London

"O inferno é uma cidade... uma cidade esfumaçada e populosa. Existe aí todo tipo de pessoas arruinadas e pouca diversão, ou melhor, nenhuma, e muito pouca justiça e menos ainda compaixão".

Percy Bysshe Shelley

Oito de novembro de 1888, quinta-feira, (...) Inglaterra.

- Tem certeza...? – Murmuro, Cain consente. – Então a Fox é do Outro Lado, ela estava lá antes de Alice chegar...

- Agora o que ela era é algo difícil de dizer... Eu não faço à mínima ideia, Alice era só uma criança normal, não vejo nenhuma outra criança assim em Wonderland. – Cain une as mãos em frente aos lábios. – Mas isso explica Fox ter se tornado chefe da Nonsense, ela quer ter de volta o que é seu.

- Sobre chefe da Nonsense... – Desvio meu olhar.

- Oscar... – Cain solta um "tsc" de desprezo. – Gostaria de conhecer quem o matou para agradecer.

- Cain! – Resmungo. – Ele ainda é nosso pai...

Cain se senta e franze as sobrancelhas, será que se arrependeu? Encaro-o por um tempo, ele continua imóvel, finjo uma tosse e ele se vira me encarando perplexo.

- Tem algo de errado nisso. – Ele murmura. – Alguém matou nosso pai e nunca foi encontrado. Bell... – Cain respira fundo. – No labirinto, quando Vorpal perdeu o controle Bell disse: "não me deixem como o papai".

- Cain, por favor, papai passou a vida toda em casa...

- Ele viajava. – Cain volta a fitar o nada, está pensando, juntando as coisas. – Ele não ficava em casa, eu sei disso.

- É... – Encolho os ombros. – Ele ficava longe alguns dias, mas sempre voltava.

- Isso é suspeito. – Cain se inclina, apoiando o rosto nos joelhos.

Papai não podia ir para Wonderland, ser chefe da Nonsense já era vida criminosa demais para ele, esconder duas personalidades, controlar uma fábrica e ser um pai quase ausente... Apoio o rosto nas mãos, ele pode muito bem ter feito isso.

Deixo minhas pálpebras caírem, mas mesmo assim, Bell não podia... Papai... Arregalo meus olhos. Cain me encara de relance.

- Bell disse... – Engulo em seco. – Quando Ikki morreu, ele disse que o nosso pai tinha lhe dado o veneno, ele disse que o papai tinha dado para o P.T que por sua vez deve ter entregado ao Bell.

- P.T... – Cain desliza um dedo por seu lábio. – Como Abel era de circo faz sentido os dois terem contato. Uma criança com olhos de duas cores com certeza ia parar nas mãos daquele sapo gordo, naquela vez que fomos ao seu encontro ele disse que era um velho conhecido de Oscar. – Cain morde o lábio. – Isso está me cheirando muito mal.

- Marcel disse que Bell tinha sido encontrado em um orfanato! – Guincho. – Há quanto tempo será que o Bell fugiu da Wonderland?

- Não sei... – Cain volta a se inclinar. – Ele não seria tão exato e idiota para me dizer, mas acho que eles já estavam aqui há algum tempo, Jared já tinha passado por muitos circos. Abel também... Eu não sei mais... – Cain suspira cansado. – Eu simplesmente não sei mais de nada.

Suspiro também e me apoio na parede, do outro lado do quarto minha cama está bagunçada, a janela que dá pra lugar nenhum está escura, somente o céu é visível. Inclino-me e imito Cain enterrando o rosto nas coxas, ele está com manias mais estranhas do que nunca.

- Não quero ir naquela reunião amanhã. – Murmuro.

- Nem eu. – Cain completa. – Mas somos obrigados.

- Espero que não façam perguntas difíceis... – Choramingo.

- Sobre o que? – Cain ri. – Qual a melhor maquina de fiar? Ou se querem colocar máquinas a vapor novas... Ou quem sabe funcionários acidentados querendo atear fogo à fábrica.

- Não entendo de nada disso...

- Você é só uma criança.

Levanto-me irritada. Cain me encara com olhos desfocados.

- Depois de tudo o que passei como você ainda tem coragem de me chamar de criança? – Disparo.

- Tem doze anos. – Cain volta a enfiar a cara nas pernas. – Ainda é uma criança. – Cruzo os braços. – Assim como eu.

Solto o ar e descruzo os braços. Cain que nunca fraqueja, Cain que se mostra um demônio na frente de todos, é o mesmo Cain que está aqui encolhido na minha frente afirmando que é uma criança? Aperto as mãos em punho, embora sejamos da Nonsense, a Nonsense não é nada, amigos, companheiros, guarda-costas, não temos nenhum laço verdadeiro com ninguém, mas nós não. O mesmo sangue, a mesma origem maldita, se tem alguém que eu deveria confiar é nele, e ele deveria fazer o mesmo, e acho que o novo Cain está tentando fazer isso mais do que o antigo.

Sorrio e volta a afundar meu rosto nas pernas.

XXX

Encaro-me no espelho e respiro fundo, alguém escolheu minhas roupas, algo que tenta me fazer ser adorável... Um vestido branco.

Aposto que isso era da Barbie, as mangas estão dobradas e a barra encosta no chão. Eu não quero parecer uma boneca para estranhos, eu quero ser eu, mas se não fizer os gostos da Nonsense não saio dessa casa. Dou uma última olhada no espelho e suspiro, desço as escadas com cuidado pra não pisar no vestido e rolar até lá embaixo.

Quando chego ao hall vejo Jaken e Scorpio conversando, parecem tranquilos demais. Sento-me em uma poltrona e afundo nela.

- Está uma gracinha Lilith. – Scorpio sorri. – Deveria usar mais branco.

Resmungo e reviro os olhos, Jaken ri.

- Essa é a monstrinha que eu adoro. – Ele se apoia nos braços da poltrona. – Lembra quando te levei a minha casa? Prometi te dar algo que a agradasse, podemos passear por Londres, que tal?

- Não quero... – Suspiro. – Já disse que não gosto que me bajulem.

Jaken sorri, foi essa a resposta que lhe dei a primeira vez, escuto passos na escada e me viro, Cain desce usando roupas antigas, infantis, mas trajes finos. Ele salta o último degrau e nos encara.

- Está horrível. – Jaken se inclina. – Vão pensar que é alguma criança da fábrica.

Cain arregala os olhos, encaro Jaken boquiaberta, Scorpio ri e começa:

- Não mostre suas garras conde, ou senão o levam para um show de horrores sem pestanejar.

Cain abre a boca e já espero pelos insultos, mas ele sorri e faz uma mesura. O que?

- Sinto se não os agradei, pois é uma reunião formal e não um desfile. – Ele fecha a cara e seu sorriso desaparece. – Não precisam agir desse modo infantil, eu aprendi a controlar os olhos.

E para fechar a discussão ele afina suas pupilas e depois volta a nos encarar com olhos normais, engulo em seco, se ele aprendeu isso pode voltar a abrir as asas e quem sabe mais o que... Ele vai deixar de ser humano... Encaro minhas mãos e respiro fundo, ele não vai fazer isso, porque é o Cain.

XXX

Desço da carruagem e piso na lama, parece que choveu muito por aqui. Encaro as ruas cinzentas, algumas pessoas passam apressadas, sinto Jaken apoiar uma mão grande em minhas costas e me empurrar, passamos pelas pessoas que vêm, algumas bem vestidas, outras miseráveis, encaro uma moça parada em uma parede, engulo em seco, que Jack não volte a atacar... Jaken para e me viro para um portão grande, fumaça sobe das chaminés altas e tudo em volta parece podre e cinza, engulo em seco.

- Fábrica...? – Murmuro. – Pensei que fossemos a algum prédio...

- Nunca vim até aqui... – Cain encara os portões sem expressão.

- Bem, metade disso é de vocês, dessa e de mais algumas. – Jaken murmura e esmurra o portão. – Acho bom conhecer sua herança.

Um guarda baixinho abre o portão com chapas de ferro tampando a visão do seu interior, ele nos encara de cima a baixo e depois mexe em seu chapéu coco.

- Pois não...? – Ele sussurra.

- Viemos para a reunião. – Jaken diz alto. – Jaken, Cain e Lilith Maurêveilles e Scorpio Hinckley, meu médico.

- Ah... – O velho nos encara com um pouco de medo, engulo em seco. – Estão os esperando.

Passo por ele e encaro o pátio sujo... Também tem lama aqui dentro, lama por toda parte, os galpões grandes estão um pouco distantes, caminho em direção a eles, e quando nos aproximamos posso ver que não está tão vazio quanto eu tinha imaginado.

Existem máquinas grandes, com mais de uma pessoa sentada em frente a elas, em geral mulheres, estão fiando... O guarda segue na frente e nos guia por um corredor de muro baixo separado da fábrica. Caminho sem desgrudar os olhos do que estou vendo, algumas crianças estão abaixadas, pegando linha e algodão, crianças menores que eu... Algumas nos encaram com olhos grandes e assustados... Desvio o olhar e encaro meus sapatos sujos, eu não pensei que fosse assim, para mim era um lugar respeitável onde todos trabalhavam de forma justa. O mundo aqui fora não é nada justo.

O homem para e abre uma porta velha, Jaken e Scorpio entram primeiro, sigo os dois quieta, Cain faz o mesmo, a sala que entramos é melhor que a fábrica, na verdade é uma ante-sala, a porta do outro lado está fechada e na que estamos só tem uma mesa pequena no centro, um sofá minúsculo e flores mortas, Jaken diz algo sobre precisar entrar primeiro e assim ele e Scorpio desaparecem pela porta.

Sento-me no sofá e encaro a barra suja do vestido.

- É horrível... – Sussurro. – Todas essas pessoas tristes, trabalhando sem parar... As crianças... – Minha voz desaparece.

- Pensou que eram todos felizes? – Cain diz friamente. – Para nós ficarmos no topo alguém tem que sujeitar a lama. – Encaro-o. – Somos nobres, eles não tiveram tanta sorte.

- Não é questão de sorte... – Digo exasperada. – Justiça...

- Uma menininha sábia. – Ergo meu rosto, um rapaz nos encara da porta que dá para a fábrica. – Parece com a Val.

Ele abre a porta e se aproxima, cabelos claros e olhos negros, quase não posso ver suas pupilas, aperto as mãos no colo, Cain ergue as sobrancelhas e o encara.

- Quem é você? – Cain dispara.

- Eu...? – Ele ri. – Allyson, Allyson Thompson. – Ele faz uma mesura. – Tive que acompanhar meu pai, disse que precisava ver os assuntos da fábrica. – Ele revira os olhos, sorrio. – Concordo com você pequena, isso é deplorável.

- Sim... – Ele sorri, sinto meu rosto esquentar e encaro meus sapatos. – Lilith Maurêveilles. – Acrescento num sussurro.

- Cain Maurêveilles. – Escuto-o dizer ao meu lado.

- Ah, os filhos do Oscar. – Allyson ri. – Eu me lembro dele, era muito sério, que nem você Cain...

- Allyson. – Ergo meu rosto, agora uma moça entra na saleta. Cabelos castanhos presos em um coque alto e um vestido apertado, ela me encara. – O que essas crianças estão fazendo aqui?

- São os Maurêveilles Val! – Allyson anuncia. – Lembra do Oscar?

- Pro inferno o Oscar. – Ela puxa a barra do vestido e passa reto sem nos encarar. – Já sou obrigada a vir a esse chiqueiro ainda me trazem bebês. – Ela entra na sala ao lado sem bater.

- Perdoem a Valerie. – Allyson sussurra, ele me encara e suspira. – O pai dela está no fim sabe? Tuberculose, a mãe não conseguiu ninguém para estar aqui hoje e ela veio a contragosto.

- Vocês parecem muito íntimos. – Cain comenta.

- Somos amigos de infância. – Allyson ri. – Poderíamos ser amigos também e...

Cain se levanta e assim como Valerie entra na sala sem se anunciar, Allyson me encara desamparado.

- Tudo bem, ele é assim. – Balanço meus pés. – Podemos entrar?

- Acho que agora podemos. – Ele ri e me estende sua mão. – Me permite senhorita?

Sorrio e salto do sofá, aceitando sua mão, Allyson é um cavaleiro muito educado, mas sei que essa reunião vai ser mais desagradável do que imaginei.

-XXX-

Olá meus queridos leitores, eu ressurjo por aqui, primeiramente para agradecer por The Ripper ter alcançado 10 K pode parecer pouco, mas para mim é um número muito grande ;v;  

Agora falando desse capítulo, é muito difícil achar textos do período vitoriano sobre fábricas, geralmente só falam de greves ou de tragédias, raramente explicam como era seu interior, então, para ambientar esse capítulo eu usei referência em fotos e na minha memória sobre as aulas de história, mas não confiem muito nisso não :v

Por fim, os personagens que aparecem no final foram criados para um conto que eu estava escrevendo, mas nunca terminei, e bem, como se passava no mesmo período que FH eu resolvi deixar Valerie e Allyson dizerem um "oi" para as crianças Maurêveilles. 

Bem, é isso, muito obrigada pelas leituras e beijos *3* ❤ 

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