Heartsplains

Minha bela dama,

Por que encara

O pobre Sr.Joker?

És muito rija

E quase tão afetada

Como se tivesse comido

Uma carta de baralho!

L. Frank Baum

Dois de novembro de 1888, sexta-feira, (...) Inglaterra.

Sento-me na poltrona e seguro o livro a minha frente, Alice. Cain está de cabeça para baixo, os olhos cravados nas letras do livro, o Cain normal não leria um livro de cabeça para baixo, mas os remédios mexem com sua personalidade, talvez Jaguadarte também faça isso.

Deixo um longo suspiro escapar. Eu não consigo me concentrar. Levanto-me e saio da sala, Cain nem ao menos ergue o olhar quando saio, passo pelas escadarias e entro na porta embaixo da escada.

Stitch sorri, sorrio de volta. Os dias que ficamos no circo fizeram bem para ele, Marcel diz que foi "domesticado", sento-me, ele se aproxima e se senta ao meu lado, encaro-o de relance.

- Precisa de costuras novas. – Digo alto, ele olha o próprio corpo. – Está todo esfarrapado, Stitch!

- Stitch está? – Ele levanta um braço e sua costura se abre. – Uo-oh.

- Vamos passear pela casa? – Ele consente e se levanta. – Vou pedir a Chevonne que o costure.

Ergo-me e caminho com ele ao meu lado, quando subimos o primeiro lance de escadas cruzamos com Barbie. Ela franze o nariz, ignoro-a e continuo subindo.

- Quer que eu costure? – Estanco e me viro.

- O que? – Resmungo, Stitch arregala seus olhos negros. – Está tudo bem. – Sorrio para ele, que sorri de volta, não é bom tê-lo atacando Barbie. – Chevonne pode costurá-lo, obriga...

- Chevonne saiu. – Encaro-a. – Ora, vamos lá.

Barbie puxa Stitch pela mão e sobe as escadas, ela deve ter ficado próxima dele quando saí, empino o nariz e a sigo, ela escancara a porta do quarto e entra com Stitch, entro atrás dela.

Engulo em seco, parece que todas as bonecas da sala de baixo vieram para cá, olho de um lado ao outro, mas Doll não está aqui, sento-me timidamente na cama de dossel rosa e balanço meus pés. Barbie tira uma caixa enfeitada de dentro do roupeiro e se senta na cama, ela puxa um carretel de linha púrpura e cantarola quando a passa pela agulha, dando o primeiro ponto.

- Você não sabe costurar?

Demoro um pouco para perceber que ela perguntou para mim, olho de um lado ao outro e suspiro negando. Barbie puxa a linha com os dentes e ergue o braço de Stitch, reforçando os pontos.

- Minha mãe disse que toda mulher precisa costurar. – Seus olhos estão focados na costura, mas assim é melhor. – Sua mãe não te ensinou isso?

- Minha mãe morreu quando eu tinha dois anos. – Encaro a barra do vestido. – Eu não tive nenhum ensinamento além das lições de linguagem e geografia, sei contar também.

- Sabe cozinhar? – Ela me encara, nego. – Como você quer cuidar de uma casa assim? Desse jeito nunca vai casar.

- Não quero casar. – Encaro meu reflexo na penteadeira rosa dela. – não quero ter filhos também, eu quero que essa história de Maurêveilles pare por aqui, minha tia também não tem filhos mais, estamos fadados a extinção.

- Você fala como se fossem animais. – Ela dá um tapinha em Stitch. – Prontinho Tchti.

Puxo minhas pernas contra o peito, ela sorri e espana a poeira da roupa de Stitch, volto a olhar as bonecas nas prateleiras.

- Como é brincar com elas? – Murmuro.

- Vai me dizer que você não tinha bonecas?

- Meu pai nunca me deu uma. – Evito seu olhar. – Mas um dia uma governanta me deu, mas ela se quebrou quando eu a derrubei. – Encaro o chão. – Eu ganhava livros e giz para colorir, sei jogar cartas, mas eu não tinha ninguém para brincar.

- E Cain? – Ela afina sua voz.

- Cain ficava no internato. Ele mudava muito de lugar, mas nunca vinha para casa, nem no natal.

Barbie se levanta e analisa as bonecas, pegando uma com um vestido verde graciosamente bordado, seus cabelos são vermelhos e os olhos azuis e límpidos. Barbie me estende a boneca.

- O que? – Recuo um pouco.

- Leva. – Ela sorri e pela primeira vez posso ver como é bonita. – Essa é pra você, o nome dela é Margaret, fui eu que fiz o vestido.

Seguro a boneca no colo, Stitch se enrola na cama e ronrona como um gato, seus olhos se fecham rápido, encaro a boneca e tento deixá-la sentada, mas é difícil.

- Eu também tinha um irmão. – Barbie encara as bonecas. – Eu não me lembro dele, mamãe disse que eu pensei que era uma boneca e o derrubei no chão, ele morreu rápido. – Encaro-a e seus olhos estão marejados. – Depois disso, ela me trancou em uma sala branca, os médicos me davam injeções, eles diziam que eu estava louca... – Ela ri. – Eu comecei a entender como as drogas funcionavam e a evitá-las, até que um dia ela resolveu me tirar de lá e me ignorar.

Barbie passa as costas das mãos sobre os olhos, quando ela ergue o olhar encaro a boneca, eu não sei o que dizer. Aperto os lábios e afago o cabelo macio de Margaret.

- Eu a via costurando e sussurrando "toda mulher deve saber costurar", mamãe não me via mais como filha, mas mesmo assim eu aprendi tudo certinho. – Ela ri. – Quando eles descobriram que o conde Oscar tinha morrido quiseram me casar com o novo Conde sem pensar duas vezes, eles foram atrás dele, mas ninguém os encontrava. E quando o encontraram me deram sem nem pedir um dote, sem se preocupar, só para eu sair daquela família. – Encaro-a. – Mas eu tenho uma família aqui e gosto bem mais dessa.

- Eu também... – Sorrio, Barbie ri também, desvio o olhar para a boneca. – Aqui é minha verdadeira casa, e ninguém vai me tirar isso.

- Margaret querida. – Barbie se levanta. – Hora do chá minha cara. – Ela coloca uma bandeja prateada no chão, onde xícaras e louças da cozinha estão empilhadas. – Pois não? Ah sim, venha Devonne. – Ela senta a boneca em uma ponta da bandeja. – Vamos convidar mais damas?

Demoro a entender o que ela quer dizer, e quando Barbie desce as bonecas da prateleira ajudo-a a deixá-las em volta da bandeja como se fosse uma mesa, e arrumo a louça a sua frente, em pouco tempo Stitch desce da cama e se distrai tomando seu chá imaginário.

Eu não pensei que seria divertido assim ficar com essa maluca.

XXX

Barbie desaba no colchão e quando percebo ela está dormindo, pego Margaret pela mão e Stitch me segue de perto, saltito pelas escadas e o levo de volta para seu quarto, Stitch desaparece pela porta e suspiro, sozinha de novo.

Viro-me e esbarro no nada, recuo atordoada e Chess sorri esticando sua mão para mim, abaixo o olhar e aceito-a, desde que voltamos ele não é o mesmo, ninguém é mais o mesmo, Cain e Chess vivem discutindo, "você deixou ele morrer"... As palavras sempre se repetem.

- Minha dama... – Encaro-o. – Andas tão reclusa que temo que a trocaram por Cain. – Chess revira os olhos. – Ele anda bem animado ultimamente.

- Você sabe que ele não tem culpa. – Sussurro. – Scorpio disse que os remédios mudariam o humor dele.

Cheshire desaparece e ri, uma risada dengosa, sinto seus dedos apertarem meus ombros e seus lábios em minha orelha.

- O Tagarelão é bem animado, minha dama.

- Ora Chess! – Fecho as mãos em punho, a boneca fica pendurada. – Não diga palavras que eu não...

Sou virada de cabeça para baixo, o que? Grito me debatendo com o nada, meu vestido se dobra e tampa minha visão, droga de saia longa, debato-me até ouvir Chess rindo, e gargalho também. Meu mundo todo volta ao normal, mas mesmo assim continuo longe do chão, sorrio e passo os braços ao redor de Chess.

- Sinto falta da minha dama sorrindo. – Ele murmura.

- Sinto falta... – Repito, ele ronrona baixinho. – Sinto falta do Jared...

Chess solta o ar pela boca, mordo o lábio.

- Desculpe. – Desvio o olhar, mas continuo o apertando. – É que...

- Não foi sua culpa. – Chess sussurra e me solta no chão, desaparecendo. – Se ele não tivesse se sacrificado ainda estaríamos presos naquele labirinto. – Aperto a boneca entre os dedos. – Entenda Cain.

Estanco, ele me chamou de Cain?

Engulo em seco e olho para trás, Cain está parado no patamar da escada, os olhos fendidos, recuo um passo, ele sobe as escadas sem se importar comigo, prendo a respiração e o sigo apressada.

Ele parece mais rápido do que quando era só ele, paro na escada arfando... Um momento, não é Cain que está mais rápido, eu cansei porque essas escadas estão maiores. Puxo o ar com força e volto a correr, a escada diminui e fica frágil, estamos indo para o sótão... Agarro a portinha com força e a empurro, Cain não trancou a porta por dentro, passo os braços para cima e iço meu corpo.

- Cain...? – Desabo no chão e encaro o sótão, está diferente, maior.

- Vai embora. – Ele responde arfando.

Apoio-me nos cotovelos, o chão está todo riscado, demoro a perceber que existem frases espalhadas, recuo um pouco me sentando, não são frases, são palavras soltas, indicações, lugares. Fico em pé e recuo mais um passo, as linhas formam locais, os nomes indicam as coisas, consigo entender o que aquilo quer dizer: é um mapa.

O nome do local está escrito grandiosamente no centro "Wonderland".

- O que é isso? – Sussurro.

- Eu não sei! – Cain abraça o próprio corpo. – Eu acordei aqui essa manhã estava tudo assim.

Quando eu acordei, ele não estava na cama, recuo mais um passo e olho as paredes, mais desenhos sobem pela parede, como se a pessoa quisesse mostrar cada detalhe, giro nos calcanhares e estanco.

Atrás de mim uma mulher está desenhada, os cabelos caem em cachos e posso até ver a cor vermelha em toda sua roupa, mesmo o desenho sendo uma linha preta, os seus olhos frios estão focados a sua frente, isso não sou eu... Recuo um passo e tropeço, sendo amparada por Cain.

- Ele anda controlando mais que meus sonhos. – Ele murmura mais para si mesmo, franzo as sobrancelhas.

- "Controlando"? – Repito me recompondo.

- Não é nada. – Ele dá de ombros. Suas pupilas se afinam, abaixo o olhar. – Desculpe.

- Você não consegue controlar? – Sussurro.

- Não. – Ele levanta as mãos e fecha os olhos. – Saí naturalmente, eu só sei que estou fazendo isso porque me olham com medo.

- Sua visão não muda? – Pergunto, ele nega e faz cara de medo. – Você ficou mais humano depois disso.

- Mais "humano"? – Ele ri desdenhoso.

- Age como gente a maior parte do tempo. – Sorrio. – Dá até pra dizer que tem sentimentos e expressão facial.

Cain revira os olhos, não mais os fendendo, apenas sendo ele mesmo, passo por ele e me abaixo encarando o mapa.

- Heartsplains... – Sussurro. – Blanchess, Queensland e Dimensão do Espelho... – Sussurro. – Tem ideia do que significam?

As linhas dividem tudo em três partes, "dimensão do espelho" está escrito em tudo, em cada pedaço, sobre os nomes maiores, afinal nunca se sabe onde a dimensão está logo não se pode colocá-la em um mapa de um modo "convencional".

- Se "Dimensão do Espelho" é um lugar acredito que essa é a divisão do País das Maravilhas. – Cain se abaixa ao meu lado. –Heartsplains está localizada no centro e é maior. – Ele bate seu dedo contra o desenho. – Deve ser a capital.

- Então as outras são vilarejos?

- Provavelmente. – Cain permanece com os olhos fixos no chão. – Ou reinos. Você disse que existem mais rainhas, não disse?

- Sim, Marcel disse que Yue era a Vermelha, você deduziu que existisse uma Branca, pelo xadrez.

- Exato. – Cain morde o lábio. – Não sei quem pode reinar no que...

- Podemos falar com Chess.

Sua expressão endurece e Cain se levanta abruptamente, encaro suas costas, ainda é estranho vê-lo de calças, garotos da idade dele não são considerados adultos, Cain suspira e deixa seus ombros relaxados.

- Eu não...

- A culpa foi minha. – Sussurro.

- Não é isso. – Cain diz alto. – Cheshire sabia desde o começo que Áster era um Ás, ele nunca disse nada a ninguém. – Cain cerra os punhos. – Aquele maldito escondeu tudo de nós, e eu...

Cain se cala, abaixo a cabeça e encaro o mapa, escuto-o respirar fundo para se acalmar, passo as mãos sobre o desenho e percebo que ele está arranhado no chão, não é pintado como eu imaginei, Cain volta a se abaixar ao meu lado, encaro suas mãos, algumas de suas unhas estão quebradas e em outros dedos nem se tem mais unhas, desvio o olhar.

- Eu vou dar meu jeito. – Ele me encara e sorri. – Acredite em mim.

- Não confio quando você sorri.

Aperto a boneca no colo e sorrio também, ele pode estar me escondendo muitas coisas, mas algo mudou depois que voltamos do labirinto, e estranhamente isso me deixa feliz.

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