Reflexes
- Não – disse. – Não sou o outro coisa nenhuma. Sou eu. – inclinou a cabeça para o lado, os olhos verdes brilhavam. – vocês, pessoas, se esparramam por toda parte. Nós, gatos, nos mantemos íntegros, se é que me entende.
Neil Gaiman
Primeiro de novembro de 1888, quinta-feira, (...) Inglaterra.
Encaro o prato de torta de rins e afasto a fatia para longe, Chevonne morde o lábio.
- Você prrecisa comerr e...
- Não sinto fome. – Enterro o rosto nas mãos. – Não adianta insistir.
Ela suspira pesadamente, comer é raro, começo realmente a acreditar que estou morto. Dormir é algo que eu não venho fazendo, mas ter sono é constante, só não quero dormir. Não quero encarar os fantasmas que atordoam meus sonhos.
Solto o ar pela boca, consigo sentir o sorriso de satisfação dele, Jaguadarte, eu não cumpri com o prometido, não matei Abel e agora ele me cobra essa dívida, quando não resolve me mostrar memórias disfarçadas. Pesadelos ou lembranças dão tudo na mesma.
Afasto-me da mesa, Chevonne me encara preocupada, encaro a torta mais uma vez e suspiro, me forçando a enfiar aquilo goela abaixo só para ela me deixar em paz. Assim que consigo deslizo para fora da mesa, eu preciso dela.
Caminho devagar pelos corredores, não consigo mais sentir as asas, tampouco abri-las.
Encaro minhas unhas curtas, por mais que eu esfregue a coloração arroxeada se tornou natural, como todo o aspecto doente que se espalhou por meu corpo: olheiras mais fundas, pele mais branca, e quando acordo dos pesadelos garras negras, as mesmas que rasgaram Abel inutilmente, as mesmas que arranharam Barbie, Chevonne... Lilith.
Paro por um minuto e suspiro, eu não me lembro de ter atacado-a, eu me lembro apenas dela: olhos vermelhos, cabelos de fogo e um sorriso nos lábios, minha Rainha.
Encosto as costas na parede e deixo um gemido baixo escapar, eu preciso dormir ou vou enlouquecer, arrasto meus pés até encontrar quem procuro, Scorpio ergue as sobrancelhas a me ver.
- Ora, ora... – Ele sorri e dá uma batidinha em minha cabeça.
- Morfina. – Murmuro, Scorpio suspira. – Por favor, eu preciso dormir de verdade, não... Não cochilos.
- Eu não gosto de fazer isso. – Scorpio me encara com seus olhos cinzentos, como os dele... Abaixo a cabeça. – Cain, você é só uma criança, usar morfina para dormir pode matá-lo e...
- Eu já morri... – Murmuro.
Scorpio suspira pesadamente, parece vencido. Afasto a camisa do braço, pontos roxos se espalham por ele, começamos com doses pequenas, mas elas pararam de fazer efeito, eu sei que Scorpio odeia isso, eu odeio depender de drogas para dormir. Fecho os olhos quando sinto a picada no braço, ela não me irrita mais, tem coisas piores: os sonhos.
Os sedativos barram os sonhos, eles me impedem de encarar meu inimigo, minhas pálpebras ficam pesadas, meu corpo amolece e desabo, sentindo Scorpio me segurar como um bebê antes do mundo escurecer.
XXX
Encaro a sala branca, droga. Vou pedir para Scorpio aumentar a dose da próxima vez... Bato os dedos contra o chão branco e sem forma. A intenção de me dopar é a de que eu não tenha pesadelos. Suspiro, que isso acabe logo:
- Vamos lá... – Murmuro. – Está na hora da nossa conversa.
"Há um bom tempo."
Arregalo meus olhos, Christopher se materializa como Chess e para com as mãos nos quadris. Encaro-o nos olhos, não tem íris vermelhas, mas Jaguadarte gosta de me enganar.
- Christopher? – Resmungo. – Por que não se transforma em dragão e cospe fogo?
"Por que eu não posso fazer isso."
Ergo as sobrancelhas, ele se senta, parece-se com Christopher... Mas sei que Jaguadarte assume várias formas, e eu já acreditei em muitas delas, e sempre acabei me arrependendo.
Ele inclina sua cabeça e suspira sua feição entristecendo.
"Sinto muito pelo Castrato" – Arregalo meus olhos, minhas mãos suam. – "Ele disse-me que sente sua falta, mas está feliz."
Jared.
Aperto o terno entre os dedos, as lágrimas queimando minha garganta, esfrego os olhos com força e fecho a cara.
- O que você quer? – Murmuro.
"Desculpar-me..." – Ele suspira. – "Não consigo protegê-lo dos sonhos, ele é mais forte..."
"Ele". Abraço meu corpo, ele me domina, ele me assusta, ele me atormenta, Jaguadarte.
"Oh Cain, je t'aime..."
- Não tem nada disso aqui. – Endureço a expressão e o encaro. – Eu não o amo, você sabe disso.
"Você me ama como um irmão." – Chris ri baixinho. – "Seu coração não me pertence. Mas também não tem dono. Você é indomável..."
Ele ri, deixo um sorriso escapar, Chris me encara, os olhos sem vida brilhando levemente, apoio as mãos contra o piso frio.
- Se você fala com o Jared, significa que pode encontrar-se com Raphael?
"Não." – Chris abaixa o olhar. – "Na verdade eu não vejo ninguém, mas eu sinto." – Ele abraça o próprio corpo translúcido. – "E eu me sinto como ele, por isso posso falar por nós."
As lágrimas queimam de novo, dessa vez mais forte, mordo o lábio com força, eu destruo vidas, eu acabo com sonhos de quem eu deveria proteger suspiro pesadamente, meu corpo reclama, sinto-me mole.
"Hora de acordar..."
Chris ri, fecho os olhos.
- Eu me esqueci de te dizer... – Abro os olhos, ele me encara curioso. – Eu sinto saudades de te ouvir tocar.
Chris sorri, e abaixa o olhar, posso até jurar que está corado, sorrio também e desabo, sentindo minha consciência me deixar.
XXX
Abro os olhos pesadamente, não tem ninguém me segurando, mexo as mãos, não estou amarrado... Eu realmente estava dormindo? Sento-me, Scorpio deve ter-me trago para o quarto, encaro a janela escura, eu dormi por um dia inteiro, sem vozes, sem pesadelos, sem acordar assustado e tomar mais sustos por ver pessoas tentando me prender ou me sedar...
A porta se abre e Lilith para me encarando, os olhos assustados. Sorrio e me jogo contra os travesseiros.
- Cain? – Ela sussurra.
- Rainha de Copas? – Respondo. – Minha cara há quanto tempo, oh, como assim? Não tem uma joia? – Encaro-a, Lilith ergue as sobrancelhas. – Pois vou presenteá-la, sim, vou sim, minha dama. – Tapo os olhos com as mãos. – Podes adivinhar quem eu sou?
- Cain... – Ela ri e se aproxima, encaro o teto e sorrio.
Sorrir ficou mais fácil ultimamente, aconchego-me na cama quentinha, eu sei que não vou dormir mais, mas mesmo assim é bom...
- Marcel disse que vai arranjar livros para nós. – Lilith diz se sentando na cama. – Alice.
- Através do espelho... – Murmuro. – Sim, precisamos ler isso. – Estico meu braço e o jogo sobre o colo de Lilith. – Eu não sabia o que era um Jaguadarte, quando disseram que era um dragão eu aceitei. Agora sei que é mais que isso, é um monstro.
Ela aperta minha mão, engraçado, ela está quente, ou meu aspecto morto me impeça de esquentar. Lilith ergue a manga da minha camisa e crispa os lábios.
- Se dopando...? – Ela desvia o olhar. – Talvez essa seja a razão para as mudanças de humor.
- Não... – Inclino meu rosto, ela me encara. – Eu estou louco... – Sussurro.
Lilith sorri, sorrio também e rolo na cama deixando mais espaço livre, ela se deita e se encolhe contra meu peito, afago suas costas e sorrio.
De cabelos curtos ela se parece com Abel... Minhas pálpebras pesam, sim, se parece muito, o mesmo rosto arredondado, o mesmo cabelo emoldurando o rosto, os olhos caídos... O sorriso...
Abel... Onde ele está?
Meu corpo amolece como se as drogas estivessem fazendo efeito, estranhamente não sinto medo de dormir, é como se tivesse alguém me protegendo, alguém que não vejo, mas sei que está sempre comigo... Fecho os olhos pesadamente e sorrio.
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