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Às vezes, você faz coisas das quais se arrepende, mas não há nada que possa fazer a respeito. Os tempos mudam. As portas se fecham atrás de você. Você segue em frente.

Neil Gaiman

Cinco de novembro de 1888, segunda, (...) Inglaterra.

Branca e Vermelha, Alice e Copas... Bato os dedos contra a cabeça de Margaret, Stitch me encara sentado a minha frente, me sobressalto e sorrio, ele inclina sua cabeça.

- "O que houve com Cain?" – Digo engrossando a voz, ele se inclina mais. – "Olha Marcel, temos que conversar" "ah sim, vamos, pro quarto Lilith". Pode uma coisa dessas, Stitch? Eu não sou inútil, não sei por que me tratam assim... – Aperto a boneca contra o peito. – Eu quero ajudar.

A porta se abre, Cain estanca e olha de mim para Stitch, assustado, claro, esse era o quarto do Jared, ou ficava aqui antes de... Cain crispa os lábios e fecha a porta lentamente.

- Espera! – Me levanto, ele continua me encarando. – Eu saio se precisa ficar sozinho... – Olho para Stitch. – E eu posso levar o Stitch também.

- Pro inferno. – Cain bate a porta, suspiro.

- Novamente a sós, Stitch.

- Pensando bem. – Cain reabre a porta. – Precisamos conversar.

- Precisamos? – Murmuro encarando-o. – Sobre...?

- O que fazer daqui em diante. – Ele caminha e se joga ao meu lado, Stitch rosna, ele ri. – Xô diabo.

- Não fale assim com ele! – Resmungo. – Peça desculpas.

- Sinto muito. – Cain diz ironicamente. – Pois bem, você andou lendo o livro que ganhamos?

- Não. – Volto a me sentar e abraço meus joelhos. – Não quero mais saber sobre a maldita Alice.

- Ao País do Espelho, Alice proclama: Tenho um cetro na mão e a coroa à cabeça! Vinde hoje ao jantar e ninguém disso esqueça: Que Alice oferece, agora que é rainha! Pois venham comigo ao jantar, criaturas do Espelho. E conservem suas mentes bem puras! Com a Branca Rainha e a Vermelha também. Um banquete entre amigos no mundo do além!

Cain proclama encarando Stitch que inclina sua cabeça, confuso.

- O que foi isso? – Pergunto erguendo o olhar.

- Um poema do Carroll. – Cain ergue as sobrancelhas. – O que acha dele?

- Estranho. – Olho para o teto. – É como se fosse uma coroação, mas o que Alice fez para virar rainha?

- Ela atravessou as oito casas do tabuleiro de xadrez e se tornou rainha. – Encaro Cain. – Ela se encontrou com as rainhas, Branca e Vermelha, com os Tweedles e com muitos outros personagens que agora fazem sentido.

- Jaguadarte...? – Murmuro.

- Ele também, embora só seja mencionado em um poema, que já conhecemos. – Cain inclina sua cabeça. – Acha mesmo que Lewis Carroll pode ter escrito isso sem conhecer a verdade?

- Não... – Fecho os olhos. – Não mesmo, e toda vez que pergunto a alguém se ele é humano sempre mudam de assunto ou desviam a pergunta.

- Lembra-se da história que o Ikki contou? – Arregalo meus olhos. – Dizia que um humano havia prendido seu reflexo no espelho, e ele foi o primeiro a fazer isso e foi tido como louco. Eu acredito que o louco e Carroll sejam a mesma pessoa.

- Então... Então precisamos encontrá-lo, se ele estivesse aqui seria muito útil, se ele realmente for esse homem ele pode saber sobre Heartsplains e sobre toda Wonderland. – Cain me encara e sorri. – E sobre a Alice também.

- Pois sim... – Cain suspira. – Deveríamos procurar por algum indício da vida humana da Alice, se ela viveu aqui deve ter deixado vestígios.

- Se ela era daqui... – Cain ergue suas sobrancelhas. – Então quem é o reflexo dela?

- Não sei. – Ele suspira. – Outra coisa que precisamos encontrar. – Cain tamborila os dedos contra o piso. – O que você acha que aconteceu com o Abel depois que fugiu?

- Não sei... – Encaro minha saia cheia de sujeira. – Acha que ele voltou pra Wonderland?

- Não. – Cain morde o lábio. – Jared tinha dito que ele traiu Alice e fugiu de Wonderland, estava sendo mais caçado que nós dois. – Cain se vira para mim. – No labirinto eu encontrei um enviado de Wonderland, eu não sei se ele estava atrás de Bell, mas ele era um demônio. – Cain solta o ar pela boca desesperado e desvia o olhar. – Se Jared não tivesse aparecido ele teria me matado.

- Ele nos salvou mesmo, não foi? – Murmuro sentindo meus olhos encherem de lágrimas. – Era nosso anjinho.

- Sim... – Cain suspira cansado.

O silêncio fica entre nós, eu nunca tinha visto Cain dizer que amava alguém, nem ser carinhoso, mas naquele momento ele beijou Jared e disse que o amava, sempre esteve diante de meus olhos, eu só não havia percebido, eles sempre estavam juntos, Cain se refugiava em Jared quando precisava, Cain confiava nele, ele o amava de verdade, mas eu terminei com tudo isso, se ao menos eu tivesse ficado longe, se tivesse obedecido ao Jared...

Assusto-me quando Cain afasta minha franja e beija minha testa, ele se levanta e sai batendo a porta. Encaro a saída e pouso minha mão onde ele beijou, que estranho, seco minhas lágrimas e encaro Stitch.

- Isso foi, definitivamente, muito bizarro.

XXX

Deixo Stitch em seu quarto e bato a porta as minhas costas, mãos carinhosas apertam meu ombro e salto assustada. Viro-me para olhar quem está atrás de mim, Emmeline se inclina rindo.

- Desculpe-me. – Ela murmura e afaga meus cabelos. – Viu Jaken?

- Não... – Nego com a cabeça. – Estava com o Stitch até agora e...

- Gostaria de me acompanhar até meu quarto?

Encaro os olhos grandes e azulados de Emmeline, não consigo negar algo a ela. Sorrio e abaixo meu rosto.

- Sim, por favor. – Murmuro.

Ela ri e sobe as escadas, parando apenas quando Scorpio passa e a cumprimenta, depois se recompõe. Emmeline disse que amava Jaken, mas Jaken ama o Bankotsu, que disse que amava a Doll, mas noiva com Chevonne e... E isso é muito confuso. Eu não entendo algo como o amor.

Emmeline abre a porta de seu quarto e espera que eu passe, caminho até sua penteadeira e me sento em frente ao espelho.

- Há tanto tempo desde que tivemos uma conversa a sós. – Ela murmura e se senta ao meu lado. – Eu gosto muito da senhorita.

- Eu também gosto muito de você. – Sorrio e me encaro no espelho. – Talvez eu não tenha dito isso pra você, mas quando meu pai morreu e Jaken era um estranho para mim, você me confortou com sua presença e... E isso me fez gostar muito de você.

Emmeline passa os braços ao meu redor e me aperta contra o peito, ela é como a Chevonne, parece uma mãe, na verdade, se parece muito com a minha mãe. Suspiro e me afasto, seus cabelos escapam do coque e ela tenta secar as lágrimas, sorrio e me levanto.

- Vou arrumar seu coque. – Solto seus cabelos.

Emmeline ri e se endireita no banco, deslizo a escova por seus cabelos macios e longos, eu nunca a vi de cabelos soltos, seus fios alcançam sua cintura, lisos e negros, como uma boneca. Ela sorri, vou até a penteadeira e procuro por uma fita azul, prendo um pouco de seu cabelo e o resto permanece solto, ela se vira e sorri.

- A senhorita é como a Alice dos livros.

- Alice?! – Recuo e cruzo os braços. – Não me compare a ela.

- Em Através do Espelho, Alice se encontra com a Rainha Branca e ajuda-a a se arrumar, pois com a correria de seu reino a pobre Rainha vive desgrenhada.

- Você é a Rainha Branca? – Emmeline consente sorrindo. – Então Yue é a vermelha e eu a de Copas?

- Pois sim. – Ela consente. – Teu reino corresponde a tudo, enquanto eu e a Vermelha somos auxiliares, ajudantes apenas. – Emmeline dá uma batidinha suave contra seu colo.

Olho para ela por um tempo até que entendo o que ela quer dizer, sento-me no chão e apoio minha cabeça sobre seu colo, Emmeline afaga meus cabelos suavemente.

- Wonderland é dividido em três partes. – Arregalo meus olhos. – Heartsplains a terra de Copas, Queensland a terra da Vermelha e Blanchess a terra da Branca. Apesar de cada uma ter seu reino tudo pertence à Rainha de Copas, pois ela reina em Wonderland, Heartsplains é apenas a capital, onde ela reside. As outras rainhas devem monitorar seus reinos e informar a Copas a situação de tudo, nada acontece em Wonderland sem ter a aprovação de Copas.

- Por quê? – Murmuro.

- Porque sim. – Dou risada. – Ninguém nunca a questionou, só obedeceu, e quem for contra ela...

- Cortem-lhe a cabeça. – Sorrio e me afasto encarando Emmeline. – E o Jaguadarte?

- Ah Lilith, eu não sou a Branca, não me lembro de nada, só sei o que me contaram. – Ela encara o nada. – Ele era maldoso, vil e forte, só o obedeciam por meter medo em todos.

- Cain continua assim... – Suspiro. – Os olhos... – Deito minha cabeça em seu colo. – Ele nunca vai obedecer ninguém.

- Ele obedecerá um dia... – Emmeline ri baixinho. – Quando amar de verdade, você vai ver como uma fera pode ser domada.

Encaro-a, Emmeline sorri e dá uma batidinha no topo da minha cabeça, ora, Cain já amou e mesmo assim não mudou em nada, depois que perdeu Jared ele ficou mais doce, mas mesmo assim não é um avanço, ainda acho que são os remédios e as noites sem dormir que o deixam desse jeito.

Balanço minha cabeça e tento afastar esses pensamentos.

- Bem, vou me retirar. – Digo me levantando e limpando a saia. – Tenha um bom dia Emmeline.

Vou em direção a porta e a bato, quando ergo meu olhar recuo até acertar as costas na madeira, não estou no corredor e sim em uma sala, a boa e velha sala de Marcel, este que está atrás da mesa com o rosto pousado sobre as mãos unidas, Cain se vira e me encara, ele está sentado em uma cadeira ao lado de Jaken, que parece bem entediado com tudo isso.

- Pensei que nunca viria. – Marcel resmunga. – Sente-se, tenho coisas a tratar, coisas sobre os Maurêveilles.

- Que tipos de coisa...? – Murmuro me aproximando de Cain.

- Coisas da fábrica. – Cain suspira. – Sinceramente, tinha me esquecido que ela existe.

- Não é você que paga as contas. – Marcel diz indignado.

Não acho que a casa Nonsense precise pagar muita coisa, na verdade, não sei como essa casa se mantém, tudo parece estar sempre ao alcance das nossas mãos e sempre que precisamos, sento-me em frente a Marcel, ele me estende um envelope aberto, a grafia inclinada dificulta um pouco a leitura, seguro a carta e leio:

Caro Sr. Maurêveilles

Pedimos ao senhor que compareça a fábrica no dia 9 (nove) de novembro, sexta-feira, juntamente com os senhores Aznavour e Thompson para uma reunião de administração semestral.

Desde já, o agradecemos.

Ass: Mr. George.

- Tudo bem... – Abaixo a carta. – Cain precisa comparecer a essa reunião.

- Não só eu. – Ele responde irritado.

- Pelo visto, como se esqueceram de mencionar nesta linda cartinha, o "Sr. Maurêveilles" não é oficialmente o conde, outro adendo é que em minha estadia em Wonderland, Bankotsu e Chevonne entraram com um processo de legalização como pais dos dois. – Jaken ri e se apoia na mesa. – E agora que infelizmente eu estou de volta, foi anulado e bem... – Jaken me encara. – É bom você se apresentar também.

- Por quê? – Indago irritada.

- Bem... – Cain respira fundo. – Digamos que não fomos apresentados a sociedade devidamente, nosso pai sempre preservou nossa imagem, no caso a sua, já que eu estava longe. Dessa forma quem nos conhecesse é apenas a nossa pequena e reservada família. – Cain ri sarcasticamente. – Que se resume a velhos decrépitos, nosso falecido pai e nós.

- E você? – Me viro para Jaken. – Vai conosco? Bankotsu e Chevonne também?

- Ei, não é um passeio. – Marcel diz irritado. – Vocês três e só.

- Vai nos deixar sair? – Cain se apruma na cadeira. – Todas as vezes que saímos acarretamos algum problema. – Ele se inclina e sorri. – Tem certeza disso, senhor Marcel?

- Já disse o quanto você é dissimulado, Cain? – Marcel sorri.

- Não que eu me lembre, senhor Marcel. – Cain sorri.

- Dessa vez sou forçado a consentir com qualquer loucura. – Marcel se levanta e caminha impaciente. – Temos que manter a vida "normal" de vocês lá fora, para a sociedade, aqui dentro sabemos como são de verdade, certo, mister Cain?

- Pro inferno. – Cain resmunga afundando na cadeira.

- Sim. – Marcel ri. – É essa carinha que lá fora diz "sim, senhor, entendo perfeitamente bem" "pois sim, creio eu que esta seja a melhor solução" ou ainda "não aprecio crueldades, veja, sinto tanto pesar por meu falecido pai..."

- Nunca disse isso. – Cain protesta.

- Mas dirá na reunião. – Marcel se apoia na mesa e o encara triunfante. – Se o perguntarem se compreendeu responda sempre que sim, concorde com os outros, não grite nem diga que é tudo seu, você só tem um pouco mais da metade daquilo, e se perguntarem sobre Oscar diga todo seu pesar, isso se aplica a mocinha também.

- E digam que estive doente e me tratando fora do país. – Jaken resmunga. – Não digam que sumi sem motivos.

- É tudo um teatro. – Marcel suspira. – Vocês só precisam atuar de acordo com a peça e tudo vai dar certo.

- Acho bom Scorpio nos acompanhar também... – Cain sussurra receoso. – Pode se apresentar como médico da família, afirmaria o desaparecimento de Jaken e bem... – Ele mexe os ombros, desconfortável.

- Te doparia caso perdesse o controle. – Marcel sussurra. – Até que você usa a cabeça, Cain.

Cain dá de ombros e desvia o olhar, suspiro e apoio o rosto nas mãos.

- Teremos que fazer isso?

- Sim, e bem... – Marcel tamborila os dedos na mesa. – Estarão sendo protegidos de longe, não acho bom andarem assim, eu... Eu fico preocupado. – Ergo as sobrancelhas. – Não quero que... – Marcel nos encara e depois se vira de costas, mexendo em sua estante.

- Não quer que a gente termine como o Jared. – Cain diz irritado, me viro para ele. – Você também sabia que ele era uma carta.

- Pois sim, eu sabia... – Marcel nos encara. – Eu acreditei naqueles olhinhos verdes e em suas lágrimas falsas.

- Não eram falsas... – Cain solta o ar pela boca, suas pupilas mudam.

Marcel arregala seus olhos e volta a fitar sua estante, ele suspira e gira nos calcanhares encarando Cain.

- Desculpe-me. – Marcel tenta sorrir, mas logo desiste. – Eu realmente acreditei nele, e sinto muito pelo ocorrido, eu queria que ele tivesse voltado com vocês, de certa forma, ele animava o local... – Marcel encara o relógio na parede. – Se fizerem o favor de sair eu agradeceria.

- Tenha um bom dia... – Murmuro.

Cain e Jaken vêm em meu encalço, batendo a porta ao passar.


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