Capítulo 3 (não revisado)
"Platão é meu amigo, Aristóteles é meu amigo, mas o meu maior amigo é a verdade."
Sir Isaac Newton.
Naquele domingo, a nação acordou em completo choque. Por todo o Brasil e em muitos jornais do resto do mundo, inclusive na internet, a informação de que houve um incêndio com um dos números de fatalidades mais altos da história do país, correu solta. Os dados ainda eram bastante imprecisos e alguns meios de comunicação falavam em duzentos e oitenta mortos, outros em trezentos, bem como quase duas centenas de feridos sendo alguns em estado muitíssimo grave. Verdadeiramente, ainda não se sabia o total de óbitos e de enfermos, mas os dados verídicos tendiam a algo entre os dois valores.
O prefeito mandou levar todos os corpos para o ginásio municipal e organizar as coisas de forma a que os parentes pudessem fazer a identificação. Com ajuda da mídia, divulgaram amplamente a localização das vítimas e bastante gente chegava à procura de informações, gente desesperada que vinha de diversos locais do país após tentar contato com os parentes sem lograr sucesso.
Naquele lugar lúgubre, muitos celulares tocavam, todos nos bolsos das vítimas, mas ninguém atendia para não ter que dizer a verdade nua e crua: sinto muito, mas seu filho entrou para as estatísticas!
Estatística, uma palavra que nem deveria ser usada para descrever tal coisa, uma vez que ela apenas trabalha com probabilidades para eventos e tendências. É cômodo usar trocadilhos para enganar a realidade quando esta é cruel: a quantidade média de acidentes fatais em um determinado período. Estatísticas? Por que não usar essa palavra ao contrário, para mostrar a redução média de acidentes fatais num determinado período? Simples, porque é bem mais complicado de se calcular. Assim, quase trezentos jovens entre dezesseis e trinta anos entraram para as estatísticas de acidentes fatais no mês de Janeiro de 2013, coisa que os seus familiares jamais entenderiam e dificilmente superariam.
Uma quantidade enorme de voluntários apareceu, vários deles trazendo térmicas de café ou algum tipo de lanche. Outros, simplesmente, água potável e ajuda, qualquer uma que fosse e que pudesse trazer um mínimo de conforto para quem precisava mais do que desesperadamente.
Ao mesmo tempo, pais que não sabiam onde estavam os filhos procuravam os necrotérios improvisados sempre na esperança do parente não estar ali.
Padres, médicos, psicólogos e outros profissionais também voluntariaram-se para ajudar as segundas vítimas da tragédia: os familiares daqueles jovens, muitos deles em choque completo pois a morte repentina de alguém que horas antes estava saudável e cheio de vitalidade era algo bem mais difícil de compreender e suportar.
O Hospital de Pronto-Socorro de Santo Agostinho estava superlotado e os médicos não davam mais conta dos casos. Ambulâncias e mais ambulâncias traziam e levavam pacientes para outros hospitais. No meio do desespero, o prefeito pediu socorro ao governador que enviou todo tipo de auxílio possível e a própria presidente da república interveio. Helicópteros da guarda nacional começaram a levar os casos mais graves para o HPS de Porto Alegre.
Na capital, uma equipe de voluntários formou-se às pressas para dar auxílio e tentar salvar as vítimas e apoiar familiares. Novamente a cena repetiu-se e muitos psicólogos, médicos e paramédicos movimentaram-se em solidariedade.
Num dos cantos do Parque Farroupilha, ao lado do HPS e onde começava o famoso Brique da Redenção, o local foi evacuado para servir de campo de pouso para helicópteros que traziam feridos às dezenas.
Aquele domingo calou o Rio Grande do Sul e muitos outros lugares do Brasil. Desesperados, os parentes das vítimas começavam a chegar à capital procurando informações, enquanto mais voluntários, desta vez cidadãos comuns, levavam alimento e bebida para aquela gente que não queria sair dali até saber mais sobre o estado de saúde dos familiares internados. Diversos destes novos ajudantes ofereciam as suas próprias casas para que os parentes dos feridos pudessem ficar na cidade e aguardar notícias, de preferência, positivas.
― ☼ ―
– Quem é familiar de Andaluzia dos Santos? – perguntou um médico, entrando na sala de espera do HPS, apinhada de gente desesperada. Um casal e uma moça de cerca de dezenove anos aproximaram-se dele, ansiosos. – Por favor, me acompanhem.
O doutor levou os três para outro local. Agoniados, eles aguardaram em silêncio, morrendo de medo que tivesse acontecido o pior. Entram em um recinto com muitas cadeiras e pessoas sentadas, sérias ou chorando. Outros estavam de pé e auxiliavam ou confortaram-nos. Na sala, uma psicóloga aproximou-se do trio, enquanto o médico disse:
– Sinto não ter boas notícias, mas Andaluzia não resistiu e acabou de falecer. Realmente sinto muito, pois adoraria poder dizer o oposto e juro que tentamos tudo o que era humanamente possível.
Enquanto o médico, muito abatido, retirou-se de ombros encolhidos e cabeça baixa para continuar a monitorar os pacientes na UTI rezando para que tão cedo não precisasse de repetir esse protocolo, a psicóloga abraçou cada um daqueles que ficaram e que choravam sem parar.
– Sou a doutora Carmem – disse enquanto os levava para umas cadeiras próximas e outro colega, também psicólogo e psiquiatra, levou-lhes água. – Sei que nada do que eu disser vai trazer Andaluzia de volta e não há palavras que os confortem, mas toda a nossa equipe está aqui para ajudar vocês. Temos também alguns padres e clérigos de outras crenças. Gostariam que eu chamasse um deles?
– Obrigado, doutora, talvez mais tarde – afirmou o pai, chorando e tentando controlar-se sem sucesso. – Ainda não consigo conceber como isto foi acontecer. Logo a minha caçula...
– Ninguém consegue, senhor, nem mesmo nós.
Enquanto a médica fazia o possível para confortar e lhes dar apoio psicológico tentando em vão explicar o inexplicável, ouviu a moça, ainda soluçando, cantarolar uma música clamando pela irmã. Aproximou-se dela e abraçou-a, sem nada dizer, até que a moça começou a chorar copiosamente. Carmem apenas aguardou que a garota de no máximo vinte anos deixasse verter todo seu sofrimento. Ao fim de uns minutos a moça acalmou-se e a doutora continuou com eles, ajudando na dor.
– Vou buscar um padre para vocês – disse ela, levantando-se, ainda apreensiva pela garota. – Se precisarem de mim, basta chamar.
Quando retornou com o religioso e os apresentou, retirou-se para beber água. Encontrou um colega fazendo o mesmo e comentou:
– Não tá fácil, Henrique, nada fácil. É tragédia demais, cara!
– Eu sei, Carmem, mas se conseguirmos pelo menos reduzir um pouco a dor deles, já é alguma coisa. Pensa bem porque se tu não tivesses juntado nossa equipe seria muito pior já que não haveria ninguém para ajudar os sobreviventes. Muitos esquecem que são vítimas, para nós talvez mais ainda que os que se foram.
― ☼ ―
O dia seguinte ainda era um choque para muitos e tanto o HPS de Porto Alegre quanto o de Santo Agostinho estavam lotados de médicos, pacientes, familiares e voluntários de todos os tipos.
No ginásio municipal, o desespero era ainda pior e o cheiro começava a ficar forte, uma vez que o calor e o clima seco do verão intenso acelerava a decomposição dos corpos. Gigantescos ventiladores e vaporizadores foram levados para lá de modo a umidificar o local e minimizar os efeitos da estação, porém eram insuficientes. Todavia, o que menos preocupava os presentes era o cheiro que se formou aos poucos, pois tudo que desejavam resumia-se a descobrir que os que procuravam não estavam ali.
Mais da metade dos corpos já haviam sido reconhecidos e levados para outro local do ginásio, onde a prefeitura fez um velório coletivo enorme, embora algumas das vítimas tenham sido enviadas para outros estados, como foi o caso do Leandro, entre outros. Os pais da Joana apareceram lá, arrasados. Sabendo do relacionamento da filha, optaram por enterrar o casal junto, especialmente ao verem que ambos tinham colocado alianças. Junto com os pais do Paulo, permaneceram no velório ao lado dos filhos.
O governador do estado e a presidente da república deslocaram-se para lá, onde a chefe de Estado fez um discurso e chorou pelas vítimas, mas foi duramente criticada nas redes sociais, tanto ela quanto o governador e o prefeito, aparecendo inclusive uma carta aberta de uma familiar que cobrava mais responsabilidade do governo.
― ☼ ―
Nessa mesma segunda-feira, um avião pousou no aeroporto Salgado Filho, voo este proveniente de Washington/DC. Entre os vários passageiros, um homem tranquilo e com ar cansado saiu do aparelho. Ele tinha quarenta anos, alto, com um metro e noventa e cinco, olhos azuis e cabelos castanho-claros, quase loiro. O rosto oval e o nariz aquilino, junto com um olhar sonhador e triste, faziam com que parecesse um sujeito muito sério. Vestia uma camiseta e jeans bem informais e dirigiu-se descontraidamente para a esteira de devolução das bagagens, pegando duas malas bem pesadas e mostrando uma força anormal. Pôs ambas no carrinho, mas a mochila que carregava às costas permaneceu lá. Na alfândega, apresentou o distintivo e foi imediatamente liberado pelos colegas.
Caminhou distraído pelo saguão quando passava em frente a uma tabacaria. Na entrada, estavam expostos diversos jornais e passou por eles, dando uma rápida vista d'olhos sem prestar atenção. Mal andou cinco metros, o título da primeira página de um deles passou a fazer sentido e, estarrecido, volto andando de costas e parando de frente para a vitrine, incrédulo. Entrou na loja e comprou o exemplar do jornal, lendo a reportagem ali mesmo. Enquanto a lia, sua memória retornou um ano, justamente para quando seu amigo Moacir lhe pediu conselhos sobe uma investigação que fazia. Não se lembrava direito do nome, mas estava quase certo que se tratava daquela boate.
Preocupado, pegou no telefone e ligou para o celular do amigo, mas uma gravação informou que o número não existia. Cada vez mais apreensivo, deslocou-se às pressas para a saída e chamou um táxi, mandando o motorista para o Bairro Floresta, subindo a Benjamim Constant. Nessa rua orientou-o a chegar ao seu endereço. A preocupação era tanta que ele nem aproveitava para curtir a cidade que o adotou e que tanto amava, apesar da ausência de um ano.
Chegando ao seu destino, entrou no apartamento, largou a bagagem no quarto e voltou a sair, batendo na porta da vizinha da frente. Uma senhora bonachona, na casa dos cinquenta e oito anos, loira e de olhos azuis, ainda muito bonita e esbelta, abriu a porta. Ao ver quem era, deu um grande sorriso abraçando o homem, cheia de alegria.
– Voltaste, Omar, estava com muitas saudades!
– Oi, tia. – Ele retribuiu o abraço caloroso. – Cheguei agora mesmo. Está tudo bem?
– Sim, meu querido, tudo na santa paz, tranquilo e sereno que nem água de poço. Mateus manteve o teu carro ok, mas ele não está em casa, no momento. Entra, vem tomar um café que tu deves estar bastante cansado. Afinal, foram muitas horas sentado naquele avião, sem falar no fuso horário.
– Estou cansado sim, tia, mas não posso ficar. Acabei de ver o que aconteceu em Santo Agostinho e estou bastante apreensivo, até demais. – Contou para a tia a história sobre a investigação do amigo. – Eu preciso do meu carro, pois quero ir para a delegacia obter informações.
– Não sabia que ainda tinhas contato com Moacir, Omar. Não achas que o passado deve continuar como está? – A tia, sua confidente, sabia tudo sobre a juventude conturbada do sobrinho. – Se a verdade aparecer, muitos vão sofrer, inclusive tu.
– Tia, eu ia frequentemente para lá e sempre soubemos ser discretos. O número dele não existe mais e eu temo que lhe tenha acontecido algo muito grave. Acho mesmo que pode ter sido morto. Preciso saber o que aconteceu... e de as ver.
– Entra, meu filho, vem. – A simpática senhora levou o sobrinho para o escritório. De uma escrivaninha, tirou as chaves e o documento do veículo. – Aqui está. O que pretendes fazer?
– Conforme o caso, vou direto para Santo Agostinho assim que falar com o meu chefe. Afinal, oficialmente as minhas férias começam hoje.
– Tem cuidado, meu filho. Se o que dizes for muito provável, então tu também correrás um sério risco, sem falar naquela moça, completamente inocente.
– Tia. Irei para lá de qualquer forma. – Beijou a sua segunda mãe na testa e despediu-se. – Não se preocupe, tia, que sei me defender muito bem.
– Não há como não me preocupar, Omar. É demasiado ruim viver em uma família de policiais. Agora, eu só tenho a ti e ao meu filho. Já perdi o marido, o teu pai, sem falar na tua mãe, minha irmã querida. Eu morro de medo sempre que tu e Mateus saem para trabalhar, ainda mais vocês que vão sempre para missões tão assustadoras!
– Eu e o primo somos a elite da elite, tia – disse Omar, acalmando a senhora. – Não é tão simples nos pegar, mas obrigado por se preocupar. Também sinto muito a falta do tio e dos meus pais. Apesar de terem morrido há dezessete longos anos, ainda penso neles com muita saudade.
Despediram-se e o delegado foi para o subsolo pegar seu carro. Andou por pouco mais de dez minutos pelo trânsito que, apesar de intenso, fluía com facilidade na movimentada Cristóvão Colombo, até que entrou na avenida Paraná e parou em frente à delegacia da polícia federal. Mal entrou, foi imediatamente saudado por colegas e amigos.
Após a recepção amigável, foi para a sala da inteligência onde uma linda moça, ao vê-lo na entrada, levantou-se e saiu do seu gabinete, correndo a abraçá-lo.
– Omar, que saudades! – beijou-o nos lábios e ele sorriu ligeiramente para a colega e ex-amante, retribuindo o cumprimento caloroso. – Faz tempo que não mandavas um e-mail nem nada, tchê, querias matar-me de saudades?
– Desculpa, Isabela, só que andava bem atarefado. Foi um curso dos infernos, mas acho que valeu a pena. Agora vou-te dizer uma coisa: o nosso esquadrão negro bate disparado o equivalente deles. Acho que, nessa área, eles aprenderam mais comigo que eu com eles. Até queriam que fosse trabalhar lá!
– Sério?!
– Sério, mas eu não troco o nosso Brasil por nada deste mundo, anjo...
– Gatinho, tu não ias tirar férias tão logo chegasses? – Ela puxou-o pela mão para a sua sala. – Então, o que fazes aqui?
– Ia sim, Isa. – Ele demonstrava preocupação. – Mas há algo que me incomoda muito e preciso resolver agora. Necessito da tua ajuda.
– Vale um jantar, Omar?
– Não desistes nunca, Isa. – O delegado sorriu. – Nós terminamos, lembras?
– Jamais, amor, e tenho muita saudade – insinuou-se levemente, cheia de segundas intenções. – Só um jantar, ok?
– Combinado, minha querida. Pega este número – estendeu um papel –, e tenta descobrir o que aconteceu com o dono dele. O nome é Moacir Paganinni, delegado da civil de Santo Agostinho. Divisão de homicídios.
– Estás sabendo o que aconteceu lá?
– Sim, e ele vinha investigando isso há um ano. Temo que haja algo muito macabro atrás desse incêndio, Isabela. Vês isso para mim?
– Claro, meu gato. Isso até que é bem fácil. Senta aí. – A garota, uma linda loira de olhos verdes e possuidora de um corpo de deitar inveja a muitas modelos, sentou-se na sua mesa e começou a manipular o computador enquanto conversava baixo. – Puxa vida, Omar, difícil mesmo é te entender. Eu realmente queria saber por que me deste o fora tão de repente. Acho que tu sempre evitas te envolver com alguém. Achas isso assim tão ruim?
– As coisas são muito mais complicadas do que parecem, Isabela. Muito mais e eu não gostaria que sofresses por minha causa, apenas isso.
– Assim, tu vais acabar bem solitário. Afinal, desde Angélica que...
– Eu já sou solitário, Isabela, e acho melhor assim. Por favor, não fales na Diabinha que me dói até hoje.
– É por isso que te evitas evolver?
– Não, Isa, mas não pretendo discutir esse assunto.
Ao fim de alguns minutos ela levantou os olhos, muito séria, e perguntou:
– Omar, o que ele é teu?
– Um grande amigo de infância, anjo. Eu sou de Santo Agostinho, se bem te lembras.
– Gatinho. Sinto muito te dizer, mas ele foi assassinado há quase um ano e a polícia ainda não pegou os criminosos que fizeram isso.
– Oh, meu Deus! – A sua voz foi um mero sussurro enquanto baixou a cabeça, muito aflito. – Por que não me deu ouvidos! Pobre da minha filha...
Omar ficou bastante abalado, apesar de já esperar por isso. A garota levantou-se e abraçou-o, fazendo com que a seguisse para a cantina. Pegou dois cafés bem fortes e ofereceu um para o parceiro. Agradecido, sentou-se com ela em uma mesa, tomando um gole. Naquela hora, o local estava vazio, coisa incomum, e Isabela sentou-se ao seu lado, colocando a mão no seu pulso e perguntando suavemente:
– O que aconteceu, Omar?
– Segundo o último e-mail, ele investigava um assassinato e as evidências levaram a essa boate que incendiou. Eu pedi para ele ser discreto, mas parece que não adiantou.
– Se bem te conheço, amor, lá se foram as tuas férias!
– Podes ter certeza, Isabela. – Omar levantou-se, ainda bastante abatido e triste. – Olha, vou falar com o chefe e depois volto para a tua sala, ok?
– Ok, gatinho – beijou-o e ele correspondeu –, mas não sofras demais com isso...
– Éramos como irmãos, Isa, não há como não sofrer. – Sem dizer mais nada, foi para a sala do chefe.
Entrou sem bater, muito abalado. O seu superior era amigo e estava sempre aberto a todos, jamais fechando a porta da sua sala exceto em casos muito especiais. Por isso, estranhou bastante ao ver Omar entrando e fechando-a.
– Omar – afirmou surpreso e sorrindo para o seu melhor agente. Levantou-se e estendeu a mão. – Chegaste hoje, tchê? Não tínhamos combinado que...
Espantado, viu as marcas da depressão no subordinado. Somando a porta fechada, os acontecimentos recentes e o fato dele ser de Santo Agostinho, tirou suas conclusões, embora errôneas.
– Tchê, não me digas que perdeste algum familiar no incêndio!
– Não, mas perdi um amigo que era como um irmão, só que foi porque ele investigava um assassinato e os fatos convergiam para essa boate. Chefe, eu quero ir para lá averiguar tudo isso e pôr as coisas a pratos limpos.
– Omar, tu estás de férias e a última vez que foste lá resolver alguns probleminhas pessoais desse gênero, viraste a cidade do avesso. Além disso...
– Pelo amor de Deus, chefe. Eu preciso de ir para lá e investigar isso. Há algo muito maior do que possa imaginar atrás dessa grande amizade que acabei de perder.
– Omar. Eu já recebi ordens superiores, bem superiores, para destacar um agente secreto para lá, mas tu estás emocionalmente comprometido, tchê, e não posso permitir. Voltando às tuas férias, tens dois anos delas vencidas!
– Nesse caso, chefe, vou passar as minhas férias em Santo Agostinho...
– Omar. Tu és o meu melhor agente – disse o superior, dando-se por vencido. – Me explica o motivo real atrás disso, que eu vou pensar no assunto.
Após alguns segundos de reflexão, o delegado contou para o chefe e amigo...
– Entende agora o motivo de precisar de ir para lá? Eu preciso resolver este caso a qualquer preço. Pelo amor de Deus, o senhor mesmo disse que sou o seu melhor agente. Então, as chances de eu pegar alguém são muito maiores.
Calado, o chefe pensava. Este mantinha a mão sobre o cavanhaque, cofiando-o, enquanto meditava. Ao fim de mais de dez minutos de silêncio onde Omar esperava pacientemente, embora ansioso e meio irritado, começou por dizer:
– Muito bem. Faremos da seguinte forma: eu vou, oficialmente, mandar um outro agente para lá ainda hoje. Ele irá se apresentar à delegacia federal e civil como o investigador designado para participar das averigua...
– Mas...
– Porra, me escuta, tchê. Amanhã de madrugada, tu vais para lá, mas de carro e anônimo. Para todos os efeitos, estás de férias. Apenas eu sei que serás o meu agente principal e mais secreto. O chefe da civil de lá é meu amigo pessoal e sei que é íntegro. Então, tu só vais interagir com ele e mais ninguém da corporação, compreendido?
– Sim, chefe, muito obrigado por isso. – O delegado levantou-se e preparou-se para sair.
– Agente Schmidt. – A voz do chefe era imperativa e, quando chamava os seus agentes pelo sobrenome, costumava ser uma ameaça declarada. – Pelo amor de Deus, não deixes que te matem.
– Obrigado, Paulo – respondeu Omar, usando o nome pessoal do chefe, coisa que só fazia quando ambos, muito amigos, estavam fora do trabalho e em algum bar bebendo juntos, em geral a sós ou com garotas. – Bah, mas tu sabes que sou duro na queda.
– Boa sorte, amigão.
Omar saiu da sala e olhou o relógio. Viu que eram quase horas do fim do segundo turno. Passou na sala da inteligência e encontrou a amiga esperando por ele. Ela sorriu e perguntou:
– Jantar, como combinado?
– Sim, querida.
Ambos saíram do prédio e entraram no carro do Omar. Calado, conduziu pela Av. Cristóvão Colombo. Na Ramiro Barcelos entrou à direita e andou mais um quarteirão, estacionando em frente a uma churrascaria.
– Bah, Isabela, há mais de um ano que não sei o que é um churrasco decente – sorriu levemente. – Ou preferes outra coisa?
– Por mim tá ótimo. Então, sinto que tu escondes algo desse teu passado...
– Isabela, não desejo conversar sobre isso, ok?
– Tudo bem, Omar – disse, fazendo cara de triste. – Eu apenas queria ajudar. Que história é essa de tua filha?
– Bah, como sabes disso!?
– Tu falaste: pobre da minha filha...
– Isa, eu vou-te contar o meu passado porque confio cegamente em ti, mas jamais alguém deverá saber disso – começou, entrando com ela no restaurante e sentando. – Prometes?
– Prometo, Omar. Que barbaridade, já nos conhecemos há anos, amor.
Enquanto comiam, o delegado contava a sua história que fora ele só o primo e a tia conheciam na íntegra. Passou praticamente todo o jantar falando sobre o passado.
– Caramba, Omar. Tu fazes tudo da forma mais complicada. Desperdiçaste quase dezoito anos de uma vida que poderia ser muito feliz...
– Ou um verdadeiro caos, meu anjo.
– Agora compreendo muitas coisas, amor. Tu me magoaste um pouco, mas eu entendo. O que pretendes fazer?
– Vou para Santo Agostinho de madrugada... tirar férias.
– Algo me diz que essas férias não existem...
– Evidentemente, anjo, eu vou investigar a morte do meu amigo Moacir e esse incêndio.
– Mas o chefe designou Enzo...
– Ele será a fachada para eu trabalhar livre, nos bastidores.
Comeram bem, acompanhados por um gostoso vinho, o que deixou Omar mais relaxado e calmo. Quando iam sair, a garota pegou-o pela cintura, apertando-se a ele e cheia de vontade. No carro, beijou-o e ele, carente, correspondeu e acariciou a ex que até gemia, ofegante.
– Vamos para o meu apê, gato? – perguntou Isabela, muito excitada. – Tô que não aguento.
Sorrindo, atendeu ao seu desejo e passaram a noite juntos. Às quatro da manhã ele acordou e levantou-se, tomando um banho. Despediram-se e o delegado rumou para seu apartamento, arrumando alguns objetos pessoais e colocando em uma pequena maleta.
Pegou a mochila com o computador, a sacola das armas e mais algumas coisas. Antes de sair, deixou um recado para a tia, contando tudo e pedindo para o primo o contactar.
No carro, seguiu para a rodovia. Tinha quatrocentos e cinquenta quilômetros pela frente e acelerou o veículo, aproveitando a estrada que, naquele horário, estava quase vazia. Mesmo assim, não passava dos cento e vinte pois não tinha pressa.
Enquanto dirigia, pensava no passado, uma época conturbada e triste para si, mas consequência da sua completa imaturidade juvenil e cujo resultado foi muito sofrimento para si próprio e outra pessoa.
Lembrou-se da Júlia, a sua primeira namorada, o primeiro e único grande amor da sua vida, o primeiro beijo, a primeira transa...
Como se voltasse ao passado, tornou a reviver tudo enquanto dirigia calmamente.
― ☼ ―
HPS – Hospital de Pronto Socorro.
Aguarde...
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