Capítulo 2 (não revisado)
"Os homens devem ter corrompido um pouco a natureza, pois não nasceram lobos e acabaram tornando-se lobos."
Voltaire.
Nos corredores da Universidade Federal de Santo Agostinho estavam afixados cartazes da próxima confraternização que o DCE organizou, prometendo ser uma festa de arromba. O local: a famosa boate Beijo da Noite! No dia marcado a casa encheu, chegando a mais de mil e quinhentos participantes.
Alegres, os donos comentavam o resultado.
– Esta noite bateu o recorde, Dionísio – afirmou Chico, feliz pelos resultados. – Escuta, eu notei que quando a casa tem shows assim, tu tira os extintores. Isso é muito perigoso!
– Bah, Chico – respondeu chateado –, aquele troço detona com a decoração do lugar!
– Deixa pelo menos um ou dois perto do palco...
– Mas tu é mesmo cagado hein? – interrompeu o sócio com uma risada descontraída. – Nós tamo aqui faz um ano e nada de dar merda, tchê! Mas tá bom, vou mandar deixar um no palco e um no bar.
– O DCE da UFSA já me contatou para fazer nova festa em dois meses, final de Janeiro. Eles pediram para arrumar uma banda especial pois querem que essa festa seja ainda maior que a de hoje.
– Tranquilo. Vou procurar uma banda pra matar a pau. Tchê, te garanto que nós vamo fazer a casa pegar fogo. Será uma baita festa de arromba, algo que jamais se viu na cidade de Santo Agostinho. Vamos fazer história.
― ☼ ―
Adriana, estudante do primeiro semestre da faculdade de engenharia elétrica, estava empolgada porque era a primeira festa em que ia participar em uma boate. A mãe, professora da mesma universidade, aconselhou a filha, dizendo:
– Drica, toma muito cuidado com essa boate – insistiu, bastante preocupada. – Antes do teu pai morrer, ele investigava um engenheiro dos bombeiros que foi morto de forma estranha. Segundo teu pai, esse homem fez sua última inspeção ali e reprovou o local. Agora junta isso ao assassinato que ele sofreu e tu podes ter certeza que aquele lugar não é seguro, nada seguro.
– Ele ainda faz muita falta, né mãezinha? – A linda moça, uma loirinha de olhos azuis, dezesseis anos e muito formosa, abraçou-se à mãe. – Sabes, acho que jamais superarei isso pois eu amava muito o papai. Mas, pelo menos, ainda tenho o tio Omar! Estou com muita saudade dele, mãe, muita mesmo. Faz um ano que não aparece por aqui!
A mãe estremeceu um pouco ao ouvir esse nome, o padrinho da filha e que Adriana amava tanto quanto a um pai. Infelizmente, ele estava fora do país e Júlia não sabia quando voltaria.
– O teu pai era muito especial, filha. Eu sei que em algum lugar ele está observando e velando por nós. Em breve o teu padrinho voltará para o Brasil e virá tirar férias para nos ver. Daí, poderás matar saudades dele. Agora não te esqueças do que te disse e toma cuidado com essa boate, ok?
– Mãe – Adriana riu e beijou-a –, eu lembro tudo o que o papai me ensinava para casos de emergência. Não te preocupes que estarei bem segura. Bem sabes que sou muito cuidadosa.
– Sei sim, minha filha. – A mãe suspirou. – Se eu fosse como tu na tua idade, talvez as coisas tivessem sido muito diferentes. Mas enfim, é a vida.
– Como assim, mãe? – Adriana olhou para Júlia, muito espantada, e riu. – Quer dizer que não eras ajuizada na minha idade e agora vens me cobrar isso?!
– Nada disso, anjo. – Júlia voltou a suspirar. – Falava de outra coisa mas nem por isso diferente. Esquece que é algo muito pessoal.
― ☼ ―
– Mas, mãe – a voz da Patrícia era chorosa –, quase todos meus colegas da faculdade vão para essa festa!
– Acertou em cheio, filha – exclamou a mãe, que falava com um forte sotaque carioca, sacudindo a cabeça. – Quase todos e não todos, porque você... não vai. Conheço você e sei que é demasiado desmiolada, apesar de estar no primeiro ano da universidade.
– Mas bah, mãe, é a minha banda favorita – suplicou Patrícia, desesperada. – Por favor!
– Não adianta insistir mais, Patrícia – concluiu a mãe, taxativa.
Cabisbaixa, a garota ligou para a sua grande amiga. Era uma menina de dezesseis para dezessete anos, loira como a amiga, mas de olhos castanhos. Não era tão bonita quanto Adriana, mas tinha um charme todo especial que encantava os rapazes, sendo sempre a preferida deles. Triste, começou a dizer:
– Drica. Sinto muito, mas não poderei ir junto. Minha mãe não deixou.
A mãe da garota ouviu a conversa e perguntou, quando a filha desligou o telefone:
– Estava falando com sua amiga Adriana, aquela moça que assassinaram o pai e filha da professora Júlia?
– Sim, mãe, ela é a minha melhor amiga e fazemos a mesma faculdade – respondeu com a voz aborrecida.
– Se você prometer que ficará sempre com ela, eu permito que vá à festa. Sua amiga é a moça mais ajuizada que eu já vi em alguém da vossa idade, mas quero você em casa antes das três horas, ok?
– Obrigada. – Patrícia abraçou a mãe, muito feliz. – Vai ser tri legal, logo com a minha banda preferida! Valeu, mãezinha.
– Quando é essa festa?
– Em duas semanas, dia vinte e seis. – A garota correu para o telefone e contou a novidade. – Adriana, a minha mãe deixou eu ir se ficar sempre contigo, mas nós temos... bem, eu tenho que estar em casa antes das três horas. Não te importas, né?
– "Claro que não, Paty" – disse a moça do outro lado da linha, soltando uma risada. – "Vai ser muito tri. Beijos."
― ☼ ―
Paulo perambulava pelos corredores do prédio da engenharia, caminhando calmamente para a saída. Seu objetivo era alcançar o edifício da biologia para encontrar Joana, sua companheira. Ele tinha vinte e dois anos, bem-apessoado e era muito apaixonado pela namorada, uma moça dois anos mais nova, delicada, de cabelos castanho-claros, suaves e cacheados. Ao se encontrarem, os olhos de ambos brilharam e beijaram-se ternamente, bastante abraçados. Após, Paulo passou a mão na cintura da garota e caminharam para a saída do campus, pois combinaram de almoçar fora.
Fazendo o mesmo com o namorado, Joana disse, entusiasmada:
– Amor, semana que vem é seu aniversário. O que você quer de presente?
– Tu és o meu melhor presente dos últimos cinco anos, Joaninha. Eu te quero a ti só pra mim, por toda a noite. – Deu uma risada e apertou-a mais.
– Ora, amor, nós já dormimos juntos há três anos! – Ela sorriu e beijou o namorado. – Ou seja, isso já fazemos quase todos os dias...
– Bem, nesse caso, eu quero algo mais especial, uma noitada de arromba. – Deu uma risada bem espontânea. – Quero ver quanto tempo a gente aguenta.
– Seu tarado!
– Tu também és bem taradinha. Acho que nos damos muito bem, né? – Mais sério, continuou. – Em duas semanas tem a festa do DCE, lá na Beijo da Noite e já comprei os ingressos para nós, amor...
– Eu pensava em ir a Joinville – disse a moça, que era originária de Santa Catariana –, pois faz um tempão que não vejo meus pais...
– Minha Joaninha – pediu para a namorada, deitando-lhe um olhar suplicante. – Fica comigo pois tenho uma surpresa muito especial para ti. Vai no outro fim de semana que daí podemos ir juntos, que tal?
Paulo também não era de Santo Agostinho e sim de Porto Alegre. Ambos conheceram-se na casa do estudante até que acabaram alugando um JK minúsculo e foram morar juntos, felizes como nunca há trinta e seis meses.
– Tá bom, amor. Por você eu faço qualquer coisa. – Beijou-o e entraram no restaurante. – Paulinho, as nossas bolsas de mestrado davam para a gente alugar algo bem mais jeitoso. Afinal ainda tenho dois anos pela frente e você vai começar o doutorado ano que vem...
– Sei disso – interrompeu Paulo. – Também sei que um engenheiro agrônomo formado aqui tem emprego garantido no país inteiro, mas vamos economizar mais e pensar no nosso futuro com bastante calma.
– Amo você, Paulinho. – Ela sorriu. – Amo demais...
– Também te amo muito, Joana. – O jovem pegou sua mão e beijou-a.
O resto do tempo gasto com coisas triviais e, após o almoço, voltaram para os respectivos laboratórios e suas experiências científicas.
― ☼ ―
Naquela noite, a boate abriu normalmente e a lotação não foi exagerada, mas estava bem cheia. Um bando de bêbados divertia-se a brincar com os extintores de incêndio, disparando jatos de pó uns nos outros até que os seguranças agarram-nos e expulsam-nos da boate, porém eles exauriram os equipamentos.
No dia seguinte, tanto a equipe de limpeza quanto a da manutenção não se atinaram para isso e os extintores ficaram ao lado do palco e do bar, extintos.
― ☼ ―
– Mas daí, tchê, quem de vocês vai para a Beijo da Noite no sábado? – perguntou Rodrigo para os amigos que estavam em um restaurante bastante simples, popular. – A festa promete muito e vai ter gata pra cacete.
Rodrigo era um famoso mecânico de automóveis e tinha bons amigos. Os colegas e parceiros retrucaram:
– Bah, a entrada deve ser tri cara. – Geovâni fez uma cara de triste. – Eu bem que queria ir, pois quem sabe deixava de ser solteiro, mas vai dar não.
– Eu também tô sem grana, Rodrigo – acrescentou Vilmar.
– Cara – disse Júlio –, eu e Sônia adoraríamos ir, mas só recebemos no fim do mês. Sem jeito, tchê.
– Não é caro não, galera, apenas quinze Reais, mas ganhei cinco ingressos de um cliente, que é professor da UFSA, com direito a consumir cinquenta pila cada um e dou pra vocês. Gente, é meu aniversário! Quem me acompanha?
– Cinco? – perguntou Vilmar, alegre. – Então vamos todos. Dá certinho, quera. Tu é um cara bagual, tchê.
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Na rodoviária de Santo Agostinho, um ônibus proveniente de Santa Catarina encostou e os passageiros desceram um tanto cansados da longa jornada. Entre eles, um jovem de aspecto alegre e tranquilo, porém cansado, desceu do veículo, pegando a bagagem e indo para a saída onde inúmeras pessoas aguardavam pelos recém-chegados. Ele era alto, loiro, com olhos azuis e aparência normal, mas bem cuidada. Uma pequena turma de amigos viu a sua chegada e fizeram uma ovação alegre. Aproximou-se e abraçou-os. Eram cinco pessoas, duas garotas e três rapazes, todos na casa dos trinta anos.
– Mas bah, tchê, não é que o paulista veio mesmo! – afirmou um deles batendo nas suas costas. – Me dá essa mala que tu deves estar mais cansado que sei lá o quê.
Sorrindo, o jovem entregou a mala para o amigo e disse:
– Obrigado, Lucas – virou-se para uma das garotas, Anita, e estendeu os braços, sorridente. Ela atirou-se ao amigo, apertando-o muito enquanto o beijava nos lábios, feliz de o rever. A moça era muito bonita, alta, cabelos castanhos e cacheados, olhos azuis, seios fartos e o corpo bem torneado com a cintura fina. Quando pararam de se beijar, ele continuou. – Você está cada vez mais bela, Anita, e tenho sempre muitas saudades. Não nos vemos desde a Austrália e já faz quase seis meses!
– Também tinha, Leandro. – No seu ouvido disse. – Muitas mesmo e ainda te amo demais.
– Sinto o mesmo, Anita – sussurrou e apertou-a mais. – Falaremos a respeito.
Virou-se para os outros amigos e abraçou-os, sempre sorridente.
– Vamu lá, paulista – disse Zé, estendendo uma cuia com o chimarrão e servindo o amigo. Ele era um sujeito pacato e atraente, com cerca de um metro e setenta, cabelos e olhos castanhos, e o corpo musculoso. – Quero ver se esse gaudério de São Paulo ainda gosta de um mate.
– Claro que gosto, tchê, é tri legal! – Leandro deu uma risada ao ver a cara de troça dos amigos. – Tá bom, sei que não falei direito. Afinal, quero ver vocês dizendo: garçom, um chopps e dois pastéu.
De bom humor, caminharam para o estacionamento. Leandro foi abraçado à Anita e viu Luciana e Lucas, também abraçados. O casal, curiosamente, era muito semelhante. Ambos tinham um metro e setenta e cinco, cabelos loiros e olhos azuis, sempre com um sorriso no rosto. Só naquele momento Leandro notou as alianças.
– Epa – deu uma risada. – Finalmente casaram?
– Sim, logo que voltamos para o Brasil. Vamos ser papais em sete meses, paulista.
– Demorou!
– Demorou coisa nenhuma – ripostou Lucas, rindo. – Eu hein! Foi até bem rapidinho!
– Para os paulistas e cariocas, demorou é o mesmo que tri legal para vocês – explicou Leandro, também rindo dos amigos.
– Sempre digo que paulistas e cariocas são meio ou totalmente doidões! – gozou Márcio, rindo da cara do amigo. Ele era muito alto, mais de um metro e noventa, cabelos pretos e olhos castanhos. Tinha porte atlético, com o tronco em V e muito forte. – Definitivamente vocês não regulam nada bem do porongo. Olha aí, Leandro, se eu fosse tu, resolvia logo essa peleja com Anita. Tadinha dela, nem sai mais na noite. E, quando sai, está sempre só!
– Isso é entre nós, você não acha? Então, o que vocês planejaram? – Apesar de dizer isso, ele apertou mais a moça, que estava abraçada e feliz.
– Hoje é quarta-feira e, de noite, vamos a um boteco. Afinal, para nós, às quartas é dia de boteco e namorar. Sábado é o teu aniversário e vamos levar-te para o point do momento, uma mega festa que vai ter na boate Beijo da Noite. Quinta e sexta ainda não decidimos nada.
– Preciso achar um hotel!
– Tu ficas comigo, Lê – insistiu Anita, que morava só. – Afinal temos muita coisa para falar e saudades para matar.
Lucas pôs a mala no carro da Anita e despediram-se, combinando o encontro às dezoito horas. No carro e a sós, ambos beijaram-se demoradamente, enquanto se acariciavam cheios de saudades.
– Sabe, Anita – comentou Leandro, enquanto a beijava novamente, muito feliz de estar com a moça – eu amo você e senti demais a sua falta.
– Também te amo. Vamos indo? – A moça ligou o carro e partiram para o apartamento.
– Amanhã, preciso de comprar uma passagem para voltar a São Paulo no domingo de noite – comentou, enquanto Anita dirigia pelo trânsito tranquilo da cidade. – Você me leva ao aeroporto?
– Puxa vida, amor, já vais tão cedo? – Ela ficou triste. – Faz meses que não nos vemos e sinto demasiadas saudades. Queria estar de volta à Austrália, quando nos conhecemos e passamos sete maravilhosos meses, sempre juntos. Foi tão gostoso!
– Anita, meu amor, não pense que não sinto saudades. – O jovem ficou calado por uns segundos. Olhou para ela, muito vermelho, e continuou, gaguejando. – S... s... sabe, eu, eu, eu vim aqui principalmente para ver você e... e... e...
O rapaz ficou mudo, travado.
– Bah, Leandro, tu estás tri nervoso, mais perdido que cego em tiroteio. E?
– E saber se você quer casar comigo – afirmou de supetão, antes que começasse a gaguejar novamente. – Amo você demais para ficar só nos e-mails, Anita.
Ela parou o carro na sinaleira e virou-se para Leandro com lágrimas nos olhos.
– Tu não imaginas quantas vezes sonhei com isso, meu amor.
Feliz, atirou-se aos braços do namorado, beijando-o.
– Então isso é um sim? – Leandro perguntou.
– Com certeza, Lê... – O carro atrás começou a buzinar e o casal parou de se beijar. Rindo, começaram a rodar, não dando a menor bola para os gestos obscenos do condutor do veículo que os ultrapassou buzinando sem parar.
– Esse aí não passa dos quarenta, amor, tão estressadinho! Anita, encoste o carro ali. – Ela obedeceu e Leandro pegou na sua mão, beijando-a. Quando parou, ainda segurando a mão dela, tirou do bolso duas alianças, colocando uma no dedo da moça. – Agora, você é minha noiva. Eu vou para São Paulo, mas volto em uma semana para procurar um apartamento para nós e um emprego, a menos que você queira viver em São Paulo.
– Na verdade, eu prefiro Santo Agostinho. Com a sua formação, amor, não terá dificuldade alguma para arrumar um bom emprego aqui.
Ela ligou novamente o veículo e rumou para seu apartamento. Uma vez lá, Leandro tomou um banho com a garota e deitaram-se na cama, aos beijos.
– Consegui folga do meu trabalho até segunda, amor – disse no meio de uma pequena pausa dos beijos. – Compenso no fim de semana que vem e no outro. Trabalhar na universidade tem as suas vantagens...
O jovem calou a noiva com um beijo longo. À noite, o par saiu para encontrar os amigos. De mãos dadas, sentaram-se no bar, ambos muito radiantes. De cara, Luciana viu as alianças.
– Bah, não acredito! – exclamou, sorrindo. O casal riu e beijou-se, muito feliz. – Tu pediste Anita em casamento, Leandro?
– Pediu – respondeu a noiva no lugar dele, rindo e com os olhos brilhantes –, e vocês tinham de ver o meu amor gaguejando feito um doido. Tava mais perdido que cego em tiroteio.
– Aê, demorou! – disse Zé, imitando o jeito paulista de falar e rindo da cara do amigo, enquanto os demais, debochados, batiam palmas. – Garçom, um chopps e dois pastéu... e um champanhe.
Zé era famoso por imitar tudo com perfeição, sempre divertindo os amigos com suas piadas e pantominas. Quando as risadas acabaram, Márcio perguntou:
– Vão viver aqui ou em Sampa?
Felizes, ambos relataram os planos para o futuro.
― ☼ ―
O diz da grande festa chegou finalmente. Para uns, era apenas mais um dia normal, mas outros estavam cheios de expectativas. Logo de manhã cedo, o gerente da boate recebeu a banda e os técnicos de som, auxiliados pelos empregados, carregaram equipamentos em grande quantidade para o palco. O salão da Beijo da Noite estava um caos de tantos equipamentos e caixas soltos aparentemente ao acaso, enquanto os especialistas orientavam em que lado deviam ser colocados certos instrumentos e objetos.
O empresário do conjunto afirmou:
– Nós desejamos fazer um espetáculo pirotécnico no auge do show e ...
– Sei não, amigo – interrompeu o gerente. – Aqui é um recinto fechado e...
– Mas nós sempre fazemos...
– Qual é o problema? – Dionísio passou e ouviu o homem falando com um tom meio chateado. – O que está acontecendo?
– Eles querem usar pirotecnia no show – explicou o gerente, bastante preocupado – mas o local é fechado e há riscos em demasia.
– Claro que podem fazer. Afinal, para que servem os extintores de incêndio? – respondeu o dono, irritado. – Joel, vem comigo que quero falar contigo em particular.
Ambos foram para a gerência e o patrão já começou a falar de forma grosseira:
– Qual é a tua, tchê? – perguntou zangado. – Esses caras são superfamosos e não dá pra contrariar assim na maior. Tu tá maluco?
– Mas, senhor – o gerente tentou justificar-se – estamos em um recinto fechado que vai estar muito cheio...
– Olha, a menos que tu queira procurar outro emprego, cala a boca e vai trabalhar.
Ofendido e humilhado, o gerente pensou seriamente em se demitir, mas lembrou-se da esposa e da filhinha de dois anos, engolindo o orgulho e voltando ao serviço.
― ☼ ―
À noite, havia uma fila imensa de pessoas na entrada da boate. Leandro olhou a porta, que tinha uma grade separando a rua da calçada, e comentou bem sério:
– Anita, para o tamanho do lugar, esta porta é demasiado estreita. A menos que haja saídas de emergência em outros locais, isto é uma ratoeira terrivelmente perigosa. Essa grade paralela à porta e à rua é muito bacana para evitar atropelamentos, mas em uma emergência muita gente vai se ferir na saída.
– Bah, amor, esta boate funciona há mais de ano e nunca deu um problema!
– Tá bom, anjo, não ligue que são paranoias de um engenheiro civil especializado em segurança. – Ele voltou a rir e beijou a noiva. – Mas eu sei o que digo, Anita. Este lugar é relativamente perigoso e sempre há uma primeira vez...
– Amor, para de pensar nisso que hoje é nossa última noite antes de voltares e também é teu aniversário. – A moça agarrou-o, cheia de desejo.
– Então que tal voltarmos prá sua casa e ficamos fazendo amor a noite toda? – perguntou, correspondendo ao aperto. – Acho que é um programa muito mais interessante.
– Os outros esperam pela gente, Lê, justamente para comemorar o teu aniversário. Eles vieram na frente de modo a arrumar lugares melhores e não seria nada justo com nossos amigos! Além disso, nós podemos sair mais cedo e aproveitar muito bem o resto da noite, só nós dois. – A noiva deu um sorriso matreiro. – E a espera pode tornar tudo mais interessante...
– Você está certa, Anita. Mal espero para voltar a estar a sós com você. Afinal, não dá pra tirar esses meses todos de atraso em tão poucos dias.
― ☼ ―
Cheia de alegria, Patrícia estava na fila junto com a amiga. Adriana, entretanto, não se sentia tão à vontade e, quanto mais perto da porta chegava, mais inquieta ficava. Lembrava-se muito bem de tudo o que o pai ensinara e, para ela, entrar ali era o mesmo que ir para uma armadilha mortal.
– Paty, a entrada é pequena e estreita. Estou preocupada, porque este lugar não oferece a menor segurança.
– Caramba, Drica, deixa de ser paranoica.
– Não estou sendo paranoica, Paty, e sim realista – insistiu a moça. – Meu pai, quando era vivo, sempre me ensinou a procurar segurança em lugares fechados e vejo que vamos entrar num recinto enorme, cheio de gente e que aparentemente só tem uma saída minúscula, sem estrutura para emergências.
– Puxa vida, Drica, deve haver saídas de emergência lá dentro. Olha, nada de sair da fila que estaremos entre os primeiros a entrar e quero ficar bem pertinho do palco. Amo essa banda.
– Também gosto deles, mas estou preocupada.
As duas entraram e Adriana procurou localizar pontos estratégicos para emergências, tal como o pai ensinava desde muito pequena. A primeira coisa que notou, foi que não havia saídas de emergência.
– Paty, não enxergo saídas de emergência neste lugar e quase não vejo extintores de incêndio. Eu não vou ficar aqui.
– Pelo amor de Deus, Drica, não me deixes sozinha que a minha mãe come meu fígado. Ela me fez prometer que ficava contigo senão eu não poderia sair. Esta é a minha grande chance de ver minha banda favorita ao vivo, sem falar no Mauro, que vem encontrar a gente. Eu tô louca para dar uns amassos nele!
– Mauro o teu amigo? – perguntou, pois estava apaixonada pelo irmão do rapaz. – Ele vem?
– Sim, e Zé também virá – confirmou a amiga. Adriana sentiu o coração acelerar. – Ele disse que vêm pela meia-noite.
– O que eu não dava pra encher o Zé de beijos...
– É a tua chance.
– Tudo bem, mas se eu achar que tem algo errado tu vais sair comigo e sem discutir, ok?
– Prometo.
Enquanto entravam, a boate tocava música mecânica, com as luzes piscando alucinadamente e os jovens dançando e bebendo tranquilamente.
Lentamente, o local foi enchendo de tal forma que começou a ficar meio apertado e difícil de caminhar no meio da multidão. Por volta da meia-noite, Patrícia recebeu um SMS do Mauro dizendo que ia chegar cerca de duas da manhã, pois estavam no aniversário de um amigo que só acabava pouco antes disso. Adriana ficou chateada, mas logo esqueceu, já que a banda começou a tocar e ela também os adorava.
― ☼ ―
Em uma mesa, afastados do palco e junto ao bar, Leandro e os amigos divertiam-se. Perto do fundo, Rodrigo, Geovâni, Vilmar, Sônia e Júlio, comemoravam os vinte e dois anos do primeiro, levantando mais um brinde a este, o vigésimo, pelo menos.
– Legal o teu cliente te dar os ingressos, Rodrigo. Esta festa tá tri buenacha – comentou Sônia, dando um beliscão no marido, que ficou observando uma linda loira que passou. – Eu vi, Júlio!
– Pô, amor, olhar não arranca pedaço – riu da mulher, que lhe deu outro beliscão. Carinhoso, beijou-a e abraçou-a. – Afinal tu sabe que te amo muito, né?
– Então pra quê secar as outras mulheres?
– Ora, o que é bonito é pra ser visto, amor – piscou o olho para a esposa e continuou. – Só não vale provar.
A esposa deu um sorriso matreiro.
– Cuidado, viu? – brincou ela. – Afinal, se tu faz isso, eu também posso...
– Só não vale provar, amor – repetiu, rindo. Depois, emendou, bem maroto e debochado. – Mas tu não vai achar outro mais gostosão que eu.
– Mas olha só que marido bem convencido fui arrumar! – Riu e beijaram-se, permanecendo de mãos dadas.
― ☼ ―
Muito juntos e abraçados Paulo e Joana curtiam o início do show. Ela perguntou, falando ao seu ouvido pois o barulho era ensurdecedor:
– Afinal, amor, qual é a surpresa que você disse que tinha?
– Espera que já te mostro – comentou, enigmático. – Agora está muito barulho.
Eram perto de duas horas quando Paulo pegou na namorada e levou-a para os banheiros. O acesso era por um corredor largo e as portas de molas, semelhantes aos saloons do faroeste, porém de alto a baixo, separavam o salão dos sanitários e reduziam consideravelmente o som.
Curiosamente, o corredor encontrava-se vazio e sem filas, provavelmente porque o show estava perto do auge. No fundo do corredor e um pouco ansioso, bem como nervoso, Paulo esperava impaciente em frente à entrada do sanitário feminino até que Joana saiu e perguntou:
– Então, Paulinho, vai me contar sua surpresa?
– Claro, Joana. – Com olhos brilhantes, pegou sua não e mostrou duas alianças. – Meu amor, queres casar comigo?
― ☼ ―
– Bem, minha gente – afirmou Lucas, levantando e ajudando a esposa. – Luciana está um pouco sufocada e vou levá-la para tomar ar. Voltamos em meia hora, ok?
– Tranquilo, tchê – foi a resposta de Márcio. – Acho que também vamos embora daqui a pouco, pois são quase duas horas. Qualquer coisa, o ponto de encontro é na porta e seguimos sempre junto à parede. Assim, a gente não se perde. Té mais.
Dez minutos depois, Leandro e Anita levantaram-se.
– Nós também vamos sair, Márcio.
– Assim que terminar esta música, eu saio, ok?
– Sem problemas – confirmou Leandro, tomando a mão da noiva e continuando. – Esperamos você na saída. Onde foi Zé?
– Disse que ia fumar um cigarro lá fora e depois voltava.
– Esse troço ainda vai matar aquele maluco.
― ☼ ―
Adriana gostava muito do show e até esqueceu seus temores. Olhou para o relógio do telefone e viu que eram quase duas horas. Alegre, imaginou que o rapaz de quem gostava em breve estaria ali.
No meio daquela escuridão cortada por luzes no palco, um brilho intenso de luz chamaria logo a atenção de qualquer um, mesmo que não estivesse olhando e foi o que aconteceu: Adriana ergueu o rosto e voltou a prestar atenção ao palco. Assustada, arregalou os olhos e viu que o vocalista erguia um sinalizador por onde forravam faíscas intensas com quase dois metros de altura. Sincronizados, fogos apareceram à frente do resto da banda. Extasiada, Patrícia filmava tudo com o celular.
Adriana, porém, muito bem doutrinada pelo falecido pai, viu o que os outros ainda não notaram: o sinalizador alcançou o teto que entrou imediatamente em combustão. Enquanto um dos integrantes do conjunto pegou o extintor, que não funcionou, a banda continuava tocando, sem parar. Com um puxão forte na amiga, Adriana gritou:
– Vamos sair daqui, RÁPIDO.
– Meu celular caiu... – Patricia ofereceu resistência, mas a amiga puxou por ela com toda a força. Irritada, berrou imperativa, apontando o teto:
– Esta bosta vai pegar fogo em um minuto, esquece o celular e corre comigo. Também deixei cair o meu.
Com violência, puxou a colega e correram pela parede, onde havia mais espaço, com Adriana sem soltar a mão da Patrícia. Quando estavam prestes a chegar à saída, começaram os gritos desesperados. Os seguranças procuraram olhar por sobre o corredor e as moças passaram correndo pela porta, escapando por um triz de serem agarradas por eles que não receberam a comanda com o carimbo de pago. Colidindo com um homem que terminava de fumar um cigarro e se preparava para retornar, elas continuaram correndo.
– Não entra aí, tchê – gritou Adriana, puxando o homem com elas e forçando-o a segui-las. – Há um incêndio iniciando e aquilo vai virar um inferno, pois a boate não tem saídas de emergência!
Um dos seguranças pretendia segui-las, especialmente porque pararam no outro lado da rua, mas o colega viu uma grande quantidade de pessoas correndo aos gritos e chamou-o.
– Acho que tá rolando uma baita peleja e tão tentando abrir fora sem pagar, tchê – disse ele. – Fecha a porteira. Se essa turminha pensa que vai sair na maior, tá redondamente enganada.
As garotas e o homem que arrastaram junto ouviram a gritaria e, para grande espanto dos três, viram os seguranças fecharem as portas. O fumante, Zé, ignorou as moças e correu desesperado para a entrada, esmurrando a porta e gritando sem parar.
– Bah, Drica, tu salvou nossas vidas! – Patrícia abraçou a amiga, emocionada. – Nunca mais deixarei de prestar atenção nos teus conselhos.
Afastou-se da amiga e apontou o dedo, continuando:
– Olha, o Mauro e Zé. – Gritou-lhes, acenando. – MAURO.
Apressados, os dois irmãos aproximaram-se das moças, mas notaram a gritaria na porta, tão forte que se ouvia de fora e bem alto.
– Que aconteceu? – perguntou ele, beijando a amiga. – Por que estão aqui fora e qual o motivo da gritaria e das portas fechadas? Rolou uma bronca lá dentro?
– A boate está incendiando e fecharam as portas para ninguém sair sem pagar, eu acho – explicou Patrícia. – Felizmente, Drica viu e fomos as primeiras a fugir.
– Meu Deus, Luana e o namorado vieram mais cedo e já devem estar aí – comentou Zé empalidecendo, muito nervoso por causa da irmã caçula. – Vocês não os viram lá?
– Tá cheio a abarrotar, Zé. – Adriana pôs a mão no seu ombro e ele estremeceu. Feliz, ela viu que ele também a desejava, mas sabia que não era o momento. – Não dava para ver ninguém. Tenta ligar para ela.
– Espero conseguir. Tô quase sem bateria e Mauro esqueceu o celular dele em casa. Vocês têm os de vocês? – perguntou, enquanto ligava.
– Na fuga, deixamos cair.
– Tá chamando... Alô? Oi, prendinha, onde estás?
– "Oi, Zé. Tu me acordaste. Eu tava com sono e não quis ir para a festa. Pedi para o Léo me deixar em casa. Que foi, mano, algum problema?"
– A Beijo da Noite tá incendiando e deixaram todo mundo preso lá dentro. Léo veio para cá?
– "OH, MEU DEUS..." – O aparelho ficou mudo.
Ao mesmo tempo em que isso ocorria, com um estrondo as portas abriram-se de par em par e as pessoas começam a sair, atropelando-se e com vários ferindo-se. Logo a seguir, uma fumaça preta também os perseguiu, saindo por cima.
– Ela estava dormindo em casa – afirmou o irmão, visivelmente aliviado – mas não sei se Léo está ai dentro porque acabou a bateria. Só ouvi um grito de "oh, meu Deus."
– Pelo menos tua irmã está a salvo. – Adriana, ainda assustada, pegou na sua mão, encostando-se a ele. – Continuo muito nervosa e com medo.
Notaram as pessoas desesperadas, tentando fugir ainda aos gritos, muitos deles tossindo sem parar e vários caindo no chão, sendo pisoteados e feridos pelos que estavam atrás. A visão era macabra e assustadora.
– Vamos ajudá-los, Mauro. – Sem pensar, os dois irmãos correram a acudir os sobreviventes e os feridos. A sirene dos bombeiros começou a ser ouvida, ainda baixo, mas crescendo gradativamente.
– NÃO ENTREM EM HIPÓTESE ALGUMA – gritou Adriana, muito preocupada. – O MEU PAI DIZIA QUE ESSE TIPO DE FUMAÇA É DEMASIADO TÓXICA E MATA EM POUCOS MINUTOS.
Os irmãos ouviram e apenas limitaram-se a ajudar as pessoas caídas. Pegaram os desmaiados ao colo e correram com eles para fora do caminho da porta de forma a não serem pisoteados. Em pouco tempo, mais alguns voluntários juntaram-se a eles, cada qual mais assustado que o outro com o que via.
― ☼ ―
Rodrigo ouviu uma gritaria, estranhando.
– Ei, que gritaria é esta? – Levantou-se e olhou em volta. Lívido, berrou para os amigos. – RÁPIDO, CORRAM PARA A SAÍDA. O PALCO INCENDIOU!
O grupo formou um bloco compacto, protegendo Sônia no meio deles. Como eram muito fortes e corpulentos, conseguiram forçar passagem para a rua. Em dois minutos, estavam próximos à saída. Assustado, Rodrigo viu a quantidade de corpos pisoteados, tendo ele mesmo passado por cima de alguns, mas não podia parar senão seria atropelado pela egrégora desesperada e fora de controle que vinha atrás deles. Quando estavam fora, respiraram fundo o ar puro, sentindo os olhos lacrimejarem da pouca fumaça tóxica que inalaram. Da saída já muito poucos emergiam, a maior parte cambaleando e tossindo bastante.
Vários dos sobreviventes apressam-se a ajudar, justamente no momento em que o corpo de bombeiros finalmente chegou, com as sirenes tão estridentes que abafaram a gritaria. Diversas ambulâncias e viaturas da polícia militar também encostaram à medida que as comunicações telefônicas com pedidos de socorro entupiram diversos departamentos, principalmente polícias e bombeiros. Os sobreviventes e curiosos que apareceram por causa da barulheira, aglomeraram-se para olhar, mantendo alguma distância. Alguns deles filmaram com os celulares.
― ☼ ―
Joana e Paulo beijaram-se ardentemente naquele corredor praticamente vazio quando a banda silenciou e a gritaria infernal começou. Estavam de tal forma envolvidos consigo mesmos que nada ouviram até que, lentamente, começaram a voltar à realidade e deram-se conta de que o som parou para dar lugar a gritos histéricos. Aos poucos entenderam as palavras fogo e fumaça.
– Temos que sair daqui, meu amor, rápido. – Assustado, Paulo pegou na mão da noiva e correu para a porta de saída, tentando alcançar o salão porque via que estavam em uma tremenda armadilha, já que não havia qualquer outra forma de sair por ali. Quando estavam a dois metros das portas, estas abriram-se e uma horda desesperada e histérica penetrou no corredor relativamente largo, procurando uma rota de fuga e entrando às dezenas nos sanitários. Preocupado, Paulo gritava para eles:
– VOLTEM. AQUI NÃO HÁ SAÍDAS E MORRERÃO TODOS.
A massa de desesperados nada ouvia, entrando e empurrando o casal junto com eles. Paulo segurava com força o braço da futura esposa, puxando-a contra a parede. Com dificuldade, foi caminhando para a porta, vendo a fumaça negra que escurecia o lugar e penetrava atrás das pessoas, como que as perseguindo de forma implacável.
Era impossível ver direito, mas ele sentia que não havia chamas. O fogo consumiu a espuma do teto queimando-a toda. Entretanto, foi combustível insuficiente para um incêndio mais vasto, tanto que o calor, apesar de elevado, era suportável. Ciente dos perigos, gritou para Joana:
– Amor, evita respirar isso. – Notou que o caminho ficava livre e alcançaram a porta, indo para o salão principal, onde já não se ouvia grande coisa a não ser tosses e respirações chiadas ocasionais. Aos poucos, até isso cessava.
Infelizmente, nada viam e precisavam de caminhar muito cuidadosamente, procurando a saída com dificuldade. Sempre mantendo a mão da Joana bem apertada, Paulo procurava alcançar a porta da rua. Os olhos ardiam muito e os pulmões queimavam, já tornando a respiração insuportável, como se estivesse com uma forte asma. Joana começou a tossir e arquejar, cada vez pior, enquanto os seus pulmões chiavam intensamente na busca de ar puro que não existia ali. Paulo sentia-se igualmente mal, mas lutava com todas as forças para os salvar quando Joana tropeçou num corpo e caiu. O noivo tentou ajudá-la a levantar-se, porém nenhum dos dois tinha mais forças. Ela deixou-se ficar no chão, entregando os pontos.
– Fuja, amor – sussurrou em meio à tosse. – Eu não consigo andar mais, salve-se.
– Então ficaremos juntos, Joaninha – deitou-se ao seu lado, abraçando a mulher da sua vida. – E morreremos juntos se for esse o nosso destino. Devias ter ido para Joinville, me perdoa.
– Hoje você me fez a pessoa mais feliz do mundo, Paulo, e não me arrependo nada de ter ficado. Foi apenas um azar e a vida que quis assim.
Num ímpeto momentâneo, o noivo falou, recitando uma ladainha muito antiga:
– Joana, aceitas Paulo como legítimo esposo, para amar e respeitar, na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, até que a morte os separe?
– Aceito, sim – respondeu tossindo e sentindo sabor de sangue no catarro.
Paulo continuou, muito arquejante:
– Vamos encurtar. Eu também te aceito. E assim, eu nos declaro marido e mulher. – Beijou Joana, sentindo que a consciência se esvaía, devagar, mas implacável.
– Eu amo vo... – não conseguiu dizer mais nada, perdendo a consciência junto com o noivo. Abraçados e de bocas coladas, ambos partiram deste mundo, casados por si mesmos.
― ☼ ―
Lucas e Luciana chegaram à saída, sendo praticamente atropelados por duas garotas.
– Bah, tchê, mas que falta de educação! – reclamouele. Mal parou de falar, ouviu uns gritos e os seguranças fecharam as portas.
– Ei, queremos sair – reclamou. – A conta tá paga.
– Depois que os ânimos se acalmarem – respondeu um segurança, ameaçador.
Uma leva de pessoas aterrorizadas chegou aos gritos, empurrando todos de encontro à saída. Desesperado, Lucas pôs a esposa contra a porta e usou os dois braços estendidos para que ela não fosse prensada.
– PAREM COM ISSO, PELO AMOR DE DEUS, QUE A MINHA MULHER ESTÁ GRÁVIDA.
Ninguém escutou o seu grito até porque estavam todos berrando desesperados e pressionando o casal mais os seguranças contra a saída com cada vez mais força à medida que mais e mais pessoas chegavam e empurravam-se. Um minuto depois as portas cederam, abrindo de par em par, e o casal quase caiu no chão, empurrado pela massa de gente que vinha atrás.
Do lado de fora, Zé, que esmurrava desesperadamente as portas, foi jogado contra a grade e agarrou-se para não cair. Ao ver bem à sua frente Lucas e Luciana, empurrados e tropeçando, atirou-se a eles e puxou o casal para o seu lado bem colados à parede, salvando-os de serem pisoteados.
– Cadê os outros?
– Não sabemos, Zé, estávamos chegando à porta quando deu esse baita zebu.
– É um incêndio – explicou o amigo – duas garotas saíram correndo e não me deixaram entrar.
– Então foi por isso que esbarraram na gente e nem pararam!
― ☼ ―
Leandro caminhava com Anita. Quando estavam relativamente perto da saída, ouviram o alvoroço. Ele olhou para trás e viu o incêndio. Pegou na noiva pela mão e gritou para que a moça conseguisse ouvir:
– É um incêndio, amor – avisou. – Não largue minha mão que eu vou abrir caminho.
Tremendo de medo e arrependida por não lhe ter dado ouvidos, a garota segurou-o o mais forte que podia enquanto a massa de gente começava o empurra, empurra. Alguns caíram e foram pisoteados, pois ninguém se preocupava com outra coisa que não fosse salvar-se. Mesmo Leandro acabou pisando em um ou dois corpos e perdeu o equilíbrio. Por um segundo soltou a noiva, mas recuperou-se rapidamente, pegando novamente sua mão e voltando a abrir caminho para a saída. A fumaça já os alcançava e começaram a tossir, deixando de ver grande coisa. Ao fim de uns dez metros, bastante esforço e equilíbrio, atingiram a rua.
– Conseguimos, amor – disse Leandro, aliviado. Virou-se e ficou estarrecido. Quase gritando, perguntou. – Você não é minha noiva! Onde está Anita?
– Desculpa, moço, tu me pegou bem na hora que eu ia cair e fiquei segurando a tua mão.
– Não! – desesperado, correu de volta, mas não conseguiu entrar porque muitos ainda saíam. Zé, Lucas e Luciana viram o amigo e procuraram aproximar-se dele, mas tinham dificuldade de chegar perto. Leandro deu um grito e virou-se para a porta, chamando pela noiva.
Esperou um pouco, até que quase ninguém mais saía, mas nem sinal da Anita. Sem pensar duas vezes, o paulista entrou de volta e procurou fazer o mesmo caminho, gritando por ela. Havia muitos corpos no chão e ele tropeçou várias vezes. Os olhos ardiam muito, da mesma forma que os pulmões, fazendo com que começasse a tossir bastante e sabia perfeitamente que praticamente cometia suicídio mas tratava-se da mulher da sua vida e não ia desistir tão facilmente. Insistente, gritava em meio aos ataques de tosse, chamando a garota. Uma mão fraca segurou o seu pé e ele parou, abaixando-se. Usando o painel do celular como lanterna, conseguiu identificar Anita, caída e bastante escoriada dos pisões. Ela respirava com muita dificuldade e Leandro notou que também já estava assim, além de se sentir fraco e cansado. Abaixou-se e pegou nela ao colo, recomeçando a andar para a saída. Sentia-se terrivelmente exausto e ofegante, lutando contra o sono que começou a sentir e sabendo que era o princípio do fim. Mal andou pouco menos de dez metros, tropeçou em um corpo e caiu. Agarrado à noiva, sentiu que não tinha mais força para a erguer, só então notando que Anita já estava sem vida. Chorando muito, apertou-a contra o corpo, esquecendo-se que ia falecer em poucos segundos se continuasse ali, mas tudo o que desejava era senti-la junto a si.
Mais um pouco e perdeu a consciência.
― ☼ ―
Na primeira leva de fugitivos, Mauro e o irmão viram Léo, o namorado da irmã, saindo ileso. Este, desorientado, olhou em volta e gritou:
– SÍLVIA! – Os quatro aproximaram-se dele. – SÍLVIA!
– Léo, tu estás bem, tchê?
– Minha irmã Sílvia! – respondeu, assustado. – Eu não a vejo. Nós nos apartamos no empurra, empurra! – muito aflito, continuou. – Preciso de voltar e salvá-la!
– Cara, não entra aí – imploraram os cunhados. – Esse troço é muito tóxico.
Quando mais ninguém saiu, o jovem não se fez de rogado e tirou a camiseta, molhando-a em uma poça de água que havia na beira da calçada, e amarrou no rosto, deixando apenas os olhos descobertos. Antes que os amigos o conseguissem impedir, ele voltou para dentro, procurando a irmã.
Andou por algum tempo, gritando, quando uma mão agarrou seu tornozelo. Sem pensar, abaixou-se e pegou na vítima ao colo, levando-a para fora, onde já se encontravam muitas ambulâncias e viaturas da polícia.
Aflito, entregou o corpo a um dos bombeiros ao ver que não era a irmã e, desesperado, voltou para dentro, mas outro bombeiro tentou impedi-lo.
Ágil, o jovem desviou-se e ele retornou, sempre gritando pela irmã. Novamente a situação repetiu-se e salvou mais uma vítima, mas também não era a Sílvia. Na sexta tentativa, lembrou-se de usar o celular para ligar. Longe, ouviu o telefone dela tocando e caminhou em direção ao som. Começou a sentir uma ardência forte nos pulmões, pois ao fazer esforço para carregar as vítimas ficou ofegante, inalando alguma fumaça que passava pela camiseta, embora em pouca quantidade. No escuro, bateu com a cabeça em algo muito duro e caiu, perdendo a consciência.
Preocupados, os cunhados e as moças notaram que ele estava demorando demais para retornar. Zé e o irmão começaram a molhar as camisetas na poça d'água, mas o bombeiro que tentou impedir o rapaz estava mais esperto e não os deixou entrar, alegando que o risco era demasiado alto.
― ☼ ―
Rodrigo aproximou-se dos bombeiros.
– Tchê, vocês têm picaretas? – perguntou. – Podemos quebrar as paredes ali, onde ficam os banheiros. Eu vi muita gente fugindo para lá e devem estar presos. Nós queremos ajudar.
Munidos de três picaretas e um pé de cabra, os amigos começam a marretar as paredes, que iam rebentando aos poucos. Faziam revesamento com mais alguns voluntários e o trabalho de demolição avançava mais rápido, mas, ainda assim, lento demais para as vidas que se escoam lá dentro.
Aquela calçada tornou-se um completo caos; dezenas de corpos de gente morta ou morrendo estavam no chão, com muitos sobreviventes desesperados ao lado deles. Um jovem de ar assustado tirou a sua camiseta e abanava sobre o rosto de uma moça em péssimo estado na intenção de a ventilar e levar algum ar adicional para seus pulmões maltratados pela fumaça. Mais para o lado, outro rapaz tentava fazer respiração boca a boca em uma garota, provavelmente namorada, amiga ou irmã, que estava deitada no solo e sem reagir. Vestia uma minissaia que ficou toda erguida e tinha a langerie transparente, embora ninguém notasse isso naquele clima de puro desespero. Vários paramédicos passaram pelos corpos, procurando algum com vida. Um deles aproximou-se da moça e afastou o jovem. Com cuidado, baixou a sua veste, para lhe restaurar a dignidade, e pôs a mão na jugular da moça. Imediatamente pegou nela ao colo e levou-a para uma das ambulâncias, pedindo que a pusessem com oxigênio puro e retornando para as vítimas, procurando outro sobrevivente.
A parede começou finalmente a ceder e um buraco formou-se para imediatamente dar lugar à fumaça negra que começou a escoar por ali. Tendo o cuidado de não a inalar, o grupo de voluntários intensificou os esforços de modo a abrir caminho para o ar puro. Aos poucos, cada vez mais tijolos caíram no chão, aumentando o buraco.
Usando equipamento individual de oxigênio, os bombeiros entraram pela porta e começam a descarregar corpos na calçada. Eram tantos que chamaram alguns caminhões frigorífico para os acomodar. A repercussão do que ocorreu foi imediata, pois as autoridades fizeram muito alarde ao chegar, da mesma forma que as ambulâncias. Em uma cidade tão calma e pacífica, isso despertou o interesse de muitos, especialmente da mídia. Alguns voluntários e um bombeiro entraram pela parede derrubada para verem dezenas de corpos sem vida, uma grande quantidade deles empilhados perto das paredes, os cadáveres daqueles que, iludidos, correram para a morte certa achando que no corredor dos sanitários haveria uma saída de emergência.
Com todo o cuidado, procuram retirá-los. Vários dos valentes ajudantes tinham lágrimas nos olhos por verem tantas mortes fúteis reunidas. No salão da boate, um dos bombeiros usou uma potente lanterna para olhar em volta e contou pelo menos quarenta vítimas no chão. Aos seus pés, um casal abraçado e de bocas coladas estava sem vida. O homem olhou para a saída e sentiu-se muito triste pelo par que não se salvou por cinco metros, cinco míseros metros que os livrariam da fatalidade. Decidiu deixar ambos ali para que os pudessem retirar juntos em uma maca, como uma homenagem final a Paulo e Joana que escolheram morrer unidos.
Andou mais um pouco e, surpreso, encontrou um jovem com um sopro de vida. Pegou Léo ao colo e correu para a saída, depositando-o na ambulância mais próxima e voltando imediatamente para localizar outros possíveis sobreviventes. No chão, encontrou um celular e estranhou muito o aparelho estar intacto em meio a um caos de gente morta, muitos pisoteados. Pegou nele e viu que tinha mais de vinte chamadas não atendidas. A dois metros, havia outro aparelho caído, deixando-o ainda mais espantado. Ao ver que estava perto da parede e praticamente colado no palco, imaginou que ali havia pouca gente para pisar nos aparelhos na hora do show. Agachou-se e recolheu-o, pondo ambos no bolso. Repentinamente, mais um telefone começou a tocar a não mais de cinco metros da sua posiçào. Ele viu o brilho da tela e aproximou-se para observar um jovem dos seus quinze ou dezesseis anos, morto e com o aparelho na mão. No visor estava escrito: Pai.
– "O que farei, meu Deus? O que foi que aconteceu hoje aqui em uma cidade tão calma e tranquila?" – pensou, olhando o telefone tocar insistentemente. – "Meu Deus, quantos corpos e todos podiam ser meus filhos pela idade! O que farei? Como atender e dizer a um pai ou mãe que o seu filho estava morto, separado para sempre da família que tanto o amava?" – Sem coragem para isso, pegou no telefone e pôs no bolso do jovem, carregando-o para a rua.
― ☼ ―
Um dos voluntários saiu do sanitário transportando o cadáver de uma garota, que se notava ter sido de uma beleza indescritível, com os seus dezessete anos, alta. Agora, o corpo sem vida estava deformado por causa das escoriações provocadas pelos que a pisotearam, tentando fugir. Depositou-a junto à fila dos óbitos e começou a vomitar, desesperado.
– Não aguento mais ver tantas mortes – desabafou Geovâni de si para si – por favor, Deus, faça este pesadelo horroroso acabar de uma vez por todas!
Sentou-se no cordão da calçada e, aflito, chorou pelos corpos que tirou de dentro da Beijo da Noite. O amigo pousou a mão no seu ombro.
– Tchê, vê se dás uma pausa e refrescas a cabeça. Sei que é ruim, mas precisamos ajudar. – Rodrigo acalmou. – É o mínimo que podemos fazer por estas pobres almas.
– Eu sei, mas é desesperador – respondeu. – Tu sabe quem eu acabei de tirar dali? Thalita, a miss Santo Agostinho.
– É uma garota como qualquer outra, cara. Te aguenta aí e toma um ar. Eu vou ajudar.
No salão, os bombeiros procuravam corpos com vida, encontrando mais oito. Um deles deparou-se com Leandro e Anita, vendo logo que este a levava ao colo quando caiu e não mais se levantou. Com respeito, fechou os olhos do casal e pediu a um amigo para o ajudar a levar o par. Mal largaram os dois no solo, do mesmo jeito que morreram, o telefone começou a tocar, mas o homem ignorou-o.
– Carinha – afirmou o colega –, atende logo teu celular que tá tocando sem parar!
– Não é meu, Paolo.
– Então de quem é?
– Encontrei dois aparelhos no chão, abandonados. Devem ter perdido no tumulto.
– Então atende, porra!
– E dizer o quê? – questionou o soldado, aflito. – Sinto muito senhor ou senhora, mas o seu filho está morto em um incêndio... Não tenho estômago para isso! Já chega o que estou fazendo agora, tchê...
– Mas podem ter-se salvo – insistiu Paolo –, já que os aparelhos estavam abandonados.
– É verdade, mas ainda assim não tenho coragem...
– Tchê, me dá aqui essa bosta que eu tenho. Os pais precisam de ter um mínimo de esperança.
O bombeiro entregou o telefone, mas ele parou de tocar. Eram quatro horas da manhã e o celular registrava mais de vinte chamadas não atendidas. Mandou discar de volta e aguardou. Mal atenderam, uma voz feminina disse, muito irritada:
– Por que não atendeu antes, Patrícia? – questionou a mãe, berrando do outro lado. – Combinamos que você voltaria às três horas e já são mais de quatro...
– Senhora – interrompeu o homem. – Fique muito calma e escute até ao fim. Desculpe interromper assim, mas sou o sargento Paolo Morais do corpo de bombeiros. A boate Beijo da Noite teve uma catástrofe e temos muitos mortos e feridos. Encontramos este e outro telefone no chão enquanto recolhíamos os corpos. Agora, peço que não se apavore pois, ao contrário dos outros, não havia corpos com os aparelhos. Logo, a sua filha tem uma forte chance de estar viva. Diga-me o nome dela que vou perguntar aos sobreviventes.
– Patrícia Rodrigues – disse a voz da mãe, que ficou terrivelmente agoniada. – Oh, meu Deus...
– Certo. Fique na linha. – O sargento aproximou-se dos que olhavam e gritou bem alto. – PATRÍCIA RODRIGUES. QUEM É PATRÍCIA RODRIGUES?
Duas moças e dois rapazes aproximaram-se do bombeiro, que ficou muito aliviado ao constatar que agiu certo. Do outro lado da linha, a mãe ouviu os berros.
– Este telefone é teu?
– Sim, eu e minha amiga perdemos os aparelhos ao fugirmos do fogo.
– Toma, fala com tua mãe que ela está desesperada – entregou o celular e virou-se para a outra moça. – Estás vendo aquele homem ali? Ele tem outro telefone que encontrou quase ao lado deste. Vai lá e vê se é o teu. Daí, liga para a tua família antes que descubram pela TV e se desesperem inutilmente
– Obrigada, senhor. – Adriana ficou aliviada. – Estava muito preocupada, mas temos amigos aí e não queríamos ir embora.
– Olha, minha querida, não deve haver mais ninguém com vida. Não tenhas esperanças vãs.
Triste a garota foi procurar o bombeiro que estava com seu telefone enquanto Patrícia contava tudo para a mãe e como a amiga as salvou da morte.
Já eram cinco da manhã e o dia nascia, mas ainda tiravam corpos de dentro da boate, um volume que ultrapassava bem mais de duzentos. Os bombeiros e voluntários estavam extenuados; todavia, continuavam seu trabalho sem pensar em parar. Havia nada menos de cinco caminhões frigoríficos para recolher os cadáveres que eram levados para o ginásio municipal por falta de espaço no necrotério da cidade. Aos poucos, os sobreviventes iam dispersando, mas a mídia chegou ao local em peso e a informação tornou-se conhecida em âmbito nacional. Para desespero dos bombeiros, inúmeros celulares tocavam nos bolsos das vítimas; entretanto, nenhum deles teve coragem de atender e dar a notícia que sabiam ser devastadora. Como afirmou o primeiro, todos pensavam de que maneira diriam aos familiares que os seus filhos e filhas estavam mortos, vítimas de algo horrível: uma morte provocada por asfixia mecânica.
Eles encontraram apenas dez corpos queimados. Os demais, sem exceções, foram por consequência da fumaça tóxica.
Rodrigo e os amigos eram incansáveis na ajuda aos bombeiros, ajuda esta inestimável e muito bem apreciada. Em meio a uma pausa para limpar o suor, Rodrigo comentou, muito sério e triste:
– Tchê, que dia horrível para comemorar meu aniversário! Só agradeço a Deus por estarmos todos vivos, mas foi por pouco, muito pouco mesmo!
― ☼ ―
Luana chegou desesperada e encontrou os irmãos com alguma dificuldade. Era uma garota delicada e meiga, de dezesseis anos. Ao vê-los, foi logo perguntando:
– Viram o Léo?
– Mana, ele estava com a irmã. Quando saiu e viu que ela se apartou, voltou para dentro. – Os olhos da moça encheram-se de lágrimas e suas pernas cederam. Sentou-se, chorando. – Ele trouxe cinco sobreviventes. Na sexta vez, não voltou mais. Sinto muito.
A garota pranteava desesperadamente e Adriana levantou-a do chão, abraçando a moça que nem conhecia.
– Sei que o que vou dizer não ajuda em nada, mas ele foi um grande herói. Entrou em um lugar que sabia ser fatal e fez isso seis vezes! Ele salvou cinco vidas. Pensa nele assim, como um herói e não como uma vítima.
Zé aproximou-se das duas e também abraçou a irmã, deitando um olhar de agradecimento para Adriana. Ao abraçá-la, sentiu um estremecimento com o contato da moça por quem estava muito apaixonado. Luana afastou-se de lado, mas o casal ficou se olhando e aproximando. Beijaram-se ternamente e sorriram um para o outro.
Luana queria ver Léo nem que fosse uma última vez. Pegou no celular e ligou para ele. Havia vários aparelhos tocando, mas o dele tinha um toque especial. Certa vez ela fez uma gravação com voz sensual, intimando o namorado a atender e esse era o toque personalizado deles. Percorreu a fila de cadáveres enquanto o telefone tocou até cair na caixa postal, mas nada de ouvir o aparelho do namorado. Repetiu o procedimento por dez vezes; todavia, ela insistia, sempre religando quando isso ocorria.
Aflita, chegava cada vez mais perto das ambulâncias até que o seu ouvido captou a própria voz, baixa e afastada. Com o coração aos pulos, viu a ambulância de onde saía o som. Correu para lá e encontrou Léo com uma máscara de oxigênio. Chorando, abraçou o namorado, até que os paramédicos colocaram ao lado outro ferido com o corpo muito queimado e pediram que Luana saísse, pois precisavam de ir para o pronto-socorro.
Apesar das suas súplicas, os paramédicos correram com ela e a ambulância saiu em alta velocidade para dar lugar a outra. Aos prantos, a moça ligou para os pais dele e procurou localizar a cunhada.
Os bombeiros já terminavam de retirar vítimas do salão principal e um deles entrou na sala da gerência. Dentro, encontrou o corpo do gerente, que estava sozinho. Sobre a mesa e escrita às pressas, havia uma mensagem que o militar leu e ficou estarrecido. Deixando o papel no mesmo lugar, saiu correndo e esbarrou em uma moça que saía correndo da cozinha. Pegou na sua mão e correu com ela dali para fora, para que não inalasse muito fumaça, ainda presente.
– Como conseguiste ficar viva, guria? – O militar estava muito espantado.
– Respirando o ar do freezer e esperando a fumaça baixar, mas estou passando muito mal, senhor, me ajude.
– Bah, tiveste muita inteligência. – Sem perder tempo, Paolo pegou nela ao colo e levou para as ambulâncias. – Boa sorte.
O bombeiro caminhou em direção à polícia. Enquanto os PMs desviavam o trânsito e mantinham os curiosos afastados, duas viaturas da civil permaneceram paradas, um pouco afastadas. Paolo aproximou-se e olhou para os agentes, questionando:
– Qual dos senhores é o encarregado?
– Sou eu. – Um homem alto aproximou-se. – O que houve, sargento?
– Siga-me, por favor – entregou um equipamento de oxigênio ao civil e ambos entram na sala da gerência. – Olhe ali, em cima da mesa.
Com uma lanterna na mão, o civil leu a mensagem que o gerente deixou, empalidecendo.
– Barbaridade, tchê! – O policial terminou de ler a notou que, por ter sido escrita às pressas, era de difícil leitura. – Não toquem em nada para a perícia não ter falsas evidências.
– Precisamos remover o cadáver – afirmou o bombeiro, olhando para o civil de forma insistente. – Não podemos deixar corpos para trás.
– Eu ajudo. – Ambos retiraram o corpo e levaram para fora. O policial voltou com uma fita de lacre e marcou a sala como interditada.
― ☼ ―
DCE – Diretório Central de Estudantes.
Cuia – Feito do porongo, fruto da cuieira (termo Tupi) é um recipiente usado no Rio Grande do Sul e algumas outras regiões para se tomar o famoso chimarrão ou mate, uma espécie de chá relativamente amargo e muito apreciado no sul do país.
Porongo – O mesmo que cabaça, fruto grande e não comestível usado para fazer cuias de chimarrão. Também, devido ao seu formato, usa-se essa palavra como sinônimo de cabeça ou "cachola".
Semáforo.
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