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❛❛ , ⠀0 0 0 𖦹 P R Ó L O G O
( ⠀gotham⠀ )⠀ ✦ primeira impressão
As algemas se fecharam em seus pulsos num estalo seco.
Iván tentou se desvencilhar, mas os policiais o seguraram firmemente, empurrando-o contra a parede fria do beco. O cheiro de água estagnada e ferrugem impregnava o ar de Gotham, misturando-se ao suor que escorria pela sua testa.
Ele esperou ansiosamente pelo momento em que isso aconteceria.
Sua respiração cada vez mais entrecortada enquanto seus olhos castanhos subiam até os telhados escuros, onde a sombra se destacava contra o nevoeiro sujo da cidade. Aquele maldito símbolo vermelho no peito reluzia à luz pálida dos postes. Robin.
O maxilar se contraiu com força lutando, em vão, contra o aperto dos policiais. Quando Iván ergueu o olhar de novo, Tim Drake já havia desaparecido do local.
Ele fez o que tinha que ser feito.
Mas, o que ninguém sabia, naquela noite, era o que veio antes dela para que tudo os levasse até ali.
Os risos dos garotos mais novos do lar católico para meninos St. Swithin's, quebrou o silêncio que as freiras tanto prezavam pela manhã. Iván mal teve tempo de reagir quando sentiu as mãos ansiosas arrastarem-o pelos corredores sem cor e pouco iluminado.
Aos 21 anos, ele ainda se sentia um pouco um estranho ali, embora tivesse deixado o orfanato quatro anos antes, quando completara a maioridade. Voltara como voluntário, um gesto impulsivo, talvez um pouco ingênuo, de tentar devolver o que o lugar lhe dera... ou talvez o que o lugar nunca soubera oferecer.
E bom, os garotos o respeitavam de uma forma que nem os padres conseguiam. Eles se sentiam mais à vontade com Iván do que com qualquer um de batina. Ele sabia como ninguém o que era ser invisível ali, e agora, como um quase-fora-da-lei do orfanato, os garotos pediam ajuda sempre que precisavam das suas artimanhas.
― Iván, precisamos que entre na cozinha sem que a Sra. Hills o veja... Ela se recusa a nos dar os doces que conquistamos com tanto esforço ― disse um deles, o mais atrevido, enquanto lutava para amarrar sua gravata com mãos trêmulas. ― E se não ajudar, vamos dizer que você está fumando nos jardins de novo durante as pausas...
Iván teve que morder a língua para não deixar a risada escapar. Era impossível não se sentir tocado por aqueles garotos, cada um com seu jeito malandrinho de se esquivar dos problemas e arranjar mais dele, assim como ele mesmo fora.
― As chantagens são para usar contra os seminaristas, não comigo ― Iván respondeu, tentando manter o semblante sério, mas falhando miseravelmente ao ver os sorrisos se espalharem pelos rostos magros dos meninos, como se eles tivessem acabado de ganhar o maior prêmio do mundo. ― Tá bom, tá bom, já estou indo.
Ele se deixou levar, arrastado pelos corredores que conhecia tão bem. As paredes eram cobertas por fotografias antigas de padres e bispos que já haviam passado por ali, homens de rostos severos e olhos distantes, como se estivessem sempre à espera de algo que nunca chegava. Iván não se importava com eles. Ele se importava com os garotos.
A cantina era um caos organizado todas as manhãs. O cheiro de café requentado e madeira envelhecida se misturava ao burburinho dos garotos, que estavam mais agitados do que o normal, e isso provavelmente se devesse a velha catedral de Gotham que organizaria em breve um evento comunitário. Algo sobre arrecadar fundos para manter o St. Swithin's funcionando.
― Vamos, Iván! ― Um dos garotos puxou sua manga, impaciente. ― A Sra. Hills vai perceber que sumimos!
― Se me apressarem, eu fico sem cigarro e vocês sem doces, é isso o que querem? ― Os garotos se entreolharam, hesitantes, e então balançaram a cabeça em sincronia. ― Foi o que pensei.
Com passos silenciosos, Iván deslizou pelo corredor que levava à cozinha, os garotos seguindo à distância, escondidos atrás de uma pilha de caixas velhas. Eles observavam, fascinados, como se estivessem assistindo a uma cena de um filme de ação.
Iván virou-se para eles, fez uma careta engraçada e colocou um dedo sobre os lábios, num gesto exagerado de pedir silêncio. Eles cobriram as bocas com as mãos para abafar as risadas.
A cozinha estava iluminada por uma única lâmpada pendurada, que balançava levemente. O cheiro de canela e açúcar queimado impregnava o ar toda manhã, e Iván sentiu o estômago roncar. Ele sabia que a Sra. Hills, a cozinheira-chefe, era uma mulher meticulosa e protetora de seus doces desde que se lembrava. Mas ele também sabia que ela tinha uma queda por histórias bem contadas ── e Iván era expert na arte de enrolar as funcionárias do orfanato.
Ele se aproximou do balcão, onde um pote de vidro cheio de biscoitos e balas estava estrategicamente posicionado, como uma isca. Estendeu a mão, mas antes que pudesse tocá-lo, escutou o arranhar de garganta.
― E o que você acha que está fazendo, Iván?
Iván congelou.
A Sra. Hills estava parada na porta da despensa, os braços cruzados e o olhar carrancudo que sempre carregava consigo. Ela era uma mulher robusta, com cabelos grisalhos presos em um coque apertado e um avental que parecia ter visto mais batalhas na cozinha do que qualquer outro chef 5 estrelas Michelin.
Ele se virou lentamente.
― Sra. Hills! ― exclamou, colocando uma mão no peito, como se tivesse sido pego de surpresa. ― Eu estava apenas... inspecionando a qualidade dos doces. Para garantir que estão à altura do seu padrão, é claro.
Ela arqueou uma sobrancelha, claramente não convencida.
― Inspecionando, é? ― Ela deu um passo à frente, e Iván sentiu o instinto de recuar, mas manteve a pose. ― E os garotos lá atrás das caixas? Eles também estão... inspecionando?
Iván olhou para trás, onde os garotos estavam prontos para correr. Ele voltou o olhar para a Sra. Hills, os olhos estreitos, esperando para que ele desistisse rapidamente e lhe desocupasse a cozinha.
― Eles são meus assistentes. Todo bom inspetor precisa de uma equipe, não é?
― Claro, e por que você não veio pela porta da frente, então?
― Eu não sou muito fã do comum ― ele respondeu, encolhendo os ombros. ― Eu sou um cara ocupado. E, além disso, eu sempre soube que você é a única pessoa aqui que sabe fazer doces que derretem na boca. Eu precisava saber o segredo. Para... propósitos científicos, é claro.
Ela não pareceu convencida, mas uma ponta de seu lábio se curvou, quase imperceptivelmente. Iván percebeu e aproveitou.
― Olha, eu sei que você não gosta de compartilhar seus segredos, mas eu prometo que não vou contar para ninguém. Eu sou um ótimo guardador de segredos. Juro pela minha coleção de bíblias que está no armário da Irmã Lucía!
Ela soltou um suspiro, mas agora estava claramente lutando contra um sorriso.
― Você é um mentiroso tão bom que até eu quase acredito em você, rapaz.
― Mentiroso? ― Ele colocou uma mão no peito, fingindo estar ofendido. ― Sra. Hills, você me fere. Eu só estou querendo um doce ou... dois. A senhora nunca me deixou comer quando eu morava aqui, não é nada mais justo do que permitir agora que trabalho aqui também.
Ela riu, finalmente cedendo.
― Pegue alguns e suma daqui antes que eu mude de ideia.
Iván não precisou ser avisado duas vezes. Ele agarrou o pote de vidro com um movimento rápido e elegante, ajeitando a jaqueta e deixando um beijo na bochecha dela antes que ela o ameaçasse com um tapa.
― Você é um anjo! Já lhe disseram isso?
― Fora daqui, seu tagarela! ― ela gritou, mas ele já estava em movimento, o pote seguro contra o peito.
Do lado de fora, os garotos o esperavam, e assim que apareceu, eles se aproximaram animados.
― Você conseguiu! ― um deles exclamou.
― Claro! ― Iván respondeu, com um sorriso que beirava o egocêntrico. ― Eu já fiz isso incontáveis vezes, esqueceram? Agora, vamos para o jardim antes que ela mude de ideia.
Eles correram juntos, rindo baixinho, até chegarem ao jardim dos fundos. Iván abriu o pote e distribuiu os doces, observando os garotos rirem e mastigarem com entusiasmo.
Por um momento, tudo parecia perfeito.
Mas a empolgação durou pouco.
― E o que vocês pensam que estão fazendo?
Houve um silêncio entre eles.
Era a Irmã Irene, uma das freiras mais severas do orfanato. Ela estava parada na porta, os braços cruzados e o rosto uma carranca de desaprovação. Os garotos olharam para Iván. Ele respirou fundo, colocou o pote no chão e se levantou, com um sorriso enquanto devolvia sutilmente o maço de cigarro para o bolso.
― Relaxem ― sussurrou para os garotos.
― Iván Campra ― a Irmã Irene começou, a voz carregada de reprovação. ― Você sabe muito bem que não é permitido dar doces para estes garotos depois do que eles aprontaram com a Irmã Lavinie.
― Irmã Irene! ― ele exclamou, fingindo surpresa. ― Eu estava apenas... ensinando esses garotos sobre a importância de compartilhar e não jogarem mais tinta nas freiras.
Ela não pareceu impressionada.
― E o pote de doces?
― Ah, isso... ― ele disse, olhando desdenhosamente para o pote. ― Bem, eu achei que seria um bom exemplo visual. Para reforçar a lição.
Ela suspirou, cruzando os braços nem um tanto satisfeita.
― Você é incorrigível, rapaz.
― Eu tento... ― ele respondeu. ― Mas olha, Irmã, os garotos não têm nada a ver com isso.
Ela olhou para ele por um longo momento, e então abanou a cabeça.
― Claro... Mas agora, para o salão, todos vocês. E você, Iván, vai me ajudar a organizar as coisas para o evento de arrecadação de fundos. Não quero desculpas.
― Justo ― a resposta veio rápida, acompanhada de um sorriso que tentava disfarçar a inquietação.
Iván encostou-se ao batente da porta, com as mãos nos bolsos do casaco surrado.
― Estarei aqui todos os dias, não se preocupe. Mas... hoje tenho que sair um pouco mais cedo, trabalho e coisas para resolver.
Ela não respondeu, mas ele jurou que viu um sorriso fugaz em seu rosto enquanto ela se virava e voltava para dentro. Um daqueles sorrisos que só aparecem quando ninguém está olhando.
Os garotos correram para o salão, rindo e sussurrando, enquanto Iván ficou para trás, olhando para a estátua de anjo no meio do jardim. O mármore estava desgastado pelo tempo, as asas quebradas, mas ainda assim parecia guardar alguma dignidade. Ele deu de ombros, acendeu um cigarro e estalou os dedos, nervoso. O fogo do isqueiro tremulou por um instante antes de se apagar, deixando apenas o cheiro de tabaco no ar.
Ele passou o dia ajudando onde podia. Organizando caixas, consertando brinquedos quebrados, contando histórias para os mais novos e os que tinham chegado lá há pouco tempo. Tentando fazê-los acreditar que o lar continuaria funcionando. Que tudo estava bem.
Quando o sol se pôs, Gotham trocou de pele. Iván saiu um pouco antes do anoitecer, as mãos enfiadas nos bolsos, a cabeça baixa. Tinha um encontro marcado, um que não podia faltar. Os becos da Narrows o engoliram conforme ele caminhava, a cidade sussurrando ao seu redor. Pneus cantando, sirenes distantes, murmúrios de gente que preferia não ser vista. Ele conhecia bem essa melodia. Ela acompanhava cada passo que dava, cada respiração.
Girando um pingente entre os dedos, tentou afastar a pressão que sentia no peito. Verificou as horas. Tinha uma hora até ter que ir para Chinatown, para concluir seu turno de entregas no 'Red Lotus', o restaurante asiático do bairro. Virando um dos becos, notou os postes de luz começarem a se acender, projetando sombras que dançavam nas paredes. Mordiscou os lábios, mas o som de um isqueiro sendo aberto logo atrás fez seu corpo enrijecer.
Não precisou olhar para saber quem era.
― Você demorou, Campra ― a voz rouca de Callaghan Sullivan soou atrás dele, envolta na fumaça do cigarro. ― Temos um trabalho pra você. Um grande.
Iván fechou os olhos por um segundo, dando um pequeno sorriso nasalado.
― Eu vim avisar que estou fora disso, Call ― disse, tirando um cigarro do bolso e virando-se para encarar o Irlandês. ― Cansei de fazer merda. Preciso arrumar minha vida. Já fiz muita coisa errada, meus demônios estão afogados agora.
A risada áspera do mais velho ecoou até seus ouvidos.
― Só não te contaram que seus demônios sabem nadar. ― Sullivan acendeu o cigarro de Iván e soprou a fumaça direto em seu rosto. ― Você quer sair? Beleza. Só melhor manter a boca fechada pelo resto da sua vida.
Iván deu uma olhada de esguelha ao redor deles, e sem desviar os olhos, perguntou, com um sorriso delineando-se até o canto de seus lábios:
― Facinho assim?
Callahan deu de ombros, sem pressa.
― Achou que eu ia te matar? Não. Você vai fazer isso sozinho. ― Ele sorriu, como se fosse um aviso. ― Mas reze, porque você vai precisar. As freiras, aposto que te ensinaram alguma coisa.
Iván apenas enfiou as mãos nos bolsos, o sorriso não saindo.
― Claro ― retorquiu, a voz sardônica. ― Elas me ensinaram a dizer também: Vá para o inferno, Call.
Sullivan riu, um som rouco e curto, como o latido de um cachorro de rua.
― Só você mesmo, Campra...
Ele deu de ombros e tocou no ombro de Iván, um aperto que poderia ser interpretado como amigável, se não fosse pela situação e por quem Sullivan era.
― Vê se não precisa mais procurar por mim.
― Já sou outra pessoa. ― Iván encarou a cinza do cigarro e a derrubou no chão em um gesto deliberado. ― Nunca mais nos veremos se depender de mim.
― Assim esperamos, garoto. ― O sorriso amarelo do mais velho alcançou seus olhos antes de se afastar. ― Ah! Mais uma coisa... não esqueça que ainda temos contas a serem acertadas.
― Eu não te devo mais nada, Call.
Iván franziu o cenho, sentando-se em um barril velho que parecia ter sido abandonado ali há décadas. Sullivan se aproximou, recostando-se na parede ao lado dele, como se fossem dois velhos amigos conversando sobre algo sujo do passado.
― Desembucha logo, o que tenho que fazer então? ― Iván soltou a fumaça do cigarro, os olhos fixos no beco à frente, como se esperasse ver algo ── ou alguém ── surgir de algum canto para matá-lo.
― Nada, você vai saber quando chegar a hora. ― Sullivan deu um pequeno sorriso, e Iván o encarou com desdém. ― É uma pena que não tenha escolhido se juntar à minha família, Campra.
― Eu tenho família, Sullivan ― rebateu Iván, sem rodeios.
― Os pirralhos do orfanato? ― Sullivan riu, um som áspero e ofensivo. ― Ou a sua família morta?
Iván respirou fundo, como se tentasse manter a calma, e afundou a ponta do cigarro na parede, os olhos fixos nos punhos machucados. Sullivan segurou seu rosto, forçando-o a encará-lo.
― Você não vai realmente se livrar de tudo, se meteu em um fundo do poço desde os doze anos, acha que agora dá tempo de consertar as coisas? ― Ele empurrou Iván, como se estivesse testando sua resistência. ― Bom, eu vou te deixar em paz, e os meus também, mas quando outros problemas vierem atrás de você, não venha me pedir para resolver.
― Eu não vou, pode ficar tranquilo ― respondeu, rispidamente. ― Afinal, tudo o que fiz não está ligado a mim, está ligado a você.
― Mas eu posso tirar o meu da reta quando quiser, Campra. Já você... ― Sullivan mordiscou os lábios, como se estivesse saboreando sua desgraça. ― Mas, a escolha é sua, depois não chore quando as consequências cobrarem suas dívidas.
Iván não respondeu.
Ele apenas olhou para as sombras que dançavam nas paredes, como se esperasse que elas pudessem lhe dar uma resposta. Mas Gotham nunca dava respostas. Ela apenas engolia os homens inteiros e cuspia de volta os pedaços que sobravam. E Iván sabia que, não importasse o que ele fizesse, aquela cidade nunca o deixaria escapar por inteiro.
Ficou algum tempo sentado no barril, os dedos tamborilando levemente no aço, como se estivesse tentando encontrar um ritmo que o acalmasse da ansiedade. O cigarro apagado ainda estava entre seus dedos, mas ele já nem sentia o cheiro da fumaça. Tudo ao seu redor parecia distante, como se ele estivesse observando a cena de fora, de um lugar seguro onde nada poderia alcançá-lo.
Sullivan observou-o por um momento, os olhos estreitos, como um predador estudando sua presa. Ele sabia que Iván estava à beira de algo ── uma decisão, uma queda, talvez até uma redenção.
― Você acha que pode sair dessa limpo, Campra? ― Sullivan finalmente quebrou o silêncio. Ele deu uma risada curta, seca. ― Isso não é como funciona. Você sabe disso.
Iván olhou para ele.
― Eu não estou tentando enterrar o passado ― respondeu, com uma ponta de cansaço que não conseguia esconder. ― Estou tentando sobreviver a ele. Há uma diferença, se você não sabe.
Sullivan balançou a cabeça, como se estivesse diante de uma criança teimosa.
― Sobreviver? ― Ele riu novamente. ― Você não sobrevive a Gotham, Iván. Você apenas aprende a conviver com ela. E mesmo assim, ela sempre encontra uma maneira de te lembrar quem manda.
Iván ficou em silêncio.
Ele sabia que Sullivan tinha razão, mas admitir isso seria como entregar-se à escuridão que sempre o perseguiu. Em vez disso, ele se levantou, os olhos fixos na saída à frente.
― Eu tenho que ir ― disse, colocando o capuz e enfiando as mãos nos bolsos do casaco. ― Tenho um turno para cobrir.
Callahan analisou-o brevemente, os olhos verdes estreitos, tentando decifrar algo que Campra pudesse estar escondendo. Por fim, ele deu de ombros, como se Iván já não valesse mais o esforço.
― Vá, então ― disse desdenhosamente enquanto o sotaque irlandês pesava em sua voz. ― Mas lembre-se, Iván: você pode tentar fugir, mas as consequências de suas ações sempre te alcançam. E quando isso acontecer, você vai descobrir que não há beco escuro o suficiente para se esconder.
Iván manteve o silêncio e apenas virou as costas, começando a caminhar, os passos ecoando no silêncio do beco. Quando finalmente saiu para a rua principal, o ar parecia um pouco mais leve. Ele olhou para o relógio novamente. Ainda tinha tempo antes do turno no 'Red Lotus'. Talvez tempo suficiente para tomar um drinque, para tentar afogar os demônios que insistiam em nadar de volta à superfície. Mas ele sabia que não adiantaria.
Os demônios de Gotham não se afogavam.
Eles apenas esperavam.
Com um último olhar para o beco que havia deixado para trás, Iván começou a caminhar em direção ao bairro de Chinatown, diretamente para o restaurante, os passos firmes, mas a mente cheia de questionamentos. Ele sabia que Sullivan estava certo sobre uma coisa: não havia como escapar de Gotham. Mas talvez, apenas talvez, ele pudesse encontrar uma maneira de conviver com ela.
Iván caminhava pelas avenidas movimentadas de Gotham, onde as luzes neon dos letreiros e as fachadas dos prédios refletiam no asfalto molhado, criando um mosaico de cores que parecia distraí-lo por um momento. O burburinho da cidade era constante ── buzinas, conversas distantes, o som de passos apressados. Ele acendeu um cigarro, puxando a fumaça profundamente, como se ela pudesse afogar a ansiedade que começava a se formar em seu peito novamente
Enquanto caminhava, ele tirou o celular do bolso, os olhos passando rapidamente por uma notícia que piscava na tela:
❝ CORPORAÇÃO WAYNE ANUNCIA NOVOPROJETO HABITACIONAL ― ESPERANÇA PARA O EAST END? ❞
Iván soltou um suspiro curto, quase um riso abafado. Esperança. Ele conhecia bem essa mentira. Sabia que nada naquela cidade vinha sem um preço. E o East End? Aquele lugar era um cemitério de promessas quebradas. Ele guardou o celular no bolso, os dedos ainda inquietos, quando de repente ── tromba.
O impacto foi rápido, mas forte o suficiente para fazê-lo recuar um passo. Alguém havia esbarrado nele, e antes que pudesse reagir, viu um MP3 cair no chão, deslizando pelo asfalto até parar perto de seus pés. O aparelho era antigo, quase vintage, e a tela ainda estava iluminada, mostrando o nome de uma música: "Crying Lightning" ── Arctic Monkeys. Iván arqueou uma sobrancelha, o sarcasmo já tomando forma em sua mente antes mesmo de ele abrir a boca.
― Quem usa MP3 em 2025? ― ele resmungou enquanto se abaixava para pegar o aparelho.
Seu olhar estava mal-encarado, como sempre, mas ainda assim havia uma curiosidade ali.
Foi então que uma mão também se esticou em direção ao MP3, e Iván finalmente ergueu os olhos, encontrando o rosto do dono do aparelho. Era jovem, provavelmente da mesma idade que ele, com cabelos baixos, meio liso, meio ondulado, e uma aparência deliberadamente atraente ── uma mistura de charme casual e uma beleza que parecia natural, quase despretensiosa. Ele usava uma jaqueta de couro marrom desgastada e um sorriso fácil, que parecia contrastar completamente com Iván.
Ainda que não tivesse chegado a ver o adesivo colado no verso do MP3, ali estava o nome que mais tarde ele não esqueceria.
Tim Drake.
― Valeu por pegar! ― agradeceu com um pequeno sorriso. Ele pegou o MP3 das mãos de Iván, os dedos se tocando brevemente, e deu uma olhada no aparelho, como se conferisse se ainda estava funcionando. ― Nem todo mundo se daria ao trabalho.
Iván encarou-o por um momento, os olhos estreitos, tentando decifrar se aquela simpatia era comum dele ou apenas estava sendo sarcástico como provavelmente ele seria.
― É porque ninguém mais usa essas coisas ― ele respondeu, o tom ainda se mantendo, mas sem a aspereza de antes. ― Deve ser desses que curte essas paradas vintage.
Tim riu, um som leve que parecia estranhamente fora de lugar naquela cidade.
― Vintage? ― ele repetiu, como se a palavra fosse engraçada. ― É mais por nostalgia, eu acho. Gosto de ter minhas músicas comigo, sem depender de streaming. O Jay diria que isso é irônico vindo de mim, mas... Além disso, tem um charme.
Iván não respondeu imediatamente.
Ele observou-o por um momento, os olhos passando rapidamente por suas roupas, seu rosto, tentando encontrar alguma pista de quem ele era ── ou do que ele queria. Mas o rapaz parecia... diferente. Provavelmente vinha do lado mais despreocupado da cidade. O lado rico de Gotham.
― Se você diz... ― Iván finalmente respondeu, o canto da boca se curvando levemente em um meio sorriso. ― Em Gotham, charme é só outra forma de se meter em encrenca.
Foi assim que Tim riu novamente, como se aquela fosse a coisa mais engraçada que ele já ouvira em toda sua vida.
― Talvez ― ele disse, encolhendo os ombros e apertando o casaco contra si. ― Mas e você? Sempre fala em frases prontas ou só quando não olha por onde anda?
Iván quase riu, mas conteve-se, ajeitando a postura.
― Depende. Você sempre é tão... simpático com quem não conhece?
― Só com os que parecem precisar de um pouco de simpatia ― ele respondeu, o sorriso ainda estampado no rosto. ― E você, claramente, parece precisar.
Iván não soube o que dizer.
Ele estava acostumado a lidar com ameaças, com violência, com situações mais complicadas. Mas aquela interação era diferente. E isso o deixou desconfortável.
― Bom, não preciso de simpatia ― ele finalmente respondeu, o tom mais áspero do que pretendia. ― E tenho coisas para fazer agora. Então, se não se importa...
Ele fez um gesto vago com a mão, indicando que a conversa ── se é que podia ser chamada disso ── havia terminado. Tim pareceu entender, mas não se afastou imediatamente. Em vez disso, ele deu um passo para o lado, como se estivesse abrindo caminho, mas ainda mantendo os olhos em Iván.
― De qualquer forma, olhe para frente quando estiver andando por aí ― ele disse, o sorriso ainda no rosto, antes de se virar e começar a caminhar na direção oposta.
Iván ficou parado por um momento, observando Tim. Ele não sabia o que pensar. Se deveria rebater por claramente não ter sido ele o culpado do esbarrão, ou, questionar do porque ele achava que precisava de mais simpatia, entretanto, apenas dissipou a ideia. Não valia a pena. Ele era apenas um completo desconhecido.
Com um último suspiro, Iván jogou a ponta do cigarro no chão e esmagou-a com o pé, antes de continuar seu caminho para o 'Red Lotus'. Mas ele hesitou por um breve instante, e olhou por cima do ombro, os olhos escuros encontrando a silhueta de Tim, que já estava a alguns passos de distância, desaparecendo entre a multidão. Mas então ele se virou, seguindo em frente.
Ele não sabia porque havia olhado para trás, e isso o incomodava mais do que gostaria de admitir.
Do outro lado, Tim também parou, quase imperceptivelmente, e virou-se para trás, os olhos castanhos seguindo Iván enquanto desaparecia de seu campo de visão. E assim como ele, não sabia o porquê de tê-lo feito, mas não conseguiu evitar um sorriso discreto, como se soubesse que aquela não seria a última vez que seus caminhos se cruzariam.
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