Parte I


Minha vida começa bem, bem distante de onde eu estou agora. As vezes, no meio de um corre e outro, penso que a vida que eu achei que teria era mais fácil quando eram apenas devaneios da pequena eu.
Tá, tudo não é tãaaao ruim assim. E tenho certeza que não estaria melhor em Nagasaki, minha cidade natal. Minha rotina lá se dedicava exclusivamente a juntar o máximo de dinheiro possível para perseguir o meu sonho aqui, e mesmo que trabalhar em dois empregos fosse extremamente exaustivo, eu ainda tinha tempo para pensar como uma garota da cidade grande.

Nagasaki é uma ótima cidade para se viver se você quer que a sua vida seja resumida em cumprimentos amigáveis a qualquer hora do dia - a população é tão pequena que não era difícil encontrar a mesma pessoa várias vezes ao dia -, fazer os mesmos passeios e escutar as mesmas histórias. Mas para mim, que sempre sonhei em alçar novos vôos, aquela rotina costumeira era sufocante.
Minha mãe dizia que eu tinha pés de fada e, acreditando nela, vivi cercada pela magia do ballet. Enquanto as outras crianças se divertiam encontrando minhocas e outros animais de aparência molenga, eu passava as minhas tardes repetindo o mesmo dvd com as melhores apresentações de ballet clássico. No auge dos meus 7 anos, balançando as pernas e os braços como uma fada, eu tinha certeza que queria ser como aquelas mulheres que pareciam voar no palco.
Infelizmente, meus sonhos não eram iguais aos orçamentos bancários da minha mãe. E eu, como a criança compreensiva que era, aprendi desde cedo que as oportunidades só apareceriam para mim se eu fosse até elas. Por isso, na minha cidade natal, eu era conhecida como “a simpática garota que vendia deliciosos biscoitos sabor chocolate.”
Quando atingi a adolescência, parei com a venda de biscoitos e me aventurei em trabalhos de meio período na konbini. Aos finais de semana, tomava conta de algumas crianças, filhas de conhecidas da minha mãe, e à noite, me entregava as fantasias da minha vida em Tóquio. Passava noites em claro contando os trocados que acumulava, em uma lata bem grande com os dizeres “Para a futura bailarina mais promissora de Tóquio!”
Claro que por vezes nem tudo saiu como o planejado. Como na época que a mamãe ficou doente, e o sonho de mudar para outra cidade foi trocado por todas as preocupações que eu tive com o estado de saúde dela. Nas visitas ao hospital, passávamos a tarde assistindo os dvd’s e nas horas seguintes, mamãe gostava de ver o quanto eu estava progredindo. No meio de seu rosto cansado, podia ver a mágoa em suas palavras a cada “sinto muito por não poder ter te colocado em uma companhia profissional” e “você tem tanto talento, querida. Nunca se esqueça disso.” No fim do horário de visitas, nossos rostos ficavam avermelhados de tanto chorar, e eu sempre prometia voltar no dia seguinte.

Um dia, o dia seguinte acertou o meu coração como uma flecha traiçoeira e impiedosa. Minhas pernas fraquejavam e o meu corpo era amparado pelas mãos gentis do médico, e ainda hoje, não consigo me lembrar das palavras dele depois que eu soube que a minha mãe tinha partido. Naquele momento, era como se a minha alma tivesse sido levada para um lugar além do tempo-espaço, de onde eu nunca mais queria sair. Mas precisava.

Não ter mais a presença da minha mãe nesse mundo era uma ferida diária que a princípio, me recusei a aceitar a sua presença. Os vizinhos eram muito prestativos, do tipo que passaram a ser inconvenientes na segunda semana do meu estado deplorável. Sempre ficavam mais tempo em casa do que realmente deviam, recitavam palavras de incentivo, diziam em tom reconfortante que a vida precisava seguir. Por dentro, tudo o que eu queria era que as vozes sumissem e junto delas, minha existência sumisse também.

O ballet deixava de ser um sonho, dando lugar ao pesadelo toda vez que a lata cintilante aparecia ao alcance dos meus olhos. Eu sabia que estava prestes a sucumbir naquela cidade onde qualquer lugar lembrava a energia solar da minha mãe, mas continuar aquele sonho, que partira dela, sem a sua presença parecia injusto. Não queria ter a sensação de que estava vivendo para além dela, mas sabia que de onde quer que ela estivesse, estava prestes a puxar a minha orelha com a mínima possibilidade de desistir.

Sempre vi em filmes teen o clichê da garota caipira que se apaixona imediatamente pela cidade grande. Aos 17 anos, eu era essa garota. Tóquio era gigante e eu, com meus 1,58cm de altura, parecia um gafanhoto prestes a ser esmagado por todas aquelas coisas chiques que eu via na TV.
Bem diferente de um filme da sessão da tarde, minha mudança para Tóquio não veio acompanhada de uma ultra transformação nem de uma fada madrinha que tornasse a minha nova rotina mais fácil. Ninguém te fala o quão absurdamente caro é viver na cidade grande, nem que a maioria das pessoas não são tão amigáveis como nos comerciais. A vida na televisão é uma farsa.

Mais uma vez, meu sonho tolo de me tornar uma bailarina promissora era colocado de lado pela necessidade de me sustentar. É claro que eu ainda tinha tempo para sonhar nos horários em que eu provavelmente deveria estar dormindo, isso quando não recebia reclamações da dona do quartinho que eu havia alugado. A senhora de meia idade não era muito fã “dos meus passos barulhentos”, e ela ainda completava dizendo que saltitar não ajudaria a pagar as contas.

Em uma parte ela tinha razão. Ao final do meu primeiro semestre em Tóquio, eu tinha pendências em três bancos diferentes, e arriscava ficar pendurada no quarto. Quando pensei que a minha vinda para aquela cidade consumista havia sido um erro e que eu nunca deveria ter saído da minha cidadezinha acessível, encontrei em um dia de chuva - na verdade, não encontrei. O papel coberto de lama caiu na minha cara. - um folheto que parecia ter caído dos céus - na verdade, a chuva havia desgrudado o folheto de um poste. -
Depois de esbravejar contra o universo por ter literalmente me jogado na lama, parei para observar o conteúdo pegajoso. Meus olhos se iluminaram com os dizeres embaçados, mas que nada nesse mundo os tornariam ilegíveis, escrito de uma forma bem grande: “Conservatório de Artes de Tóquio”. O restante infelizmente estava molhado demais para permitir a minha leitura, e nem por isso eu desisti. Assim que cheguei em “casa”, antes mesmo de retirar as roupas encharcadas - e acreditem, eu ouvi muitas reclamações da senhora Atsuko naquele dia. -, recorri ao Google para buscar mais informações. O Conservatório era o meu sonho quando eu ainda nem sabia o significado daquela palavra, e quando eu soube, veio também a realidade dolorosa do quanto era custoso estar ali. Eu sempre estava de olho nas redes para acompanhar o dia a dia dos alunos e por 5 minutos me imaginar no meio deles, mas naquele dia, aquele mesmo dia em que achei que voltaria para Nagasaki afundada em dívidas e lama, o universo parecia sorrir para mim.

Qual era a chance do Conservatório de Artes de Tóquio estar fazendo um concurso nacional em busca de novos talentos, logo quando euzinha estava prestes a desistir? Lendo em meio a toda empolgação, descobri que as inscrições estavam abertas a todas as pessoas que tinham curiosidade - sim, com essas palavras - e vontade de aprender. O que significava que não precisava ser alguém com um currículo avaliado pelos melhores bailarinos do país, nem uma longa recomendação das maiores companhias da cidade. As melhores apresentações ganhariam uma bolsa integral de meio período, além de estar em meio aos melhores professores de dança de toda Tóquio.

Gritei tão alto e por tanto tempo que dessa vez, a senhora Atsuko teve razão nas reclamações. Enquanto eu pulava e gritava em meio às lágrimas e cantares de “eu consegui”, a mesma empolgação deu lugar ao pânico frio que surgia no meu estômago, subindo até fechar a minha garganta. Eu me considerava boa pelas horas em que passei treinando em frente a uma TV, mas isso nem de longe se comparava a quantidade massiva de garotas que tiveram a oportunidade de serem tuteladas por professores especializados. Naquele momento, a mini Nobara feliz parecia se liquefazer diante da versão racional de mim, que queria apenas virar um monte de nada ao se enfiar nas cobertas.

Passei um dia inteiro trancada no quartinho até a senhora Atsuko invadir a minha depressão e me arrancar de lá a força. Ela era muito, muito dura e até hoje é essa a impressão que eu tenho dela. Mas naquele momento, quando eu achei que não teria nenhuma chance contra a experiência das outras pessoas, foi ela quem disse - de um jeito bem ríspido, pra não perder o jeito -, que eu não devia desistir do meu sonho por causa de um achismo meu. Também disse que eu precisava pagar o aluguel, então não podia me dar o luxo de passar a vida enfiada em um quarto.

De volta ao jogo com o choque de realidade da senhora Atsuko, minha vida parecia andar ao contrário com a quantidade de coisas que eu fazia ao longo de 24 horas. Treinos, trabalho, trabalho, treino. Não sei dizer se as horas que eu dormi nesse período completam os dedos de uma mão.
Às vezes, a senhora Atsuko fechava a barraquinha mais cedo para me acompanhar no treino. Em outras vezes, ela levava um grupo de senhoras, amigas dela, para avaliarem a minha dança. Algumas delas já haviam praticado ballet na juventude, e a cada passo mal executado, duas delas balançavam um leque pesado na minha direção, me fuzilando com o olhar. Enquanto eu girava até ter vontade de desmaiar, elas conversavam sobre coisas triviais como: “vocês viram que o senhor Mikage trocou o perfume? Quando ele estava com a senhora Hori, usava outro.” Nas poucas vezes em que eu parava para acompanhar uma fofoca, a mais enérgica delas batia com o leque na minha perna, dizendo que eu deveria levar aquilo a sério caso ainda sonhasse com a vaga no Conservatório.

Com a proximidade do concurso, sentia vontade de vomitar a cada menção dele. Meu consumo de alimento era igual a minha vontade de existir naquele momento, ou seja, zero. Alguns dias antes da grande apresentação, parei na emergência e precisei ficar a noite no soro. Quando voltei para casa, a senhora Atsuko disse que se eu não quisesse dar trabalho para ela, era melhor que eu comesse. Assenti e comi satisfeita o ensopado quentinho que ela havia feito.

O Conservatório era tudo, absolutamente tudo o que eu imaginava vendo na internet e nos meus sonhos. Abismada, esqueci momentaneamente de todo o nervosismo do dia anterior para contemplar as figuras dispostas em quadros enormes, imaginando que um dia o meu retrato estaria ali, grifado com cor de ouro. Todo o espaço era um convite perfeito para que eu saísse saltitando pelos corredores, mas me contive quando a sensação fantasmagórica de pânico chegou a minha corrente sanguínea, me situando do lugar onde eu estava.
Me sentia julgada até mesmo no mínimo ato de respirar. Seguindo a massa de pessoas, tive vontade de me esconder em uma sacola a cada vez que algum daqueles olhos arrebitados me olhavam de cima a baixo, parando nas minhas vestes. Ninguém havia me avisado que era preciso ir como uma candidata ao Miss Universo, mesmo que internamente eu não estivesse achando a minha combinação de saia plissada e camiseta azul com botões tão ruins assim.

O palco era exatamente como eu sonhei. As luzes, o cheiro típico do emborrachado das sapatilhas. O que não era exatamente como eu pensava era a sensação de perigo iminente que eu sentia a cada nome que era chamado, nem a face de decepção das concorrentes que já haviam se apresentado. Pisquei e tentei colocar na cabeça que aquilo era apenas nervosismo, no entanto, aquele pensamento animador morreu em meu cérebro assim que os dizeres: “Kugisaki Nobara, próxima candidata” acertava a minha autoconfiança sem nenhum aviso prévio.

Nitidamente, ser julgada a cada passo que eu ensaiava não era nada como eu imaginei. Diferente de quando eu dançava para a mamãe, as pessoas que me julgavam naquele momento não moviam um mísero músculo. Não haviam incentivos como “você está indo muito bem, querida!” tampouco um “uma aluna como você era o que estávamos procurando para a Companhia.”
Os olhares eram severos e, quando acabei, exausta o bastante para parecer que um caminhão havia passado por cima de mim, não houve mudança na expressão apática dos professores. Nem mesmo um “obrigada, entramos em contato, mesmo que talvez nunca”. Saída a minha insignificância, voltei para a sala compartilhando a expressão derrotada com as outras. No meu caso, mais do que a derrota, havia aquela sensação amarga que reconhecia que ali definitivamente não era o meu lugar.

Meses depois, quando eu já me preparava para pedir o meu emprego de volta para o senhor Senshi, em Nagasaki e talvez procurar novas crianças barulhentas para tomar conta, fui surpreendida com um e-mail que novamente mantinha viva a minha existência naquele lugar. Antes de abrir - e não consegui fazer isso por 5 minutos -, já surtava com o nome do remetente. Continuei gritando até ser tirada do meu estado eufórico pela senhora Atsuko, que colocava na minha cabeça a desagradável ideia deles terem enviado um e-mail educado que apenas me informava que eu não estava apta a participar da Companhia. Parei de gritar, aceitando a ideia contrária e quase me entregando aos prantos, juntando toda a coragem para clicar na mensagem e ver nas poucas linhas todo o resultado do meu esforço. Gritei novamente, abraçando a senhora Atsuko e mesmo que ela diga que esse momento nunca aconteceu, naquele momento nos abraçamos e pulamos como nunca. 

Naquele dia, chorei um pouco ao pensar que a minha mãe não teria a oportunidade de me acompanhar nas aulas, nem escutar as vivências árduas que eu teria naquele período. Dormi abraçada com o lenço que ela usava na cabeça, na época em que ficou doente. Estranhamente, ainda tinha aquele cheirinho gostoso de lavanda, que automaticamente levava todas minhas boas memórias até ela.

Cinco meses depois, iniciei os meus estudos no Conservatório de Artes e junto dessa nova fase da minha vida, também chegava a hora de me despedir da senhora Atsuko. Não totalmente, porque ainda faço questão de visitá-la na sua barraquinha de Okonomiyaki de vez em quando, e ela ainda me pergunta se eu consigo pagar as minhas contas. Mas eu precisava de outro canto para morar, um que preferencialmente tivesse mais liberdade. Ao longo da minha preparação para o início das aulas, procurei anúncios na internet de apartamentos para alugar ou alguém que estivesse disposto a dividir as contas comigo, e para a minha sorte, naquele momento havia um certo garoto de cabelo rosa que estava passando pelas mesmas coisas que eu.

Itadori era muito, muito desorganizado. Do tipo que deixa a toalha molhada em cima da cama e deixa a pasta de dente aberta em cima da pia. É claro que aquilo me irritava - ainda me irrita - mas ele compensava sendo um ótimo amigo que me ouvia falar de ballet e da minha ansiedade com as aulas quase 24 horas por dia. Ele também estava passando por algo parecido, não com ballet, é claro. Itadori se preparava para começar a Faculdade de Artes Plásticas, e às vezes, quando eu não estava imersa em empolgação, visitava galerias de artes com ele e o ouvia falar por horas sobre cada técnica utilizada em um quadro.

Com nossos gostos tão semelhantes, não era difícil que em poucos meses nos tornássemos amigos inseparáveis. Junto com o namorado dele, Megumi, formávamos um trio imbatível de amigos que virava a noite falando de ballet, arte e alguma fofoca cabeluda da faculdade deles. O máximo de amizade que tive eram os conhecidos do colégio primário de Nagasaki, e ficar de bobeira com os meninos era tudo o que a pequena eu que sonhava em ser tão descolada quanto as pessoas da cidade grande sempre quis.

Falando assim, parece que a minha vida é resumida apenas pelo ballet, e na verdade, talvez seja. Gosto de sair e aproveitar as noites de Tóquio como toda jovem-barra-adulta da cidade, mas confesso que aprecio mais as noites em que passo ensaiando algum movimento novo, ou nos eventos diários do meu jogo online favorito. Não sou uma nerd nem nada do tipo, é só que eu me encontrei assim, e por enquanto, não tenho pretensões de mudar.

Sabe quando eu disse que a minha vida era mais fácil quando eu apenas ansiava por ela? Então.
O primeiro dia de aula no Conservatório tinha tudo para ser perfeito. O dia estava lindo, eu estava acordada desde cedo e com todo o uniforme devidamente preparado. Já imaginava chegar e ser a próxima Agripina Vaganova, mas não foi o que aconteceu. Pior do que aura do concurso, o clima denso e os olhos fuzilantes murchavam cada molécula animada do meu corpo antes que eu tivesse a chance de me situar.
Estar apta a ganhar uma bolsa não significava que eu estava no mesmo nível que aquelas garotas. Se elas eram nível A+, eu deveria ser Z-. Recebi inúmeras reclamações e a todo momento, a aula era interrompida por atrasos de minha parte. E cada vez que isso acontecia, eu sentia a minha bochecha ficar quente com os cochichos e as risadinhas direcionadas a mim.
Ao longo de um mês, já era o suficiente para que eu ficasse próxima ao estado de Coringa. Havia perdido as contas de quantos “Kugisaki, concentre-se!” ou “Kugisaki, seus passos estão atrasados!” havia ouvido, assim como não sabia se ainda tinha fôlego para ouvir. A cada vez que eu chegava com a face da derrota em casa, era recebida com a face sorridente do Yuuji, e uma massagem nos ombros seguida de um: “relaxa, garota, as coisas vão dar certo.”

E toda noite, eu rezava e pedia que o universo escutasse aquelas palavras. Mas, se a intenção era dar certo, com o passar do tempo e o aumento no nível das aulas as coisas ficaram mais complicadas. Principalmente, com a adição de uma figura que me causava arrepios apenas ao ter aqueles olhos felinos mencionados na minha mente.

Zenin Maki. A garota perfeita. A bailarina que nunca errava, aquela que tinha as melhores recomendações e era até mesmo cotada para ser a solista do Grande Festival. Aquela garota era tão, tão perfeita que me irritava. E como ela sabia da fama, não fazia questão de demonstrar que adorava navegar sobre ela.

— O que aconteceu? É a Zenin de novo?

Yuuji, que estava na porta do meu quarto, me pegava arrumando freneticamente as coisas enquanto eu fazia uma sessão de “momento revelações” da minha vida. Ele sabia do meu tique de arrumação e o gatilho acionado quando eu ficava nervosa, e como nesses últimos meses metade do meu nervosismo provém dos pensamentos relacionados ao projeto de Barbie de cabelo verde, era questão de tempo para o meu melhor amigo ligar as coisas. Mesmo assim, criei um bico nos lábios e neguei.

— Que? Claro que não. Isso não tem nada a ver com ela. — Resmungando, levantei uma almofada, erguendo na direção dele. — Tá vendo isso? Tá cheio de poeira.

— Nobara.. — Advertindo, Itadori cruzou os braços, mostrando que já me conhecia mesmo no pouco tempo juntos. Cedendo, larguei a almofada em cima da cama, juntamente com o meu corpo derrotado.

— Acredita que ela disse que eu ainda não tenho técnica o suficiente para participar do Festival de Primavera? E não foi só um “foi mal, não tem vaga pra você.” Ela me esculachou! — Mordi o interior dos lábios, mantendo frescas na memória as palavras da garota. Quando a aula terminou e estávamos nos trocando, começamos a conversar sobre os próximos festivais e compartilhar expectativas sobre eles. Enquanto eu dialogava com as outras meninas, a Zenin simplesmente me cortou, dizendo com aquela vozinha esguia: “por quê você está nesse assunto mesmo, Kugisaki? Pelo o que eu entendi, você não serve nem mesmo para dançar em uma peça infantil.”

É claro que eu não fiquei calada e tentei argumentar o quanto eu estava melhorando ao longo da minha experiência no Conservatório e que eu merecia sim uma oportunidade de participar desse festival, caso contrário eu nunca teria chance de mostrar o que sou capaz de fazer. No meio da minha fala enraivecida, mencionei o quanto a minha mãe me achava boa, e que eu devia isso a ela. As próximas palavras daquela patricinha acertavam o meu ponto mais fraco.

Desculpe, queridinha, mas quem é a sua mãe mesmo? Ela é alguma expert contemporânea? Olha, todo mundo aqui é ótimo aos olhos dos familiares. Eu mesma quando era assim, do seu nível, acho que eu tinha uns.. 5 anos? Não sei, minha mãe me achava ótima. Mas é claro que eu era patética naquela época.”

— E o ódio é que ela sempre fala com um sorrisinho que parece transformar tudo o que ela fala em uma grande brincadeira, mas quem consegue olhar por trás daquela máscara de boa garota, sabe o quão perversa ela está sendo. — Continuei, apertando a almofada com força entre os meus dedos até perceber o que estava fazendo. Se aquela almofada fosse o rostinho delicado da Zenin, ela estaria com sérios problemas.

— Caralho, que babaca. — Balançando a cabeça em negação, Yuuji se sentou ao meu lado, levando as mãos até os meus ombros para mais uma daquelas massagens extremamente relaxantes. — Se fosse eu, sabotava o uniforme dela.

Ri com o pensamento, agora mais relaxada pela massagem que o meu melhor amigo fazia. Mas, ser malvada como a Zenin não estava nos meus planos. Queria acabar com ela do jeito certo, e isso só aconteceria quando ela fosse obrigada a reconhecer o meu valor como bailarina. Isso ainda aconteceria.

— Que horror, Yuuji! — Dei um tapinha fraco em seu braço, estalando os lábios em seguida. — Você faz isso com os desafetos da faculdade?

— Tenho vontade. — Sibilando, o garoto tinha uma expressão travessa no olhar. — Tem uma caloura lá que se ela continuar se achando muito, vai receber tinta óleo no cabelo.

Ri mais ainda, me lembrando do por que eu amava Itadori Yuuji. Parei de rir para me levantar rapidamente ao escutar a notificação do meu despertador, imediatamente colocando o modo jogadora em ação.

— Ok, ok. — Yuuji disse suspirando, derrotado. — Agora é a hora que você me troca por esse jogo xexelento.

— Ué, o Megumi não vem hoje? — Indaguei, arqueando as sobrancelhas. Podia contar nos dedos os dias em que o namorado do Yuuji não estava aqui em casa, e ainda sobrava. 

— Só amanhã. — Semelhante a uma minhoca enrugada, Itadori se arrastava para fora do quarto, com uma expressão pidona que traduzia a vontade que ele tinha de ficar. Não cedi, o horário do meu jogo é sagrado. — Ele vai ter que ficar até mais tarde no trabalho.

— Então vai maratonar algum episódio de RuPaul's Drag Race ou Keeping Up with the Kardashians. — Escutando um estalar de lábios, acenei repetidamente até que Itadori deixasse o quarto. Sozinha, peguei meus fones de ouvido e pluguei no computador, logo sendo transportada para o mundo mágico do jogo online que era a minha companhia noturna desde que comecei a dividir o aluguel com o Yuuji.

Esperei a tela de jogo carregar, ansiosa para ver qual era o evento do dia. Geralmente, tínhamos que derrotar algum chefão para dropar itens, mas quanto maior o nível, maior seria a dificuldade para derrotá-lo. Tudo bem, o contexto não se difere muito da grande maioria dos jogos onlines de hoje em dia, mas esse tinha um significado especial para mim, principalmente quando passei a fazer parte de uma guilda.

@makzz: Oi! Achei que você não entraria hoje.


Sorri com o ícone de mensagem. E não demorei muito para responder.

@n0bsx: Oi! Estou tão cansada. Mas não podia perder o drop de hoje.

Minha amiga virtual demorou um pouco para responder. Enquanto a notificação de mensagem não aparecia, aproveitei para saudar o restante do pessoal. Eu não tinha tanto contato com eles, como tinha com a makzz, mas eles eram legais.

@makzz: Mesma coisa por aqui. Então, o que você fez hoje?


@n0bsx: Além de aguentar grosseira gratuita? Acho que o de sempre.

@makzz: Eita, o que aconteceu?

Suspirei. Eu não havia contado para a makzz que eu estudava no Conservatório, sou meio paranoica para compartilhar detalhes da minha vida com desconhecidos, e mesmo depois que nos tornamos amigas, decidi ocultar essa informação. Tipo, para quê contar, né? Vai que ela fosse uma senhora Atsuko da vida que achava que não dava para dançar e pagar contas. Como eu não queria ter essa decepção, resolvi deixar tudo como sempre foi.

@n0bsx: Algumas coisas da escola. Me aborreci com a garota que não vai muito com a minha cara, mas é bobagem. E você, o que fez hoje?

@makzz: Caramba, que chato. Sinto muito por isso, você parece ser uma pessoa tão legal.
Meu dia também não teve nada demais, mas estou pensando em contar para a minha mãe sobre a minha orientação sexual. Me senti mal quando ela insinuou hoje no jantar, que eu faria um ótimo casal com o meu vizinho.

Parei com os dedos na tecla de mensagem. Como eu disse, makzz e eu, apesar de não revelarmos muitos detalhes da nossa vida pessoal, conversávamos sobre tudo. Ela sabia sobre os meus acessos de heterossexualidade compulsória, assim como sabia do momento em que tive certeza que eu não conseguia manter os relacionamentos com garotos, porque eu não gostava de garotos. Eu também sabia dos dela, e sabia da certeza que ela tinha, mas diferente de mim, ela ainda precisava viver atrás de uma máscara, por causa da opinião da família. Às vezes, a gente virava a noite pensando em como o mundo seria caso cada pessoa tivesse a liberdade para amar quem quisesse. Makzz me dizia que ela queria muito conversar com a mãe do mesmo jeito que elas conversam agora, no entanto, ela sabia que a interação mudaria a partir do momento em que a mãe soubesse do seu interesse por garotas.

@n0bsx: Te desejo toda sorte do mundo. Vou ficar torcendo aqui para que dê tudo certo entre vocês duas <3

@makzz: Ah, nobs, você é maravilhosa. Eu não falo muito na guilda, mas com você eu sinto que eu tenho liberdade para falar sobre tudo.


@n0bsx: Eu também sinto isso com você! Sou muito sortuda por ter te encontrado aqui no jogo.

Sorri feito uma boba para a tela do computador, só parando quando ouvi o grito de Itadori.

— E então? Como tá a conversa com a sua namoradinha virtual?

— Ela não é a minha namoradinha virtual! — Retruquei, fazendo bico mesmo que ele não pudesse ver. — E está muito boa para a sua informação.

Recebendo um xingamento em resposta, ri e voltei a conversar com a makzz, enquanto a gente se empenhava em derrotar o boss. Desde que a conheci na guilda, fazíamos par em todos os eventos patrocinados pelo jogo. Minha classe era do tipo suporte, e a dela, do tipo lutador. A gente era um par perfeito.

— Vem cá, é sério que você nunca pensa em saber como essa makzz é? Nome, rosto, nada?

Enquanto Itadori passava uma grande quantidade de pasta de amendoim no pão de forma, eu ficava pensando nas gotículas que caíam na bancada, e que ele certamente não limparia. Suspirei, evitando pensar no meu tique de limpeza, passando a me concentrar na pergunta.

— Ah, não sei.. Acho que sim. — Enquanto roía uma unha, pensei nas conversas com a makzz e o quanto eu gostava dela. Nos últimos meses, além de Yuuji e Megumi, era makzz que me dava algum tipo de conforto diante dos dias estressantes que eu tinha cotidianamente. — Mas esse assunto nunca foi abordado entre nós duas. Acho que estamos bem assim.

— Hm, seei.. — Deixando a colher suja dentro da pia, Itadori levou o pão mergulhado em pasta de amendoim até os lábios. Uma certa quantidade respingava em seu pescoço. — Vai que ela seja o seu par perfeito e você está aí se contentando em só conversar com ela virtualmente.

— Ai, aí.. — Sibilante, abri um sorrisinho irônico enquanto me dirigia a geladeira para pegar um copo de água. — Você fica tão meloso quando o Megumi não vem..

— Ah, vai a merda. — Mostrando o dedo do meio, Itadori terminava de mastigar, lambendo o resquício dos dedos. Bocejando, decidi que era hora de encerrar aquela conversa, não sem antes lembrá-lo de deixar a bancada limpa. — Eu sei, chata. Vou limpar antes que você tenha um treco.

Agradecida, acenei sonolenta, deixando toda a bagunça de Yuuji para trás. Antes de me enrolar embaixo das cobertas e me entregar completamente ao sono, pensei em makzz e na conversa difícil que ela teria pela frente. Desejei de verdade que tudo desse certo para ela, e que ela não perdesse o amor dos pais apenas por decidir quem deve amar.

No dia seguinte, acordei aos tropeços, lutando contra a vontade esmagadora de ficar na cama. Havia perdido 5 minutos no intervalo entre um despertador e outro, o que significava que eu tinha menos tempo que o normal para ficar pronta.
Sai ainda arrumando a bolsa para me certificar de que nada havia sido esquecido, e em tempo recorde, cheguei à estação e peguei o primeiro trem, me apertando entre os passageiros. Quando sai, praticamente fui cuspida para o lado de fora, e mesmo que eu não pudesse ver, sentia o meu cabelo em estado de choque.
Subi as escadas fazendo mais barulho do que eu realmente pretendia, e quando cheguei, recebi os mesmos olhares ameaçadores de todos os dias. A diferença, é que naquele dia eu estava dois minutos atrasada.

— Kugisaki, atrasada! — Severa, a senhora Laviolette mal olhava para mim quando levantava a palma esquerda, indicando que todos deveriam parar. Até ensaiei um pedido de desculpas nos lábios, mas ao notar os músculos faciais contraídos da senhora de cabelos grisalhos, achei que era melhor apenas aceitar esse fato em silêncio.

Suspirei e tentei me focar nos minutos finais do aquecimento, mesmo sentindo que todos os olhares dos presentes estavam cravados em mim. O ato de levantar e abaixar a minha perna parecia penoso a cada vez que a minha mente era levada para os olhares, e até mesmo o ato de curvar o corpo era algo de outro mundo, ocasionando-me inúmeras chamadas pelo modo como eu estava me aquecendo.

Na aula, engoli todo o sufocamento que eu sentia a cada vez que a senhora Laviolette pedia mais força, mais concentração, mais mais e mais. Meus pés pareciam coreografados a cada giro, cada volta em meu próprio eixo, e ainda assim não parecia o suficiente. Não podíamos parar, em meio a todos os passos coordenados, eu ainda sentia que estava atrás de todas elas. Meu pescoço borbulhava e meu peito rangia com a pressão quase escassa de ar. 

Estique mais! Por que está fazendo o piquet simples!?”

Exausta, deixei o corpo pender sobre as barras no final do treino. Meu desempenho havia caído no final da aula, e o motivo latejava os meus pés, fazendo-me morder os lábios pela dor. Naquele treino, havia excedido o limite em busca da perfeição, e meus pés acabaram pagando o preço.

Acenei receptiva para todas as meninas que saíam, e pouco a pouco, a sala se esvaziava. Olhei de soslaio para a conversa da Zenin com a senhora Laviolette, e com a saída da mais velha, achei que ficaria sozinha para olhar a situação do meu pé. Mantive os olhos baixos quando a garota de cabelo verde passou por mim, dirigindo-se à bolsa dela.

— Seu desempenho caiu na metade da aula.

— Ah, é mesmo? Você não devia estar mais preocupada com o seu próprio desempenho!? — Retruquei, irônica.

— Se você não atrapalhasse tanto, talvez. — Com um risinho estalado, o projeto de Barbie perfeita aproximava-se, caindo a atenção para o meu corpo. Naquele momento, desviei o olhar, evitando fisgar na mente o cheiro adocicado de seu perfume. — Não é ferrando o seu pé que você vai melhorar a sua técnica.

— Do que você está falando? — Sugeri, me encolhendo. Ela estava próxima demais e eu definitivamente não queria olhar para ela, mas a garota parecia um imã hipnotizante. Ela ainda olhava para o meu corpo quando nossos olhos se cruzaram.

— Vem, eu cuido disso. — Estalando os lábios, Zenin saia da minha linha de visão, sentando-se ao meu lado. Como eu estava cansada demais para lutar contra, desabei do lado dela. — Esse tipo de sapatilha não permite que os movimentos dos seus pés sejam muito agressivos.

— É mesmo, senhora sabe-tudo? — Rosnei, evitando emitir um chiado quando os dedos longos da Zenin entraram em contato com os meus pés cheio de bolhas.

— Ei, dá pra ser mais agradecida? Eu estou tentando te ajudar. — Revirando os olhos, deixei que uma risada aguda escapasse dos meus lábios. Zenin Maki não ajudava ninguém sem uma intenção maliciosa por trás.

— Será que eu devo acreditar que essa ajuda não tem um custo?

— Hmmm, talvez. Você está na mesma Companhia que eu, e mesmo desajeitada, irá fazer falta caso se ausente. Então, é só por isso que eu estou me prestando ao papel de te ajudar, pensando no coletivo.

Mordi o interior dos lábios, contendo um xingamento. Eu sabia que aquela cobra não deixaria barato, sem me alfinetar. Tive ímpeto de afastar os meus pés, mas parei com o ato assim que vi a sua concentração ao pegar o algodão e embeber com o medicamento.
Inalando o cheiro medicinal, deixei que o silêncio se instaurasse entre nós duas, observando- a limpar delicadamente os ferimentos. De perto, ela parecia inofensiva. Tão inofensiva que chegava a ser atraente. Deixei o meu foco em seus dedos, nas unhas pintadas de nude, na tatuagem de raposa em seu braço. O pequeno universo gravado na região da clavícula, e o quão delicados eram os seus traços agora que eu estava vendo de perto. O nariz perfeitamente desenhado, os lábios pintados de vermelho, a ponta arredondada das orelhas cobertas com brincos de lua. Respirar o mesmo ar que Zenin Maki era sufocante.

Em certo momento, paramos de implicar uma com a outra e apenas ficamos ali, em silêncio, naquela sala branca enorme, que parecia engolir todas as nossas desavenças. Zenin envolvia o meu dedo mindinho com um curativo, mas os seus dedos faziam aquela ação no automático. Os olhos esverdeados estavam cravados nos meus, e em um movimento extremamente perturbador para os meus sentidos, caíram na altura dos meus lábios, ameaçando cessar a distância que os separavam.

— D-desculpa! — Visivelmente constrangida, uma mulher tossia envergonhada no meio da porta, nos separando de supetão. — Achei que a aula da senhora Laviolette já havia acabado.

— Não, desculpa a gente por estar ocupando a sala. — Sorrindo simpática, troquei as sapatilhas pela sandália que eu havia levado, me separando o máximo que eu conseguia da Zenin. Não havia explicação para o que havia acabado de acontecer entre nós duas, tampouco a possibilidade de qualquer sentimento que fosse diferente de aversão àquela garota. — E pode deixar, bonequinha, não vou te atrapalhar. Não precisa mais fazer a linha boazinha comigo.

Piscando um dos olhos, deixei a sala em passos rápidos, levando uma mão à testa. Quando eu comecei a achar que Zenin Maki podia ser minimamente atraente? Eu devia estar ficando louca, essa era a explicação.



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