9

Eu não queria mais ver aquela cena — me fazia muito mal, mesmo eu estando sonhando.

Então saí do balanço, olhando de relance para os dois. Quando me virei, não estava mais no lindo gramado. Eu estava no piquenique de Amanda. O balanço se foi, tudo se foi, com exceção de Sam e Catarina, que estavam ao longe conversando.

Ela se aproximou calmamente dele, e eu já imaginei a cena que viria a seguir — eu a vira na tarde de ontem: Ela chegaria perto, eles se agarrariam, eu ficaria perplexa e tudo acabaria. Pelo menos teria um final.

Embora eu tivesse 99,5% de certeza que isso não aconteceria, não me assustei quando o Sam do sonho afastou Catherine para longe. Ele balançava a cabeça enquanto ela implorava por um beijo. Quando se cansou de dar fora nela, veio para o meu lado, correndo, balançando as pontas arrepiadas e morenas daquele lindo cabelo. Seus olhos cintilaram enquanto se aproximava de mim, sem nenhuma hesitação visível. E, então, ele me beijou.

A sensação de confusão foi tão forte que eu despertei imediatamente do sonho. Como assim eu havia sonhado que meu amigo trocou uma garota oferecida por mim?

Entre todas as loucuras que eu já havia feito, e olha que eram muitas, aquela era a pior coisa que tinha acontecido (apesar de que eu não tinha feito nada, era apenas um sonho que eu não podia controlar). Mas, mesmo assim, eu não deveria ter sonhado com aquilo. Era feio sonhar com um amigo, principalmente se o amigo era Sam.

Eu tentei rolar para o lado, para me espreguiçar, mas algo me impediu. Na verdade, alguém, inconsciente, me impediu.

— Hmm — murmurei, abraçando mais a pessoa.

Eu bocejei e abri meus olhos bem devagar. Eu já imaginava quem era — João era mesmo musculoso — mas, quando abri completamente os olhos vi que não era quem eu pensava.

Que diabos Sam estava fazendo ali?

O primeiro sentimento que me dominou foi a raiva (Ele havia dormido ali, comigo, a noite inteira?), mas esse logo passou. Depois eu senti desespero (E se eu falasse mesmo enquanto dormia, igual João sempre me avisou? E se eu falei alguma coisa que não devia, algo relacionado ao sonho?) e esse permaneceu um tempo a mais. E após esse sentimento eu senti vergonha de dormir agarrada com ele. Mas quando eu encarei o rosto calmo de Sam, tive gratidão por ele ter feito o que eu havia pedido.

O seu rosto era plenamente calmo e parecia que ele sorria, mesmo dormindo. As pálpebras estavam repousadas levemente e eu tinha quase certeza de que ele estava sonhando. Ele se inquietou por um momento, virando-se mais para o meu lado. Ficou imóvel quando encostou a testa no meu pescoço.

Pensei que se Sam estivesse acordado ele estaria rindo por estar me provocando batedeiras. E teria livre acesso aos meus seios.

Empurrei Sammy ao pensar nisso e ele caiu no chão.

— Ãhn? — gritou, se levantando.

Eu cheguei à beira da cama e comecei a rir, disfarçando o choque inicial.

— Ei! — Sam sentou-se no chão. — Não ria de mim!

— Desde quando você cai da cama, Sammy? — brinquei.

— Eu nunca caí da cama. Aposto que você me empurrou.

— Eu? — Fiz uma cara inocente. — Eu não fiz nada.

Ele deu o meu sorriso preferido e pulou em cima de mim.

— Sam! — grunhi.

— O quê? Eu não fiz nada.

Ele pegou os meus pulsos e aproximou o rosto do meu. O meu coração disparou e Sam riu. Eu não gostei da reação de ambos.

— Sam, vamos parar de gracinhas? — murmurei, afastando-o.

Ele rolou pela cama e ficou a meu lado.

— Pronto para pagar as suas dívidas?

— Qual delas você quer que eu cumpra primeiro? — Ele tinha um sorriso recatado. Seu cabelo estava uma bagunça e incrivelmente estava ainda mais adorável. Tive uma surpresa ao perceber que Sam era muito lindo. Não que eu não soubesse, mas depois que viramos amigos era como se eu tivesse me cegado para esse detalhe tão óbvio.

— Ah... Você escolhe.

Levantei uma de minhas mãos e toquei seu cabelo, inebriada em meus pensamentos.

— Está tão lindo... — comecei. Ele deu um sorrisinho malicioso e eu corei. — O seu cabelo, quero dizer.

— Eu entendi que é o meu cabelo. — Ele enrugou o cenho.

Amanda e Felipe entraram pela porta em um rompante.

— Ah, não! — reclamou Am. — Queria eu mesma acordar vocês. Não acredito que cheguei atrasada!

Eu me sentei na cama e coloquei meu chinelo. Sam pareceu muito envergonhado de repente.

— Chegou mesmo. Sorry.

— Eu quero abrir meus presentes, mas quero estar com você. — Seus olhos brilharam.

— Vou tomar um banho primeiro! Sam — Eu me levantei e me virei para ele. —, saia que eu preciso me trocar; vá para o quarto dos meninos.

— Ok, fui expulso — lamentou.

— Foi mesmo. — Amanda apontou a porta com o dedo indicador. — Vocês dois, para fora.

— Eu também? — disse Felipe.

— Ué. Lógico! Se eu vou me trocar espero não estar na sua frente — exclamei.

Os dois se dirigiram para a porta, fechando-a ao passar por ela.

— Acabo logo — prometi, entrando no banheiro.

— Espera! Posso escolher sua roupa? — Amanda bateu as pestanas enquanto falava.

Eu suspirei. Se eu dissesse que não, o que eu estava pensando em falar, Am reclamaria, gritaria, chamaria o Papa e o presidente do país para que eu mudasse de ideia. Isso não era necessário. Respirei fundo. Eu estava derrotada.

— Sim, não tenho opções mesmo...

Eu a ouvi batendo palmas e soltando um gritinho de animação. Enquanto eu tomava banho, tentei não pensar no que ela estava aprontando.

Eu sorri, pensando nessa noite e em como era gostosa a textura do cabelo de Sam. Estava muito calor, mas ele não estava suado.

Por fim, desliguei o chuveiro e peguei minha toalha, me dirigindo para o cômodo em que Amanda se encontrava. Ela estava sentada em minha cama; a boca formando um biquinho enquanto o seu cenho estava franzido. Ou ela finalmente percebeu que meu guarda-roupa era limitado demais para ela, ou quebrou o seu salto favorito.

— O que foi, Am? — eu disse sem me preocupar realmente.

Ela continuou com sua cara mal-humorada e eu segurei o riso. Tinha certeza de que o que a incomodava me renderia boas gargalhadas.

Franzi o cenho, desacreditando do que via. Eu me aproximei da cama para encarar a roupa que Amanda me escolheu.

— Uma calça legging preta e uma regata branca? — perguntei indignada. Imaginei que Am escolheria um modelito com a cara dela, como uma saia ou acessórios cheios de brilho. Confesso que fiquei pasma pela simplicidade daquele estilo de roupa. — Amanda, você está realmente bem? Tipo, essa roupa foi você mesma que escolheu?

Ela suspirou.

— Infelizmente sim. Sim. Sim — respondeu às minhas três perguntas.

— Puxa! — exclamei. — Que mudança de estilo foi essa?

— Não mudei de estilo. É que eu perguntei para Sam onde ele a levaria hoje.

Eu olhei para a roupa repousada na cama de novo.

— Nossa! Aonde ele vai me levar que você decidiu me colocar essa roupa? Fiquei até com medo.

Amanda deu uma risadinha gostosa.

— Olha, eu não posso contar o lugar, mas sei que eu queria estar lá para ver. É o que poderia chamar de verdadeira diversão, do começo ao fim.

— Certo. Agora sim você conseguiu me assustar — comentei, vestindo a calça.

— Para você não sair tão básica, vou adicionar certo glamour à sua peça.

Ela me trouxe rapidamente uma faixa de cabelo vermelha.

— Francamente! — resmunguei enquanto colocava os acessórios. — Eu aposto que poderia ser confundida com uma mímica ou um tabuleiro de xadrez! Estou inteiramente preta e branca, só com um detalhe vermelho.

— Inteiramente não... Coloque a sua bota vermelha, vai ficar muito bom.

Eu suspirei, pela segunda vez, me sentindo derrotada.

— Tenho chances de poder trocar de roupa? — eu disse.

— Definitivamente não. Larga de ser enjoada e vamos abrir os presentes!

Ela quicou animadamente até sua cama, onde os embrulhos faziam um montante.

— Uau! Que tanto de coisa! — exclamei.

— É. Olha, Catarina me deu um Scarpin.

— É lindo — exclamei, contra a minha vontade. — Abre o presente de Sam, eu estou ansiosa para vê-lo.

Amanda fez um pequeno "o" com a boca.

— É mesmo!

Ela pegou uma caixa caramelo, cheia de furos. Assim que a abriu, aspirou o ar pela boca e eu senti um cheirinho agradável no ar. Um latido ecoou.

— Becca, é um cachorro!

Eu me aproximei dela e sorri. Era um lindo poodle branco, com os pelos fofos e enrolados. Uma fita vermelha estava enrolada em seu pescoço. Nós duas rimos.

Coitadinho, pensei. Ele estava na caixa gigante, sem carinho ou atenção, por mais de 12 horas. Pelo menos Sam previu que isso poderia ocorrer e havia deixado a comida, a água e os brinquedos necessários para que o bichinho pudesse aguentar.

— Ele é lindo, Amanda. É lindo! — Eu o peguei no colo um pouco. Era minúsculo; deveria ser um mini poodle filhote. — Qual vai ser o nome?

— Me ajuda a escolher; eu não sei. Na verdade, eu nem sei se é macho ou fêmea.

Am virou o cachorro de barriga para cima e riu.

— É fêmea.

Pensei um pouco.

— Sei lá... Se eu tivesse uma gatinha, eu daria o nome de Goiabinha.

Amanda sorriu, franzindo o cenho.

— É diferente... Mas gostei.

Eu peguei a Goiabinha no colo e pedi para Am continuar a abrir os presentes.

— Hmm, esse presente é da República do Centro. Não é muito leve... U-A-U! — exclamou quando o abriu. — É um I-dog; um bem grande.

— Parece que você atrai cachorros — brinquei, dando um duplo sentido. — Cuidado com Felipe.

Ela revirou os olhos.

— Agora dá para colocar as músicas do Ipod que ganhei de Sam em alto falante — comentei.

Amanda pegou outro presente.

— É da minha mãe e meu pai. É um lenço!

É um lenço da loja mais cara de Ribeirão, pensei. Eu levantei as sobrancelhas, já planejando usá-lo em alguma ocasião.

Ela começou a rir do nada, enquanto eu brincava com Goiabinha. Percebi que era porque ela tinha aberto outro presente.

— Arthur e David sabiam o que Sam me presentearia. Olha o que me deram.

Tinha quatro roupinhas para cachorro: Uma de marinheiro, outra de bombeiro, uma branca e outra azul. Dei uma risada divertida por eles não terem seguido a "tradicional moda de gênero" e dado roupas cor de rosa. Com certeza ganharam pontos.

Ela continuou abrindo outros presentes, mas eu estava ocupada demais brincando com a cadelinha dela.

— Eu sou a madrinha — exigi.

— Becca, você tem certeza de que quer me ajudar com isso? Você nem está prestando atenção! Acabei de dizer que meus tios me deram um colar de ouro e pérolas.

Eu suspirei.

— Eu estou dando atenção para a Goiabinha... — comentei, olhando para baixo.

— Tudo bem. Eu vou chamar Felipe para abrir comigo.

Fiz um beicinho de arrependimento.

— Eu vou prestar atenção — sussurrei.

Mas minha 'afilhada' deu uma lambida na minha mão e isso desviou a atenção que eu deveria dar à Am. Ela revirou os olhos.

— Já que você não vai me ajudar a abrir os outros presentes, bem que podia ir logo com o Sam — falou.

— Você está com ciúmes de mim e da Goiabinha? — acusei.

Ela respirou fundo, parecendo minha mãe.

— Tá bom, só faltam dois presentes mesmo.

O presente com embalagem pequena era uma pulseira prateada com um coração de strass e um anel com um coração de cristal. O outro, com embalagem média, era uma placa de metal com ímãs em forma de coração. Era um quadro para colocar fotos.

— Que criativo, Amanda! — exclamei.

— Eu posso pegar as fotos da discoteca e colocar aqui. — Ela me olhou. — Agora vamos que Sam está esperando você.

— E ele não vai para casa se trocar?

— Acho que ele vai cumprir as duas promessas hoje — admitiu.

Meus olhos brilharam.

— Então vou lá, cobrá-lo — avisei, sorrindo, levando a Goiabinha.

Não precisei perguntar a alguém da casa onde Sam estava; pude ouvir a sua risada de onde eu me encontrava.

— Quer apostar comigo que João está na sala com Sammy? — perguntei à Amanda.

— Eu não. Eu sei que, se eu fizer isso, vou perder mesmo...

Nós rimos enquanto andávamos até o cômodo. Os olhos de Sam cintilaram a me ver chegar e meu rosto ardeu ao perceber a análise dele sobre meu modelito.

— Foi ela quem arrumou a roupa. — Eu apontei para Amanda com o indicador como se a acusasse de um crime.

— Está lindo, não está, gente? — defendeu ela.

João se levantou e se colocou a minha frente.

— Está muito sexy — disse, sorrindo de lado.

Eu revirei os meus olhos para ele enquanto os meninos riam. Passei a cadela para Amanda e sorri. Na sala estava Sam, Felipe, Pedro, João, Maria Elisa, Amanda e eu. Am se sentou timidamente ao lado de Fê. Sammy se levantou e João sentou-se em seu lugar.

— Vamos, Becca? — sugeriu Sam, pegando em minha mão. O toque espontâneo me surpreendeu, mas reprimi qualquer reação. Sempre me esforcei ao máximo para repelir qualquer contato com as pessoas, meus melhores amigos sofreram bastante até que eu me sentisse segura o suficiente para isso, mas, naquele momento, eu não queria que Sam se afastasse.

— Aham. Tchau, gente.

Eles fizeram um coro de "Tchau" e eu saí da sala, fechando a porta.

O carro de Sam estava na calçada. Eu não me demorei na hora de entrar no banco ao lado do motorista. Por dentro o carro era igualmente simples, mas era lindo. Dei um sorrisinho. Já havia andado nesse Palio dele, só que não havia realmente reparado no automóvel. (Sabe como é, naquela ocasião eu estava brava demais com Sam para ver os detalhes do carro...)

— Gostou? — perguntou Sammy, hesitante.

— Amei. É tão... simples e básico. Combina tanto com você.

Ele fez uma careta.

— O que foi? — perguntei, franzindo o cenho.

— Nada.

Ele olhava para frente, para o trânsito. Lógico que eu não queria que ele atropelasse um pedestre, passasse em um sinal fechado, batesse o carro em uma árvore — ou algo do tipo — por desatenção, mas eu queria que ele olhasse para mim porque algo parecia errado.

— Então por que você está com essa cara azeda? — provoquei. — Já sei! Está com saudade de Catarina, mas não tem o telefone dela.

— Na mosca! — brincou. — Na verdade, eu tenho uma pergunta para fazer, mas não sei se devo. Acho que você não vai gostar. — Ele fez uma careta.

— Fala.

— Bem, me conte como você e Cá não se aturaram mais, como você começou a odiá-la.

— Eu responderia se você tivesse perguntado algo... — observei, mal-humorada, enquanto pensava no jeito como ele a chamou: Cá. Coisa mais ridícula.

Ele suspirou.

— Conta-me como vocês começaram as brigas?

— Não — respondi. Ele revirou os olhos. — O que foi? Eu respondi à pergunta...

— Posso reformulá-la, então? Por que vocês se desentenderam?

Eu respirei fundo.

— Não foi minha culpa. Bem, ela foi ficar uma semana na república e com o passar dos dias eu percebi que ela fazia tudo o que eu fazia. É irritante alguém tentando ser você o tempo todo.

— Ela tentava... ser você? — Ele enrugou o cenho. — Me explique.

— Olha... Ela não se interessou pelo Pedro até saber que eu fiquei com ele.

Sam me olhou, os olhos arregalados. Parecia realmente que tinha chupado limão.

— Você, de fato, ficou com ele?

— Claro. Você não sabia? — Levantei uma sobrancelha, ficando sem graça. — Bem, pensei que você soubesse... Todos sabem.

Ele olhou para o para-brisa; a expressão rígida.

— E ela ficou com ele?

— O que você acha? — desdenhei. — Mas eu só soube isso porque a própria Catarina me contou; na verdade, ela cuspiu na minha cara. Pedro não soltou nada. Eu posso apostar todos os fios de meu cabelo que ela pediu para ele não contar a ninguém.

— Por quê?

— Oras! Você por acaso não reparou? Ela é a protegida da família. Nessa mesma época, quando eu ia reclamar para Amanda que sua prima estava me dando nos nervos porque começou a ficar com os garotos que eu ficava, Am falava que era impossível.

Ele fez um biquinho e deu uma risadinha sarcástica.

— Eu não a achei santa ontem — comentou. Trinquei o maxilar.

— Humph. Bem, eu também tenho uma pergunta para fazer, mas não sei se devo.

— Faça — sugeriu ele, rindo do meu uso das palavras: As mesmas que as dele.

— O que realmente aconteceu ontem? — perguntei, sabendo que entenderia o que eu queria dizer.

Ele escolheu bem as palavras antes de falar.

— Cá se aproximou, se apresentou e conversamos...

Sam me olhou de lado, se silenciando. Assenti com a cabeça. Continue, eu quis dizer. Meu coração não ia doer mais do que já havia doído no momento em que vi a cena.

— Aí ela se aproximou mais, se é que você me entende. — Sam pigarreou. — Bem... Ela é bonita.

Eu revirei os olhos. Para você, só se for, pensei.

— Ok, sem mais detalhes, por favor — pedi. Queria que a vida amorosa das pessoas não me afetasse tanto.

Ele se calou e depois de um tempo voltou a falar animadamente:

— Chegamos!

Abriu o portão com o controle e entrou com o carro na garagem.

A casa era simples, assim como o próprio Sam; ela era um tanto pitoresca e reconfortante. Trazia uma sensação de tranquilidade.

— É linda — falei, encarando as paredes peroladas.

— Que bom que gostou.

— Os meninos estão aí? — perguntei.

— Hmm, tenho quase certeza que não. Ninguém atendeu ao telefone.

— Por que você ficou comigo ontem à noite? — Eu o encarei enquanto ele abria a porta.

— Porque você pediu.

— E desde quando você faz o que eu quero? — Eu enruguei o cenho.

— Desde ontem, quando prometi que seria seu escravo.

— Esqueça isso. Não quero um escravo.

— Mas eu sou e quero continuar sendo seu escravo.

— Argh. O próximo que falar escravo vai apanhar — resmunguei.

Nós nos encaramos e rimos.

— Você é muito nervosa! Olha, aqui é a sala.

O ambiente estava escuro, mas dava para ver que a mobília e as paredes eram claras, brancas, talvez.

— A cozinha é para lá. — Sam indicou o corredor mais adiante de nós. — E nosso quarto é lá em cima. Venha.

Ele pegou minha mão e me puxou escada acima, que dava direto para um banheiro bem pequeno, típico de garotos. O cômodo era claro, de azulejo.

— Nosso banheiro. — Sam apontou para o lugar.

— É o único da casa? — perguntei, indignada.

— Sim. Venha ver o meu quarto.

— Por favor, diga que, pelo menos, tem mais de um quarto aqui!

Ele riu.

— Calma. Tem dois quartos, mas nós dividimos um. No outro só tem uma cama de casal.

— Qual é a utilidade do outro quarto então? — Enruguei o cenho.

— Bem, você não vai querer saber. — Sam parecia meio hesitante em resposta a minha expectativa. Ele suspirou. — Está bem, esse outro quarto é para quando, por exemplo, estamos com alguma convidada e tal...

Arregalei meus olhos, levantando minhas mãos.

— Ok, essa foi a coisa mais estranha que eu já ouvi. Minha inocência é grande demais para esse tipo de raciocínio!

Paramos em frente a uma porta marrom, do quarto deles.

— E você por acaso já precisou usar o quarto reserva? — Tentei parecer indiferente.

Sammy ficou sem graça.

— Bem, esse é o meu quarto. — Ele abriu a porta e eu sabia que não tocaria mais no assunto.

— Hmm, confortável. — Eu sorri e me sentei em uma das camas, a de solteiro, que ficava no meio do cômodo. — Esta cama é de quem?

— Minha. Os garotos dividem a beliche.

Olhei em volta, reparando no ambiente como um todo.

A decoração não era muito sofisticada, mas eu amei; tinha um toque de criatividade primoroso. As cortinas vermelhas estavam soltas, o que tornava o quarto da mesma cor. Havia uma parede sobrecarregada de fotos – dos moradores da república com amigos, família, algumas fotos da discoteca de Amanda e, a que parecia mais recente, uma de Sam e eu dançando.

Estávamos sorrindo. Nós dois, ao mesmo tempo, quase o mesmo sorriso.

— Eu não sabia que você tinha fotos da discoteca — eu disse. — Bem que Amanda comentou hoje de manhã sobre elas, mas nem prestei muita atenção.

— Coisa de David. Ele adora fotografar. Bem, vou tomar banho, senão não chegaremos a seu lugar misterioso nunca.

— Tudo bem. Depressa.

Sam pegou algumas coisas no armário e saiu do quarto, em direção ao banheiro.

Eu ainda estava pensando na foto, bem concentrada no que estava acontecendo dentro da minha cabeça, quando ouvi sua voz.

— Sentiu minha falta? — perguntou, de repente.

— Nossa! Como você tomou um banho tão rápido? — falei, o coração acelerado por causa do susto. Eu ordenei 'depressa', mas eu não sabia que ele seguiria minha ordem tão literalmente.

— É que eu não tenho um cabelão como você — brincou.

Levantei uma sobrancelha quando reparei que Sam estava com uma calça jeans, um tênis caramelo e sem camisa.

— Por que você sempre fica se exibindo? — murmurei, desviando o olhar de sua barriga. Eu sequer imaginava que Sam malhava. Fiquei quente do nada.

— Porque eu quero que você perceba que eu sou bonitão o bastante para você. — Ele flexionou os músculos do braço, me fazendo rir.

— Você é um bobão, isso sim. — Revirei meus olhos.

— É que a camisa que eu tinha separado está manchada. Vim pegar outra.

— Não precisa me explicar nada... Você está na sua casa.

Sammy selecionou uma camisa verde escura.

— É mesmo... Não quer me acompanhar até o outro quarto? — brincou.

— Você não quer começar a apanhar logo cedo, né?

Ele riu, me ajudando a levantar da cama para descermos. Gostava de quando ele me puxava de um lado para outro, fosse pegando minha mão, fosse me conduzindo pela cintura, como se fôssemos duas partes de um todo.

— Bem, é melhor a gente ir.

— É muito longe? — perguntei, observando-o guardar uma chave diferente no bolso traseiro da calça.

— Nem tanto.

Mas a sua expressão denunciava o contrário.

— Quanto tempo mais vai demorar? — insisti novamente. — Você falou que era perto de Franca...

— E é.

Eu me virei para encará-lo.

— Já se passou meia hora desde que atravessamos Franca.

— Mas agora estamos chegando. De verdade.

Sam entrou em uma estrada de terra pasto adentro.

— Viu? É só chegarmos ao fim da estrada agora.

Era um lugar maravilhoso: Os pastos esverdeados ocupavam grande parte do leste e o bosque adentrava a oeste. Vacas pastavam tranquilamente enquanto os pássaros misteriosos murmuravam sons estranhos dentro da floresta.

— O presente que você deu a Amanda foi o melhor. Eu que dei o nome — lembrei, do nada.

— E qual foi?

— Goiabinha. E amei as roupinhas! Aposto que quando chegarmos à república, a cadela estará vestida de marinheiro.

E então eu avistei o fim da estrada, onde havia uma fazenda. Todos os meus pensamentos se esvaíram.

— U-a-u! — exclamei. — É sua?

Sammy parou o carro em frente ao casarão.

— Não. — Ele saiu do carro e eu fiz o mesmo. — Na verdade, não é minha de jeito algum. É da Amanda.

Eu enruguei o cenho, olhando para ele.

— É a fazenda da família que está no nome dela, não é? — perguntei.

— Exatamente.

— Então eu finalmente conheci essa propriedade. — Admirei o local. — E como você conseguiu as chaves?

— Bem, eu não as roubei, se é isso que você está pensando.

Eu corei. A minha pergunta deu mesmo um duplo sentido em relação a isso, mas não foi a intenção.

— Prometi que a traria a algum lugar novo, mas eu não tinha esse lugar. Amanda me ajudou, foi bem legal — explicou.

— Ainda bem que ela existe.

— Ainda bem — repetiu.

— Bem, então vamos aproveitar o passeio!

Sam me levou para dar uma volta pelas árvores do bosque. Depois fomos ver as vacas e ele tentou me fazer passar a mão em uma. Sem sucesso. Mais tarde, quando cansamos de correr pelos pastos, buscamos dois cavalos no curral para andarmos. Eu fiquei com o cavalo marrom que tinha o nome de Tsunami e Sammy, com um cavalo branco malhado cujo nome era Relâmpago.

Eu corri tanto que fiz Sam comer poeira, deixando-o muito preocupado, por sinal. Quando parei para dar água ao cavalo, ele me alcançou.

— Seu cavalo disparou? — gritou, descendo do seu rapidamente. Relâmpago juntou-se ao Tsunami para matar sua sede.

— Não — falei, como se fosse óbvio. E era, visto que eu sabia montar bem.

— Nossa! Eu fiquei morrendo de medo de você cair do cavalo. Nunca mais faça isso!

— Sammy — comecei, revirando meus olhos. —, andar de cavalo é minha segunda natureza. Se eu não morasse na cidade e tivesse um carro, iria morar em uma fazenda e correria com meu cavalo todos os dias.

Ele respirou fundo, me dando uns minutos para fazer carinho em Tsunami.

Voltamos para o carro uma hora depois, famintos.

— O que temos para comer?

— Salgadinho com refrigerante — respondeu, remexendo na mochila que havia trazido.

— Eba! — comemorei. — Eu não vivo sem isso.

Nós rimos.

Infelizmente já estava ficando tarde e a viagem de volta a Ribeirão nos custava mais de uma hora e meia. Então, depois de comer, demos tchau aos cavalos e às vacas e colocamos o pé na estrada.

Durante o caminho, colocamos o rádio no último volume e cantamos com a voz ainda mais alta do que a música. Às vezes Sam mexia comigo: Cutucava o meu braço, fazia cócegas em meu joelho, dava petelecos em minha orelha. Ele sabia que eu adorava ser mimada. Às vezes.

Chegamos mais depressa; ou as músicas, ou o júbilo no ar, fizeram com que Sammy dirigisse mais rápido.

— Ãhn, Sam? — murmurei quando passamos pela placa de "Bem vindos a Ribeirão Preto". Ele virou-se para me olhar, estacionando o carro.

— Oi.

— Hmm. — Eu mordi meu lábio e dei um sorriso nervoso. Parecia extremamente estranho a mim, apesar de nossa convivência longa e íntima, fazer uma pergunta assim.

— O quê? — Ele já estava visivelmente curioso.

— Todo mundo te chama de Sam — afirmei.

— Menos as garotas que me chamam de Sammy — provocou.

Revirei meus olhos. Eu não gostava do plural em sua frase. Ciúme exagerado, eu sei.

— Menos as garotas que te chamam de Sammy — repeti a contragosto. — Mas seu nome com certeza não é Sam.

Ele deu um sorriso.

— Sim, meu nome não é 'Sam', mas é assim que sou conhecido.

— Então qual é o seu nome? — perguntei.

— Completo? Samuel Toloni Wade.

— Ei, Sr. Wade. — Eu ri, saindo do carro. Entramos juntos na república. — Como prefere ser chamado? Sr. Samuel, Sr. Toloni ou Sr. Wade?

Ele bufou.

— Nenhum dos três! Para você, eu sou Sammy.

Amanda nos encontrou na metade do caminho. Seu abraço foi de expectativa e tinha um toque de 'quero saber de tudo'.

— Safada, você sabia perfeitamente aonde Sam ia me levar! — acusei, sorrindo.

Ela riu em resposta.

Pedro estava sentado no sofá com Goiabinha em seu colo.

— Venha cá, minha lindinha — murmurei pegando-a. Sua roupinha de marinheiro atraiu minha atenção e eu ri. — Viu, Sammy? Eu te falei que Amanda faria Goiabinha de Boneco Modelo logo.

Algumas pessoas riram. Sam estava encostado ao lado de João na parede. Amanda havia se sentado perto de Clara e eu ao lado de Pê.

A casa estava estranhamente... sem pessoas.

— Onde estão os outros? — perguntei, olhando para Am.

— Maria Elisa foi para a casa de uma amiga, porque hoje vai ter uma festa imperdível para ela. — Amanda revirou os olhos. Afinal, qual festa não era imperdível para Maria? — Teresa, Natale, Rafael e Juliano foram ao clube.

Tentei ingerir as palavras. Era como um passeio de casais... Teresa com Rafael e Natale com Juliano. Forcei um sorriso para que ninguém pensasse que eu estava sufocando — uma coisa que, de fato, eu estava. Juliano era perfeito demais para Natale.

— Eu não estou querendo ser rude... — começou João, segurando o riso. De início, percebi que lá vinha coisa ruim. Até a escolha de palavras foi perfeitamente estudada! —, mas, Becca, você está fedendo a roça.

Ele riu, junto com mais alguns. Coloquei Goiabinha no colo de Am e revirei meus olhos. Eu passei o dia todo na roça, era óbvio que meu cheiro seria esse.

— Isso foi o estopim para eu me retirar. Vou tomar banho — avisei.

— Aposto que também estou cheirando mal, então vou embora também.

Rapidamente, me virei para encarar Sam. Eu sabia que havia emoção demais em meus olhos, tristeza demais, porém não pude controlá-la. Porque Sammy tinha que ir? Por que ele não morava com a gente? Fiz um beicinho. Aqui era uma república, não era? Então tinha espaço para ele também, não é?

Ele riu da minha expressão.

— Eu prometo que não vou fugir do país sem me despedir de você — brincou.

— Te acompanho até a porta.

Sam saiu para a garagem e eu o segui.

— Por que você não vem morar aqui?

Por incrível que pareça, ele ficou sério. Pensei que teria outra reação, como rir de mim ou me zombar...

— Esse não é o meu lugar, Becca. Eu sei que você pode pensar que a vida é tão perfeita quanto um conto de fadas e eu peço desculpas por trazê-la à realidade... Você e o restante do pessoal aqui têm bastante dinheiro, para sustentar uma mansão como essa — Fiz uma careta. Eu nunca me referi à república como uma mansão. Nem era uma casa tão grande. —, para comprar muitos presentes para si e para outros, carros luxuosíssimos e roupas caras. Mas eu nunca tive nada disso. Sinceramente, acho que não me adaptaria a esse ambiente.

Logo em seguida, aquele sorriso lindo se iluminou novamente em seu rosto.

— Mas não me importo de atravessar a cidade para vir aqui vê-la. E farei isso sempre que eu puder — disse.

— Promete? — perguntei.

Sam riu.

— Prometo. Bem, eu não sei se você gostou de hoje, mas eu adorei.

— Eu mais que adorei, amei. Foi tão perfeito... Tudo — afirmei.

— Eu só gostaria que você não tivesse tentado se suicidar correndo com o cavalo daquele jeito, Becca — brincou.

Eu sorri junto com ele, ignorando a sua provocação, e fiquei na ponta do pé para dar um beijo em sua bochecha. Sam me abraçou ternamente e eu cruzei minhas mãos ao redor de seu pescoço. Eu posso apostar que ficamos naquela posição por uns dois minutos, cada um com o próprio pensamento.

Eu pensava se nossa amizade seria uma amizade 'versão João' mais acelerada e não cheguei novamente a uma conclusão. Apesar de Sam ter o sorriso mais lindo, internamente João ainda era meu melhor amigo. Sam era algo diferente. Estávamos, sim, muito perto, tão emocionalmente quanto fisicamente, então por que não era um sentimento igual ao de João? Talvez era uma ligação familiar, ou algo desse tipo.

Um flash iluminou o meu redor, fazendo com que Sam e eu nos afastássemos vagarosamente.

Era Amanda, com uma máquina digital nas mãos.

— Não reclama! Foi presente de Pedro, Maria Elisa, Teresa, Juliano e Rafael.

Suspirei. Era muito Amanda ganhar um presente e usá-lo com outras pessoas.

Sam riu.

— Bem, eu vou embora.

Eu me virei para ele e acenei.

— E eu vou tirar essa roupa de mímica.

Ouvi Am grunhir atrás de mim.

O som do motor do carro de Sammy rugiu e aos poucos sumiu, junto com o Palio no horizonte.

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