cima com o meu melhor amigo!

– Mas eu te amo e sei que ambos mudamos...

– Teremos realmente mudado? – perguntou, sério. – Isto que fizemos está errado, muito errado. Bem sei que bebemos demais, especialmente eu, mas o que vou dizer ao Moacir?

– Queres que eu lhe conte tudo e peça o divórcio? – Ela baixou a cabeça. – Eu realmente não sou feliz, Omar. A única felicidade que experimentei em um ano e meio foi ontem e agora... contigo.

– E se acontecer o que eu te disse? – voltou a perguntar, sempre muito preocupado. – E se nós casarmos e recomeçarem as discussões e brigas, Jú? Acho melhor deixarmos as coisas assim e esquecermos o assunto. Se não és feliz, espera umas poucas semanas e decide o que fazer da tua vida independentemente de mim. Quando tiveres decidido o que é bom para ti, só para ti, voltaremos a conversar sobre o que é bom para nós dois, pois apenas assim poderemos resolver isto tudo. Mas antes, precisamos de estar certos que podemos ter harmonia. Eu não quero voltar para a vida que levávamos antes, Júlia.

– E se eu decidir me separar, Omar – perguntou segurando delicadamente a sua mão. – Haveria uma chance para nós?

– Sempre te amei Júlia, sempre, e nunca me liguei a outra guria exceto uma saída ocasional e mesmo isso só depois que te casaste. Se eu visse futuro para nós, podes estar certa que eu me casaria contigo na mesma hora, mas precisaria de ter a certeza que não haveria mais brigas e ciúmes bestas, como te disse antes. Eu tenho sofrido muito com a tua ausência, mas as coisas não podem ser resolvidas na base da traição. E tem mais uma coisa: eu sou um agente federal de um tipo muito especial e vivo correndo perigo, um perigo mortal. Comando um esquadrão terrível, aquele que é chamado em segredo para resolver o impossível. Moacir tem uma vida muito mais pacata, numa cidade tranquila e com um baixíssimo índice de criminalidade. Pensa nisso, pois um belo dia poderias acordar e descobrir que eu fui morto.

– Acontece que eu te amo, Omar – insistiu Júlia agarrando seu braço, quase chorando –, e não me importava nada de viver contigo e arriscar, mesmo que te matassem. Pelo menos, eu teria vivido com o amor da minha vida. É contigo que desejo partilhar a minha vida.

– Já te disse, Jú, primeiro define tuas prioridades, depois falaremos de nós – repetiu. Preocupado, continuou. – Sem falar no Moacir. Como achas que a situação ia ficar entre nós, contigo te separando e voltando para mim? Ias matá-lo!

– Eu não o quero mais, Omar. Cada vez mais sei disso. Hoje em dia nem entendo como foi que aceitei me casar com ele!

– Mas aceitaste e agora deves levar isso em consideração.

Quando terminaram o café, despediram-se com um longo e carinhoso beijo que os deixou ofegantes. Ela saiu, caminhando pela rua, e Omar seguiu-a com os olhos, deixando verter uma lágrima.

Ele conhecia muito bem o amigo e sabia que ele não resistiria a uma separação. Quando ela saiu do seu alcance visual, entrou em casa e não se viram mais nos dias seguintes.

― ☼ ―

Omar passou a semana acertando os detalhes da herança e a transferência dos bens dos pais para o seu nome: duas casas, um sítio e uma pequena farmácia. Para não se aborrecer muito, alugou o sítio e o ponto da farmácia, uma vez que não poderia administrar adequadamente a empresa vivendo em Porto Alegre e, dadas as circunstâncias do momento, seria melhor manter distância da ex-namorada. A outra casa já estava alugada para um casal de amigos dos pais há bastante tempo. Depois disso, contratou uma imobiliária para administrar tudo e sentiu-se bem mais seguro.

Um dia, almoçava tranquilamente quando bateram à sua porta. O delegado viu um homem com aparência humilde e julgou acertadamente que se tratava de um mendigo. Quando se preparou para o dispensar, este disse, falando muito baixo:

– Senhor, faça de conta que sou um mendigo pedindo um prato de comida. Eu era informante do seu pai.

– Entra, tchê.

Levou-o para a cozinha e ofereceu café, servindo duas xícaras. Após um gole, o homem começou:

– Seus pais eram bondosos e sempre me trataram muito bem. Eu passava informações sobre o narcotráfico e contrabando de armas, porque vivo na favela do Alemão. Em troca, eles me davam algum dinheiro, como uma mesada. Eu tenho informações sobre a morte deles.

– Desejas quanto por elas? – perguntou Omar empertigado e disposto a pagar qualquer quantia que o homem pedisse.

– Nem um centavo, senhor, que esta é di grátis. Como disse, eu gostava muito deles e me pediram para procurar o senhor se acontecesse alguma coisa pra eles. Seus pais foram traídos; teve um traidor. Alguém cantou a pedra e lá no morro ficaram sabendo. Quando a equipe dos pulícia chegou lá, já tavam esperando. Mas só sei isso e outra coisa que também sei: foi um pulícia, mas não sei se era civil ou federa. Os dois praticipou dessa operação. O chefe do morro é chamado Alemão e ele se gavou de ter matado os homi. Espero que isso ajude e agora me dispense com uma sacola e algum alimento, pra disfarçá.

– Obrigado. Como te chamas? – O delegado já pensava em uma linha de ação para tomar o morro e matar toda a gangue, pois fervia de raiva. – Ele vai-se gabar é pró diabo em pessoa.

– Sem nomes, por favor.

– Ok. – Omar pegou uma pistola nove milímetros e pôs nas costas. Agora que soube do perigo que corria, decidiu ser mais precavido, pois geralmente andava desarmado. Pegou uma sacola de supermercado, colocando alguns mantimentos e dando para o homem, junto com duzentos Reais. – Tem cuidado, amigo, e muito obrigado pelas informações.

Omar abriu a porta para dispensar o mendigo que caminhou os cerca de cinco metros até ao portão. Uma motocicleta com dois homens encapuzados parou e eles atiraram no visitante, usando armas pesadas. Quando viram Omar na porta, miraram nele e dispararam, mas o delegado já tinha saltado para o jardim, amortizando a queda com um rolamento e ficado em posição de tiro muito favorável. Rápido como só o treinamento que recebeu podia fazer, pegou a arma e deu dois disparos. O carona caiu no chão ferido de morte, mas o piloto ainda tentou fugir. O terceiro tiro pegou-o na nuca e ele caiu da motocicleta, morto.

Com a arma na mão, Omar foi ver o mendigo, mas era tarde para o homem que tão espontaneamente veio entregar os assassinos dos seus pais e mais dois agentes. Ele pagara com a própria vida. Triste, o delegado fechou os olhos do homem e levantou-se.

Em uma região tão tranquila como aquela, não tardou que alguns vizinhos chamassem a polícia e quatro viaturas, que estavam próximas, apareceram com a sirene ligada. Fecharam a rua em frente ao local do crime e saíram de armas na mão, apontando para Omar, que ainda segurava a pistola na mão e tinha ido ver o primeiro criminoso abatido.

– Polícia – ordenou um deles. – Largue a arma no chão e ponha as mãos na cabeça.

– Sou um delegado federal – gritou Omar. – Vou pôr a arma na cintura e pegar o distintivo.

O delegado guardou a arma bem devagar, pois estava de costas e temia ser mal interpretado. Lentamente, ele levantou-se e virou-se, levando a mão ao bolso da calça e tirando a carteira. Mal terminou de se virar, ouviu um grito.

– Omar! – Moacir baixou a arma, sorridente. – É federal, gente, fiquem tranquilos que conheço esse cara desde criança.

Aproximou-se do amigo e abraçou-o, mas Omar permaneceu ligeiramente reservado. Voltou a olhar o criminoso e tirou o capuz dele. Com exclamações de espanto os policiais chegaram mais perto.

– Ele é da corporação! – confirmou Moacir, que se aproximou do segundo bandido e também tirou o capuz. – E este é um traficante conhecido, Omar. Quem é o mendigo?

– Era informante dos meus pais. Veio me dizer que alguém os traiu e, por isso, foram mortos semana passada.

– Já soube deles – disse Moacir, sério e triste. – Sinto muito, Omar. Vou sentir falta do tio Rodrigo.

– Tudo bem – respondeu, já conformado. – É o risco que todos corremos. Eu preciso de ir para a federal fazer uns levantamentos. Vocês podem cuidar disto?

– Claro, já chamamos a perícia. Omar – Moacir puxou o amigo para o lado, de modo a falarem em particular. – Estás tão reservado, cara. Ficaste chateado comigo por ter casado com ela?

– Tchê, já te disse que eu e essa guria não dávamos certo e saí do caminho. Eu não estou chateado contigo, Moacir, mas estou muito triste porque jamais deixei de a amar. Não te preocupes comigo, ok? Eu me aguento.

– No fundo, cara, eu acho que ela também não deixou de te amar e não entendo direito por que se casou comigo.

– Tchê, eu prefiro não discutir isso, ok?

– Tudo bem, maninho – respondeu, vendo que o amigo estava ainda muito fragilizado com tudo. – Mas vê se tu te cuidas que viraste alvo, tchê.

― ☼ ―

Omar foi para a delegacia de polícia federal, identificou-se e pediu para falar com o chefe, sendo prontamente atendido.

– Delegado Schmidt, sinto pelos seus pais, os nossos melhores agentes.

– Eles foram traídos, chefe, e eu gostaria de pegar os criminosos pois já sei quem são. Só preciso de um levantamento da área e descobrir quem estava sabendo da operação, tanto aqui quanto na civil, porque um ou mais são traidores. Agora há pouco, acabei de apagar dois que emboscaram e mataram um informante no jardim da minha casa. Um era civil e outro bandido, da gangue do Alemão.

– O que pretendes fazer?

– Subir o morro e matá-los, todos eles. – Omar sorriu para o chefe de polícia, que ficou de olhos arregalados. – Simples assim.

– Delegado Schmidt. Isso é uma operação em larga escala e teria de envolver um batalhão inteiro – afirmou o chefe, muito cauteloso. – Um ou mais, porque é uma quantidade enorme de meliantes a se enfrentar e justamente num local que permite muitas emboscadas.

– Eu vou sozinho, chefe, porque esses caras são meus. Vou matá-los um por um. Jamais deveriam ter assassinado os meus pais e agora serei eu a dar as cartas. – O rosto de Omar era resoluto e decidido. – Isto é pessoal e vou acabar com essa gangue em uma noite. Vou limpar o morro dos criminosos, todos eles.

– Vais é morrer, jovem. Deixa disso – insistiu o chefe, bastante preocupado com o delegado. – Tu estás emocionalmente abalado e precisas voltar para a realidade. É gente demais para se enfrentar com menos de cem homens!

– Estou muito lúcido, chefe – disse Omar, bastante sério e persistente. – Sou do comando especial, líder do esquadrão negro de Porto Alegre, sem falar que acerto um palito de fósforo a cem metros de distância. Esses caras nem têm a menor ideia do que está guardado para eles. Só preciso de informações e mapas.

– Muito bem – decidiu o chefe, um homem alto e sério, de meia idade e aparentemente muito forte, com uma voz bem grave e retumbante. – Já que as coisas são assim, vou ajudar-te. Procura Angélica na sala da inteligência. Diz que te autorizei a ver tudo o que pedires e de quem eras filho, que todos aqui vão ajudar. Podes ter certeza que não foram traídos por nenhum de nós. Sabes onde é a sala?

– Obrigado, chefe. Sei sim. Afinal vim aqui muitas vezes quando criança. A delegada especial Serafina não é mais a chefe da inteligência? – Omar lembrou-se com carinho da mulher quarentona que o abraçava muito e sempre tinha um chocolate para oferecer ao menino de dez anos. – Eu gostava tanto dela!

– Infelizmente, Serafina faleceu há um ano de uma complicação grave e repentina. Angélica assumiu e agora é a chefe. Posso garantir que jamais vi alguém tão eficiente como ela. Precisas de armas?

– Puxa vida, que pena que eu não soube! – comentou Omar, bastante triste. – Ela era como uma segunda mãe para mim. Não, não necessito de armas. Tenho o meu próprio arsenal, sem falar no dos meus pais.

– Boa sorte, Omar, e pega essa gente – disse finalmente. – Mas quero que te lembres de uma coisa: nada é oficial. Se der merda, nem te conheço.

– Fique tranquilo. – Omar sorriu. – Obrigado de novo.

Foi para a sala indicada e uma recepcionista, ao vê-lo, perguntou, barrando o caminho:

– Pois não, senhor? – Olhou séria para o delegado. – Isto é área restrita.

– Sou o delegado especial Schmidt – apresentou o distintivo e a identificação –, o chefe me autorizou a pegar informações com uma tal de Angélica. Onde posso encontrá-la?

A garota arregalou os olhos ao ver quem se tratava e, delicadamente, continuou:

– Sinto muito pelos seus pais, delegado. Angélica é a chefe, aquela agente na última sala à esquerda. Cuidado que ela é barra pesada e muito brava. Jamais entre sem bater se não quiser ficar surdo. – A mulher sorriu, divertida. – Diga-lhe quem é, pois ela amava muito seus pais.

– Obrigado, moça.

Caminhou tranquilamente pela sala e aproximou-se do gabinete indicado. Alguns colegas olharam para ele e, como não o conheciam julgaram que se tratava de um calouro, já antegozando uma rica gritaria por parte da chefe. Quase todos pararam de trabalhar e ergueram-se, seguindo o delegado com o olhar, muitos deles sorrindo divertidos e na expectativa.

Omar, olhando pela janela do gabinete da Angélica, viu uma mulher bastante compenetrada e muito séria. Notou, como não podia deixar de ser, o quão bela ela era. Sorrindo, entrou na sala, já que a porta estava aberta e nem quis saber de bater. O delegado tinha tanto treino em passar desapercebido, que a moça não o notou até que ele disse, já sentado na cadeira em frente à sua mesa:

– Bom dia, Angélica. – Assustada e com um pequeno pulo, a moça ergueu os olhos. Ela era bastante loira, olhos azuis, intensos, e muito bem-feita. Omar observou seu corpo com atenção, agradado do que viu: Cerca de um metro e setenta e cinco, cintura fina e com muitas curvas. – Desculpa se te assustei.

Rubra de cólera ela ergueu a voz:

– Mas quem você pensa que é para entrar aqui sem nem mesmo ba... – A delegada começou a berrar, mas foi-se calando lentamente. Acalmou-se, olhando melhor para o jovem recém-chegado, aparentemente da sua idade e muito bonito, exatamente o tipo físico que ela gostava. Exprimiu espanto ao sentir-se surpreendida tão facilmente e achando o seu rosto muito familiar. Num lampejo, deu-se conta com quem ele se parecia.

– Quem é o senhor? – perguntou, bem mais calma. – E como raios entrou aqui sem eu ver? É engraçado, mas parece muito com um grande amigo que faleceu recentemente.

– Deve ser meu pai, Angélica. Eu me chamo Omar Schmidt e sou o líder do esquadrão negro de Porto Alegre.

– Minha nossa! Seu pai e sua mãe sempre falavam de si, mas nunca mencionaram o esquadrão negro. – Ela sorriu abertamente e, todos os colegas que olhavam, espantaram-se pois a chefe sempre explodia violentamente quando alguém entrava sem bater à porta, mesmo aberta. Eles, que esperavam uma cena bem divertida com o novo elemento, decepcionaram-se, pois mal começou a berrar, Angélica emudeceu. Cada vez mais surpresos, viram-na simplesmente levantar-se e estender a mão ao recém-chegado, sorrindo abertamente. – Desculpe a grosseria, Omar, e sinto muito pelos seus pais. Eu os amava como se fossem meus.

– Tudo bem, Angélica – apertou a mão da colega. – O chefe mandou-me falar contigo para obter informações restritas sobre o morro da gangue do...

Angélica ergueu os olhos e viu quase todos os subordinados, cerca de vinte e cinco, de boca aberta e parados olhando pela janela. Caminhou até à porta e berrou a plenos pulmões:

– O que estão fazendo parados, seus paspalhos. Por acaso acabou o serviço?

Mais do que rapidamente, todos sentaram-se e baixaram as cabeças, retornando ao trabalho.

Sorrindo, Angélica fechou a porta e a persiana, voltando para a sua mesa e dizendo:

– São uma equipe simplesmente maravilhosa, mas precisam de uns berros para andarem na linha. O que dizia?

– Que o teu chefe me autorizou a vir aqui ver detalhes sobre a favela do Alemão. – Omar sorriu com o ataque de fúria da moça e gostou muito dela. – Preciso de todos os dados que tiverem a respeito.

– Caraca! – Ela espantou-se. – Ele mandou liberar tudo, segundo o e-mail que recebi, e disse para lhe dar apoio integral e incondicional! O que você deseja fazer?

– Detonar a gangue toda em breve – respondeu. Olhou para ela e sorriu novamente. – Imagino que tu sejas carioca, Angélica.

– Sou sim. – Ela correspondeu ao sorriso. – O meu sotaque me trai em segundos, né?

– É verdade, mas acho-o bonito, diferente. Bem, eu preciso de mapas, posições estratégicas, movimentos deles e os nomes de todos os que estavam envolvidos na operação onde o Alemão matou meus pais e dois outros agentes. Além dos que participaram, quero saber os que não participaram, mas sabiam da ação.

– Foi o Alemão que os matou? – perguntou a moça. Omar notou um certo olhar de tristeza nela.

– Sim – respondeu, muito sério. – Um informante dos meus pais me confidenciou isso. Ele foi morto por dois bandidos e um deles era civil.

– E de que jeito ficou sabendo disso!? – A garota espantou-se como um recém-chegado poderia obter informações desse tipo tão rapidamente.

– Matei-os ao tentarem fugir – respondeu Omar, lacônico. – Ele estava no jardim da minha casa e me disse tudo o que sabia.

– Omar, um dos mortos era meu irmão e também era do esquadrão negro, só que do Rio. – A moça olhou nos seus olhos e ficou com o rosto muito apreensivo. – Eu também quero vingá-lo, mas acho que não terá a menor chance sozinho.

– Se eu morrer, azar o meu desde que leve o máximo possível, mas é completamente improvável. Já decidi que os vou pegar e acabou-se. – Triste, pensou na ex-namorada e continuou. – Não tenho medo da morte, Angélica. Na verdade, talvez ela até fosse bem-vinda.

A moça, muito atraída pelo delegado, censurou:

– Não fale assim, ainda mais um gato como você! – sorriu para o colega e acrescentou. – Eu vou reunir seus dados e devo ter tudo o que precisa em cerca de duas horas. Quer fazer algo enquanto aguarda?

– Ficarei aqui. Oficialmente, estou em Santo Agostinho apenas para o enterro e os procedimentos legais dos bens e isso já resolvi durante a semana passada, embora faltem alguns detalhes. – Omar pegou o telefone e discou para o chefe, deixando o aparelho no viva voz por ser mais fácil. – Oi, chefe. Talvez precise de mais uns dias para resolver um assunto pessoal. Pode ser?

– "Qual é a merda, filho?" – perguntou o chefe do outro lado da linha. Omar contou tudo e ele continuou. – "Queres que mande o esquadrão negro em segredo?"

– Não mesmo, chefe, que essa peleja é minha e eu dou conta dessa meia dúzia fácil, fácil. Mas, se puder dispensar meu primo, agradeço muitíssimo. Esse servicinho a dois é bem mais garantido de ser levado a bom termo e ele é da família, tem o mesmo direito que eu.

– "Omar, se vocês dois se derem mal, eu perco os meus melhores homens!"

– Francamente, chefe!

– "Ok." – Angélica ouviu uma risada – "Mateus estará aí no primeiro voo da manhã."

– Obrigado, chefe.

– Caraca, seu chefe deve gostar muito de você, Omar!

– Ele e o meu pai eram amigos de infância, Angélica, e ele é meu padrinho. Gosto do teu nome. Tem um som lindo.

– Obrigada. – Com os olhos brilhando, ela sorriu, desejando o jovem, e continuou. – A impressora está imprimindo o material que você pediu e meu turno termina em meia hora. Que tal levarmos isto para um lugar menos chato e eu vou explicando.

– Alguma sugestão?

– Claro, há um bar calmo onde podemos sentar, tomar algo e eu mostro tudo. – Respondeu com tanta dualidade que o "tudo" ficou bem duvidoso de se entender.

Ele gostou muito da moça e a depressão pela Júlia fez com que desejasse esquecer-se dela, aceitando o convite. Quando a impressora terminou de imprimir todos os dados, saíram para o bar apontado. Curiosamente, era o bar onde a turma dele se encontrava, mas agora sem grandes movimentos. Tratava-se de um local retangular, espaçoso e com algumas colunas de sustentação ao meio. As largas portas, abertas, faziam com que os ambientes interno e externo se misturassem. Sentados em uma mesa grande, dentro do salão em vez da rua, ambos bebiam cerveja e tinham vários formulários espalhados, onde ela explicava os detalhes, cada vez mais próxima do Omar, com os rostos de ambos quase que se tocando. O delegado sentiu o cheiro inebriante do xampu de maçã que ela usava e começou a ficar com vontade de outras coisas, não negando a proximidade.

Pouco tempo depois, Moacir e Júlia apareceram no bar e, ao verem os dois, aproximaram-se da mesa.

– Daí, maninho. Estudando o quê? – Moacir viu os mapas e apavorou-se, arregalando os olhos. – Tchê, tu não vais invadir o Alemão sozinho. É puro suicídio!

– Sentem-se – disse Omar, apresentando todos enquanto Angélica, muito contrariada, recolheu tudo e pôs de volta na pasta. Notou claramente que ele se afastou dela na mesma hora em que o casal apareceu no bar.

Como agente da inteligência que era, deu-se imediatamente conta que a moça não tirava os olhos do colega e, também, que a fuzilava com o olhar. Entretanto, quando falou foi gentil e cortês.

– Omar – insistiu o amigo, ainda preocupado. – Tu não vais atacar o morro, não é?

– Claro que vou – confirmou, decidido. – Pretendo matar todos os assassinos dos meus pais e vou fazer uma limpeza completa naquele local. Não vai sobrar um único criminoso para contar história, podes ter certeza.

– Cara, tu vais morrer na certa – insistiu Moacir, sentindo-se preocupadíssimo e agoniado. – Segundo a nossa inteligência, são certa de cento e setenta bandidos naquele morro! O que tu achas que podes fazer contra eles estando solitário?

– Errado – corrigiu Angélica. – São duzentos e trinta. Você é de qual corporação?

– Civil – respondeu.

– A vossa inteligência anda demasiado negligente – afirmou a garota, olhando nos seus olhos. – Há muita corrupção lá dentro.

– Tens razão, Angélica, e tenho vergonha disso. – Olhou para o amigo e continuou. – Omar, averiguamos o policial que mataste esta manhã e descobrimos que pertencia à folha de pagamento do Alemão. Cara, eu te imploro que não os caces. São muitos e vais morrer na certa.

– Há muito que perdi o medo da morte, Moacir – comentou o amigo olhando discretamente para Júlia. Apenas as moças notaram isso e Júlia tremeu de medo. – Mas a verdade é que eles não têm a menor condição de me enfrentarem. Além disso, não irei sozinho. Mateus irá comigo e é tão diabólico quanto eu.

Após essa conversa, mudaram para casos mais amenos e pediram algo para comer, enquanto bebiam. Omar já não estava muito sóbrio e Angélica, também ficando alegre com a bebida, pôs a mão na perna dele, que a segurou delicadamente, mas embaixo da mesa. Ela também começou a se atirar descaradamente para o colega, vendo a raiva enorme da esposa do amigo. Ao fim de duas horas o casal despediu-se.

– O que vão fazer? – perguntou Moacir.

– Trabalho de federal – afirmou Angélica, séria. – Se Omar não aprender cada detalhe da favela, será mesmo morto.

– Até mais – despediram-se e Júlia, na esquina, viu a moça voltar a espalhar os papéis na mesa.

–Vamos ao foco? – questionou a delegada mantendo, todavia, a mão dele na sua, agora apoiada nas suas coxas bem torneadas.

Continuou apontando os locais estratégicos e mostrando imagens dos criminosos. Ao ver que ele estava cansado e meio bêbado, disse:

– Você está cansado, Omar. Amanhã estou de folga e podemos continuar em paz, sem falar que fui designada para lhe dar apoio no que precisar. – Puxou a mão dele mais para cima e para dentro das coxas, sentindo que ele a acariciava e deixava-a bastante excitada. Sem aguentar mais, Angélica beijou-o, lânguida, e acrescentou a título de convite. – Na sua casa ou na minha?

– Na minha, que é bem perto. – Omar correspondeu aos seus beijos, esquentando as carícias e gostando muito do que tocava. A moça tinha um corpo de arrepiar e ele sentia cada vez mais vontade de dormir com ela.

Na sua casa, foram para o quarto já se agarrando pelo caminho e deitando na cama, fazendo amor com ele inicialmente de forma selvagem para, nas vezes seguintes, se tornar carinhoso e meigo. Quando terminaram, ela perguntou:

– Você ama aquela mulher, não é, Omar?

– Por que perguntas isso?

– Porque sou mulher e não sou cega. Ela também o ama, então o que você espera?

– Ela foi a minha primeira namorada, na verdade primeira em tudo, mas não deu certo. Vivíamos brigando e decidi acabar com isso de uma vez por todas. Eu achei melhor procurar uma vida mais equilibrada. Fiz a minha escolha e fui para Porto Alegre. Ela fez a dela e casou-se com meu melhor amigo. Agora, isso é passado.

– Passado para quem, Omar? – questionou delicadamente a amante. – Aparentemente, só para sua razão e não para vossos corações.

– Tchê, isso é uma coisa que enterrei e não pretendo trazer à tona, então vamos mudar de assunto, ok?

– Tá com sono ou vai mais uma? – perguntou Angélica, voltando a acariciar o delegado. – Tô com um tesão danado, gatinho, e você é uma delícia de homem.

Amaram-se mais um pouco e ela acabou fazendo o jovem contar tudo. Depois, adormeceram para serem acordados de manhã ainda muito cedo pela campainha. Omar vestiu-se às pressas e pegou na pistola, indo atender a porta. Contudo, era apenas o primo chegando com uma mochila e uma sacola enorme, bem pesada.

– Daí, maninho – levantou a sacola e sorriu. – Armamento completo, a pedido do chefe. Pelo jeito que ele falou vamos ter que enfrentar um exército. Não era melhor termos vindo todos?

– Opa, Mateus, beleza? – Omar sorriu. – Esta peleja é só para a família, ok? Vamos pegar os assassinos dos meus pais. Cara, segura aí que já volto. Tô com uma guria no quarto. Vamos tomar um banho e já descemos, ok? Fica à vontade.

– Ok. – Mateus procurou um armário no hall para esconder o armamento e sentou-se na sala. Quinze minutos depois, apareceu o primo e uma mulher que ele achou simplesmente linda demais.

– Angélica, o meu primo Mateus. Mateus, Angélica. Vamos para a cozinha tomar café e rever os mapas?

– Oi, Angélica. Bah, só queria saber onde o meu primo arruma umas prendas tão lindas! – Ambos sorriram entre si.

A delegada voltou a espalhar os mapas e fotos pela mesa. Concentrados, os primos marcaram os seus alvos e localizaram posições de perigo com a agente da inteligência esclarecendo detalhes. Angélica permaneceu sentada ao lado do delegado, com a mão na coxa dele e sentindo-se totalmente apaixonada por aquele homem com quem passou uma noite inesquecível. Jamais nos seus vinte e três anos de vida teve algo parecido com o que ocorreu na noite anterior. Todavia, por ser muito eficiente, conseguia manter a concentração.

– Carioquinha – disse Mateus, um conquistador inveterado que, sabendo que o primo só pensava na Júlia, interessou-se bastante pela garota e deu-lhe a maior bandeira. – Achas que aguentas o tranco? Vai ser uma peleja daquelas...

A porta da cozinha estava aberta e uma roseira aparecia a trinta metros. Nesta, havia apenas um botão de rosa. Rápida como um raio, a moça pegou a arma das costas, empunhou e disparou sobre a rosa. Vinte centímetros abaixo do botão o galho rebentou e ela caiu no chão. Foi tão rápida que Mateus nem viu a sua ação. Angélica voltou a guardar a pistola e disse, fazendo cara de brava:

– Vá lá fora, Mateus, e pegue a rosa que é para si, para se lembrar que posso meter uma bala em qualquer artéria sua que eu escolher e isso a trinta metros.

Mateus riu, empunhou a sua arma e disparou, arrancando apenas uma folha do galho caído.

– Carioquinha, cada vez estou mais ligado em ti, mas só meu primo atira melhor que eu. Na corporação até dizem que ele pode matar moscas a tiro de fuzil e já o vi fazer isso uma vez. – O colega levantou-se e foi para a rua pegar a rosa e a folha. Pôs a flor no bolso e deu a folha para a moça que ficou impressionada. Irritado, Omar perguntou:

– Acabaram as demonstrações? Se isso continuar assim, vou sozinho!

– Ok, mano, desculpa.

― ☼ ―


Ficção. Se existe um esquadrão negro, o autor desconhece.

No interior do Rio Grande do Sul, prenda também significa garota, moça, guria, mulher. Em geral, bonita e bem-feita.


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