Capítulo Único
Genivaldo acelerou o passo para cumprir rapidamente a missão dada pela esposa. O filho ligara mais cedo avisando que estava pela cidade com os netos e como toda boa avó que se preze, dona Maria os convidou para o almoço. Decidiu cozinhar seu famoso rocambole de carne. Tinha quase todos os ingredientes em casa, com exceção da linguiça calabresa. Coube a Genivaldo comprá-la.
Normalmente ele iria até a quitanda do seu Zé, cinco quarteirões dali. Mas como a esposa estava com pressa, decidiu ir ao novo mercado da esquina. O nome era E-Mart, difícil de falar, e isso já não agradava o velho senhor. Mas havia também outro motivo para pressa de Genivaldo.
Fumante por trinta anos, havia prometido para a esposa que iria parar. Depois de alguns meses, percebeu que largar o vício seria mais difícil do que ele pensava. Estava largando aos poucos, mas vez ou outra fumava escondido da esposa. Naquele dia, ele esperava fumar um cigarro antes do almoço.
Entrou no E-Mart e foi direto para o setor de frios. Pegou a calabresa e se dirigiu aos caixas. Encontrou um sem fila, mas havia um funcionário no caminho pronto para abordá-lo. Genivaldo se adiantou.
— Não quero o cartão da loja, obrigado.
A frase não surtiu efeito no jovem sorridente.
— E quem iria querer um cartão, não é mesmo? — Ele soltou uma risada falsa. — Mas teria que ser MALUCO para recusar o desconto de 50% na calabresa!
Essas abordagens estavam ficando cada vez mais estranhas. Mas nada surpreendente em um mercado com nome tão incomum. Normalmente Genivaldo recusaria educadamente a oferta, mas nos últimos tempos o dinheiro da aposentadoria estava comprando cada vez menos. E o preço da calabresa estava deveras salgado.
— Não vai demorar, né?
— De maneira nenhuma, senhor — respondeu o jovem. — Eu só preciso dos seus dados.
Genivaldo passou os dados. Nome, idade, telefone, endereço e... feriado municipal preferido? Era cada uma, viu? Já estava arrependido de não ter ido na quitanda do seu Zé.
— Agora preciso que o senhor baixe o aplicativo da loja e aperte o "Play".
Genivaldo pensou por um momento se o desconto realmente valeria todo aquele trabalho. Olhou no relógio e decidiu continuar, ainda tinha uns minutinhos. Baixou o aplicativo e apertou o tal botão. Mostrou a tela do celular para o funcionário, que alargou seu sorriso ainda mais.
— Muito bem, agora vamos começar o jogo!
— Jogo? Que jogo? Do que você...
A caixa, que até então estava calada, sacou uma vuvuzela de algum lugar e interrompeu Genivaldo com uma cornetada do instrumento.
"FOOOOOOM"
— Responda rápido — o jovem disse. — Qual é o maior pássaro da América Latina?
Aquilo já tinha passado dos limites. Genivaldo resolveu desistir do desconto.
— Me desculpe, meu jovem, mas eu não tenho tempo para essa papagaiada.
— E ele disse "papagaio." — O funcionário sorridente se virou para trás como se estivesse lidando com uma plateia. Curiosamente alguns dos outros clientes haviam se aglomerado para acompanhar o show. — A resposta está... ERRADA!
A caixa tirou uma torta de chantily de algum lugar e deu na cara de Genivaldo. O homem ficou paralisado. Não acreditava no que estava acontecendo. Não era possível tamanho desrespeito com um cliente. Limpou o rosto com a manga da blusa e decidiu que sairia sem a calabresa mesmo.
— Pra mim já chega! — ele disse. — Eu só quero ir embora.
— Entendo. — O jovem mudou o semblante em seu rosto para uma tristeza tão falsa quanto seu sorriso. — Mas isso só seria possível com a carta "Saída livre do Mercado". — Ele se virou novamente para trás. — E infelizmente, o senhor Genivaldo não tem essa carta.
"AAAHHHH"
O coro veio dos clientes aglomerados que acompanhavam o espetáculo. Mas que inferno era aquele?
O jovem funcionário continuou:
— Mas já que chegamos até aqui, vamos ver o que as cartas guardaram para o senhor!
A caixa tinha um baralho na mão e o ofereceu para Genivaldo. De onde ela estava tirando aquelas coisas?
— Eu não vou tirar carta nenhuma! — disse o homem indignado.
— Tem certeza? Essa é a última etapa do jogo. O senhor está tãããão perto! — O funcionário se dirigiu ao público. — Acho que nosso cliente só precisa de um incentivo, pessoal. Que tal uma salva de palmas?
Um número cada vez maior de clientes aplaudiu de forma animada. Genilvaldo só queria acabar logo com aquilo e voltar para casa, então tirou a carta e a entregou para o funcionário.
— Inacreditável! — Uma expressão de surpresa falsa tomou a face do jovem. — A sorte parece estar ao seu lado, me caro Genivaldo. Esse desafio é fácil, muito fácil! O senhor só precisa dizer para o nosso público o que está escrito na carta.
Genivaldo olhou para a carta e descreditou em seus olhos. Ele não leria aquilo.
— Eu não vou ler isso.
— Mas é claro que não. — O jovem deu novamente a risada falsa que tanto incomodava o homem. — E eu nem pediria que o senhor apenas "lesse" isso. Não é mesmo, pessoal? É para ler... em voz alta. Gritar! Para que todo o mercado ouça. Para que todo o bairro ouça!
"Leia! Leia! Leia!"
O público começou a urrar. Genivaldo só agora notara que havia alguém com uma placa levantada, conduzindo as reações deles.
— Leia logo, Genivaldo!
A voz familiar chamou sua atenção. Genivaldo se assustou com a imagem do senhor de meia idade preso em uma jaula, guardado por alguém vestido de gorila.
— Donizete? — Genivaldo reconheceu o vizinho. — O você tá fazendo aí?
— Eu vim comprar leite e acabei assim. — O homem preso nas grades encolheu os ombros.
Inconformado com toda a situação, Genivaldo resolveu ceder. Encheu os pulmões de ar e gritou para todo o mercado ouvir:
— EU SOU UM URSO PELUDO!
Um sem-fim de palmas explodiu por todo o mercado. Genivaldo ganhara o desconto! Pagou pela calabresa e arredou o pé dali. Pensou em desistir do cigarro, já que havia perdido muito tempo. Mas a loucura do que acabara de acontecer exigia um cigarro. Ele parou na banca e comprou um avulso. Pediu o isqueiro emprestado e quando foi acendê-lo, um pó laranja estourou em sua cara.
— Mas que diabos... — ele praguejou tentando limpar o rosto.
— É isso mesmo que está pensando — disse o homem da banca. — O senhor está no Topa Tudo por Tabaco!
Seria um longo caminho de volta para casa.
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