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Era como se acordasse pela primeira vez. Sentiu o corpo emergir da escuridão, como se uma bóia, amarrada a seu corpo, forçasse-o a subir, a sair das profundezas de um oceano negro e inerte. Como se a pressão da realidade intimasse seu corpo a flutuar, a voltar para onde nunca devia ter saído. Faltava-lhe fôlego e o desespero invadiu seu peito quando o pressentimento de que algo único e especial estivesse prestes a ocorrer. E de repente aconteceu.
Abriu os olhos; e a visão de um céu cinza e monótono a aliviou. Estava de pé e, a poucos metros adiante, encontrava-se o pilar do último andar de um prédio de aproximadamente vinte e cinco andares. Lembrava-se daquele lugar. Lembrava-se daquela mesma visão... Mas quando?
Seus cabelos, grandes e negros, voavam com a brisa forte e insistente, prenunciando uma tempestade invernal que se aproximava no horizonte. Pipocando aqui e ali, algumas gotas de chuva começaram a molhar seu rosto. Mas não sentia o toque da água, nem do concreto abaixo de seus pés. Não havia o discreto desconforto que sempre surgia quando se enfiava em lugares altos, não sentia o frio na barriga, muito menos o do vento que chacoalhava seus fios de cabelo.
Observou os pingos dágua em seu braço com estranheza. Sabia que as gotas batiam em sua pele, porém a conhecida sensação de se molhar, o frescor que a água trazia ao bater... Não, ela não conseguia sentir. Contudo aquilo não importava, só desejava saber o que fazia ali, em cima daquele edifício, olhando para aquela cidade estranha, quieta, mas que no fundo lhe era familiar.
Flashes passavam por sua mente, contudo nenhuma imagem fazia com que sua memória voltasse. Não sabia sequer seu nome, não se lembrava de sua família, mesmo sabendo que ela existia. Rostos iam e vinham diante de seus olhos, porém nenhum despertava lembranças, nenhum tinha significado. Levou a mão ao rosto; uma tentativa desesperada de tirar as faces da cabeça e, de imediato, pareceu funcionar.
O silêncio se proliferou, dando espaço somente para o som fúnebre do vento, que levantava seus cabelos e seu vestido vermelho-sangue. Continuava cabisbaixa, com a mão cobrindo o rosto, quando ouviu um som diferente. Tão triste e fúnebre quando o assoviar do vento.
Um choro.
Olhou para o lado, assustada, e uma garota tentava se livrar das lágrimas que insistiam em descer. Também tampava o rosto, como se estivesse envergonhada de algo. Envergonhada e extremamente abalada. A garota, distante não muito mais do que cinco metros, se escorava na pequena barreira de concreto e tijolo que a impedia de cair edifício abaixo.
Ela se aproximou da garota que chorava, por um momento, esquecendo-se de que nada ali fazia sentido. Seus passos cautelosos e constantes não faziam barulho, não deixavam marcas no chão já molhado pelas gotas de chuva. Agora, ela estava dois metros mais próxima da outra mulher e mesmo assim, não era possível ver seu rosto. Mas o choro... Ela conhecia aqueles soluços.
- Você tá bem? - perguntou, com a voz falha como se há muito tempo não falasse. Entretanto, fora o mesmo que falar com o nada, a garota sequer se moveu.
O choro cessou e a garota, que também usava um vestido vermelho, levantou a cabeça, mostrando a face triste e inchada. E, ao olhar para o rosto da garota, ao ver seu sofrimento, uma efervescência de recordações e emoções consumiu seu ser.
Era ela... A garota que chorava, era ela.
Mas como?
Pasmada, viu quando seu outro eu segurou a mureta, fazendo força para subir. Lembrou-se daquela cena, da sensação de tocar o concreto áspero da mureta, já tinha estado ali antes, no lugar daquela menina, que na verdade era ela. Já tinha chorado como ela estava chorando, já tinha sentido aquela certeza de fazer o que seu outro eu estava prestes a fazer.
Sabia o que ela estava pensando naquele momento: o toque do concreto... Tão áspero e inerte quanto o muro que separava a rua e a quadra de futsal do seu bairro, no subúrbio dos arredores de Brasília.
Era uma criança de aproximadamente sete anos quando se mudou para o Distrito Federal. Fora difícil deixar sua terra, no interior de Goiás, porém era o melhor para a família, mesmo ela não sabendo o porquê na época. Achou que seria difícil se acostumar com o novo lar, contudo, quando seu irmão, Gabriel, encontrou a quadra de futsal, cheia de mato e lixo, sentiu que tinham um espaço somente deles. Sentiu que havia perdido as árvores nas quais subia, mas tinha recebido em troca uma quadra todinha para que os dois pudessem brincar.
Costumavam ir ao fim da tarde, depois que saiam da escola, enquanto sua mãe ainda não havia chegado do trabalho. Corriam com toda a pressa e animação que duas crianças podiam ter, esperavam que ninguém na rua estivesse olhando e punham-se a escalar o muro. Muitas vezes, machucavam as mãos no cimento chapiscado, mas um mundo só deles estava logo atrás do paredão cinza, não podiam reclamar dos arranhões e cortes. Era um preço pequeno a se pagar.
Em pouco tempo, conseguiram limpar o lugar; retiraram o lixo, arrancaram o mato e fizeram daquela quadra um parque de diversões. Uma de suas brincadeiras favoritas na quadra era de escorregar pelo poste elétrico que iluminavam o local. Ou melhor... Não funcionavam mais, a não ser para que eles pudessem subir na trave do gol e, a partir dali, escorregarem de volta ao chão a partir do poste de ferro cilíndrico.
Em uma tarde fria e quando finalmente havia acabado de chover, os dois, sem esperar por mais nenhum segundo, correram para a quadra...
Ela não podia imaginar. Eles nunca pensaram que aquele poste velho e enferrujado podia ainda estar ligado à rede elétrica. Se ela soubesse, se ela sequer tivesse pensado nessa possibilidade antes de se deixar levar pela emoção da brincadeira, jamais teria incentivado Gabriel a subir. Ela jamais teria entrado na quadra àquele dia, se soubesse que ali seria o palco de uma tragédia tão horrenda. Talvez nunca tivesse entrado naquela quadra, sequer teria se animado a descobrir o que havia por trás do muro de cimento chapiscado.
Mesmo depois de anos, não conseguia tirar da cabeça a visão do garoto, grudado no poste velho - o mesmo poste que em tantos momentos lhe trouxera felicidade -, com o corpo mole, em convulsões. Os tempos alegres com o irmão...
Tudo acabou.
Despertou da lembrança com os movimentos do seu outro eu. Já estava com o corpo todo acima da mureta, inclinada para trás, pois ainda tinha medo de cair. Ela, vendo seu outro eu na beirada do edifício, recordava cada sensação, cada pensamento que lhe passou na cabeça quando estava no seu lugar. Sabia que naquele momento uma dúvida persistia na cabeça da garota e por isso ela continuava parada, sentada na mureta, com os pés balançando para a morte.
- Não faça isso! - ela gritou, contudo seu outro eu não lhe ouvia. - Você vai se arrepender.
Ela tinha certeza que a garota iria se arrepender... Mas, por quê? O que ela sabia que havia mudado sua forma de pensar? O que teria descoberto e que seu outro eu ainda não sabia?
Ouviu novamente os soluços da garota, mais tristes do que antes, já que as lembranças que vinham à tona eram mais recentes e doloridas.
- Mãe... - seu outro eu disse, quase cochichando entre as lágrimas, enquanto agarrava forte o tecido vermelho do vestido; e aquilo fez com que Ela mergulhasse nas mesmas recordações.
Pouco depois da morte do irmão, ela descobriu o motivo pelo qual haviam se mudado para Brasília. Sua mãe estava doente, precisava de tratamento. Na época, ela não sabia o que era tumor, sequer imaginava a gravidade de um câncer... Porém, sua mãe lutou e persistiu o bastante para que aprendesse na prática que aquilo se tratava de um pesadelo.
Tinha quinze anos quando viu sua mãe, a única pessoa que restava de sua família, agonizar em uma cama de hospital. Morrer aos poucos. Chorar por estar deixando uma garota no mundo, quando não devia se preocupar com nada além de se manter viva. Por sorte, os piores dias passaram rápido, mas deixaram um vazio que jamais seria preenchido. O carinho e a força da mãe...
Tudo acabou.
Seu outro eu abriu os braços, deixando que o vento soprasse e as gotas de chuva caíssem por seu rosto sem nenhum impedimento. Ergueu os braços o mais alto que conseguiu... A sensação de liberdade a tomou. Mais alto... Era capaz de lembrar de cada segundo de felicidade... Mais alto...
- Mais alto! - Rodrigo gritava para ela enquanto passeavam em sua motocicleta.
Rodrigo, o amor de sua vida. A única pessoa que lhe dera amor depois da morte da mãe. A única pessoa que estava junto a ela quando sua mãe partira.
Costumavam passear de moto à noite, depois que saiam do trabalho. Ele era um garçom, mas adorava o emprego que tinha. Planejavam uma vida... Uma vida toda.
- Mais alto! - ele gritava, enquanto a moto andava.
E ela erguia os braços, sentindo o vento bater em sua roupa e um friozinho na barriga por causa da velocidade. Ela se esquecia dos problemas, até sorria sem esforços quando estava ao seu lado. Ele acelerava, era um excelente motorista, fazia curvas e mais curvas com confiança; e ela, com os braços erguidos e os olhos fechados, apenas apreciava a sensação de liberdade, apenas confiava inteiramente no homem de sua vida. Tinha medo de perdê-lo, assim como tinha perdido sua família.
- Sempre vou estar com você - ele garantia.
Sempre afirmou isso com certeza.
Talvez porque jamais imaginou que, em uma ultrapassagem perigosa, sua moto, que muitas vezes os levou para os melhores encontros, para os momentos mais felizes, bateria na traseira de um caminhão. Não fora fácil receber aquela notícia. Sem chances de sobrevivência, sem chances de despedida, sem chances de uma vida toda. O amor de Rodrigo...
Tudo acabou.
Ainda com os braços erguidos, seu outro eu chorava, com a sensação de ter perdido tudo que importava na vida. Mas se elas eram a mesma pessoa, porque ela não sentia todo aquele sofrimento? Por que, mesmo sabendo das perdas, Ela sentia que a sua vida ainda tinha salvação, que ainda restava alguma esperança?
Por que estava ali, vendo aquela cena outra vez, se já tinha passado por aquilo? E sabia qual era o final...
"Sempre vou estar com você.", a frase ecoava em sua mente como um hino. Parecia importante se lembrar daquela fala. "Sempre vou estar com você... Sempre vou estar com você". Mas ele estava morto!
Um brilho emergiu de sua barriga, e por alguns segundos se esqueceu da sua outra figura na mureta. O brilho era intenso, saindo de seu ventre, iluminando aquela manhã cinza de verão. Uma luz que fazia todas as lembranças boas sobreporem às ruins. Seria aquilo, esperança? A luz não foi notada pelo seu outro eu, ela continuava decidida, chorando e olhando para os mais de setenta metros que a separavam do solo. A luz se intensificou como se quisesse dizer algo.
Mesmo não conseguindo sentir nada do mundo exterior, Ela era capaz de sentir o poder daquela luz; incandescendo e crescendo em seu ventre. "Sempre vou estar com você".
Sempre. Mesmo depois da morte. Ela entendeu o que significava a luz em seu ventre e porque sua tristeza não era tão grande. Havia, sim, esperança. Não era o fim, não para seu outro eu, que ainda estava vivo e podia salvar a luz que crescia em seu ventre. Rodrigo ainda estava com ela, de certa forma, continuava ali, através de um novo ser. Uma luz na sua vida.
Mas seu outro eu não sabia disso e estava prestes a cometer o mesmo erro que ela havia cometido. Viu a garota, com as mãos ainda esticadas para o alto e com o rosto repleto de lágrimas, inclinar o corpo para frente. Começou a cair.
- Não! - Ela gritou.
Sem pensar duas vezes, subiu na mureta, com toda a velocidade e agilidade que adquirira na infância, e saltou. Atrás de seu outro eu, atrás da salvação de seu filho... Da sua última luz.
Viu seu eu vivo caindo a alguns metros à frente, com os olhos fechados, assim como ela havia feito. O vestido vermelho balançando freneticamente com a força do vento. Certamente, para alguém de longe, a garota não passaria de um pano caindo de algum andar, pois o vestido se enrolava pelo seu corpo e escondia a silhueta humana que caia cada vez mais rápido.
O solo se aproximava, Ela teria que agir urgentemente, ou então tudo estaria perdido. Se ela soubesse que carregava uma parte de Rodrigo, jamais teria se atirado do edifício, mas era tarde. Agora só restava a ela tentar salvar seu outro eu, que a cada segundo se aproximava cada vez mais do mesmo destino que ela tivera.
Inclinou o corpo, de modo que era mais fácil da gravidade agir, e logo sentiu a velocidade aumentar. Foi se aproximando do seu eu com determinação e desespero. Estava muito perto! Tentou não se abalar com isso, ainda não era o fim... Respirou e esticou os braços; os dedos quase tocando em seu eu vivo. Esticou-se mais um pouco; quase lá. Mais um pouco...
Tocou.
E uma explosão de luz veio em seguida, deixando a manhã chuvosa um pouco mais clara e fazendo com que Ela fosse jogada alguns metros novamente para cima. Ela se afastou de seu eu, algo não a deixava se aproximar do seu eu cadente. Um desespero bateu em seu peito, oprimindo seu coração.
Quase em câmera lenta, viu a cena de sua própria morte; seu corpo vivo colidiu com o asfalto cinza escuro, o ar deixou seus pulmões de uma única vez. Seu último expiro saiu em forma de minúsculos pingos sangue por seu nariz, a vida esvaiu-se de seu corpo tão rápido quando uma gota de água evapora ao cair no asfalto quente.
Duas vidas foram tiradas.
Começou a chorar... Não estava caindo, continuava flutuando no mesmo lugar. Chorava, pois não devia ser este o fim.
Por quê?!
Por qual motivo ela estaria ali, senão para mudar o que aconteceu? Para ver a burrice que cometera? Para ver que tinha matado um ser inocente, que nem sequer teve tempo de vir ao mundo? Ou para ter a certeza de que há ferimentos na vida que nem a morte consegue curar?
Ainda chorando, sentiu a escuridão a sugar para seu interior outra vez, levando-a para as profundezas inertes sem nenhum pingo de piedade. Enquanto, no asfalto, o sangue se prolongava como um rio serpenteando, formando prolongamentos do vestido vermelho.
Tudo acabou.
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