Capítulo 32 - A clínica psiquiátrica
Frank ficou por algum tempo na mesma posição. Acordou daquele desmaio repentino sem energia para conseguir se levantar. Voltou a chorar e se culpar por tudo o que aconteceu. O oxigênio lhe faltava e sua visão aos poucos foi se recuperando, até conseguir enxergar um telefone sobre uma mesa de apoio, próxima a entrada da sala. Arrastou-se até o móvel, tentando, com muita força, se manter em pé.
Retirou o aparelho do gancho e, sem saber o que fazer, ligou para a polícia aos prantos, explicando que seu avô havia falecido sentado em sua poltrona preferida, e que estava gelado e com os membros rígidos, que não sabia para quem ligar e como proceder. O policial acionou uma viatura e disse que em poucos instantes estariam em sua residência. Pediu que se acalmasse, pois tudo iria se resolver.
— Me acalmar? Desculpe, oficial, mas o senhor entendeu o que eu acabei de falar? Meu avô, a pessoa que era tudo pra mim, acabou de falecer e você me pede para me acalmar? Que tudo irá se resolver! Quem você pensa que é pra me dar esses conselhos inúteis? — gritou o menino ao telefone.
— Calma, rapaz. O senhor está muito alterado. Logo chegaremos em sua residência.
— Que seja, agora não há mais nada a se fazer mesmo... — respondeu o menino, desligando o telefone em uma batida muito forte.
Frank virou-se novamente para onde Walter estava, com o braço na mesma posição que havia deixado, e seus olhos novamente se encheram de lágrimas. Criou coragem, pegou a carta responsável pela morte de seu querido avô e se colocou a ler em voz alta, para tentar acreditar que seria uma mentira de mal gosto, mas não achou evidências de fraude:
Estimado senhor Walter Payne,
É com muita tristeza que lhe escrevemos com o laudo pericial dos ossos, que concluímos, com 100% de certeza, terem pertencido ao seu filho Douglas Payne, devido à compatibilidade de DNA com o sangue fornecido pelo senhor, além de vestígios de cabelo do chapéu que nos enviou de seu filho desaparecido. Assim que fizermos a liberação da exumação, iremos agendar para o senhor retirar os restos mortais de seu ente querido para realizar a cerimônia com a dignidade que seu filho merecia, podendo, assim, enterrá-lo junto de sua esposa.
Novamente, pedimos desculpas pelo conteúdo desse documento e que o nosso Senhor tenha piedade e conceda muita luz ao Douglas no caminho ao Paraíso.
Novamente, o coração do garoto disparou imediatamente após ler a correspondência endereçada ao seu avô. Em um ato de fúria, triturou o documento em mil pedaços, o jogando no cesto do lixo da cozinha, que fedia com restos de comida podre. Ouviu uma sirene ao lado de fora de sua casa e uma batida seca na porta de entrada. O garoto enxugou suas lágrimas que ainda insistiam em cair, e tentou melhorar sua cara de raiva. Abriu a porta, permitindo a entrada de dois oficiais.
— Boa tarde, garoto. Meu nome é sargento Marques e esse é o soldado Torres. Foi o senhor que relatou o falecimento de seu avô ao telefone agora há pouco, correto?
— Sim, senhor.
— Como o senhor se chama?
— Franklin Payne.
— E o nome do falecido?
— Walter Payne, senhor.
— Onde encontra-se o corpo?
— Naquela poltrona ali. Ele morreu enquanto lia suas correspondências.
— Seu avô tinha algum problema de saúde que você soubesse?
— Não, senhor. Nunca vi meu avô doente, por incrível que pareça, ele tinha uma saúde de ferro.
— Precisamos verificar o corpo, se é que nos permite.
— Claro que sim, fiquem à vontade.
— Uma ambulância está chegando com peritos para examiná-lo.
— Examiná-lo? O senhor acha que ele ainda tem chances de sobreviver? — perguntou Frank com uma ponta de euforia.
— Desculpe rapaz, mas pelo que estou vendo, acredito firmemente que ele teve uma parada cardíaca. Mas vamos precisar aguardar os especialistas. Enquanto isso, gostaria de fazer mais algumas perguntas.
— Perguntas? Sim, claro. — disse Frank, meio sem entender.
— Seu avô cuidava sozinho de você ou tinha mais alguém além de vocês dois?
— Não, senhor. Somente nós dois. Meu pai está, aliás, estava desaparecido, mas soubemos que ele morreu já faz cinco anos e então só sobraram nós dois. Um cuidando do outro.
— E sua mãe, vive onde?
— Minha mãe faleceu há algum tempo, antes do desaparecimento de meu pai.
— Meus pêsames — disse o sargento Marques.
— Sem problemas. Já estou começando a ficar acostumado com tantas mortes ao meu redor.
— E você age tão naturalmente assim, por quê?
— É que a vida resolveu, de uma hora para outra, me pregar peças. Até ontem estava em uma aventura através de uma caverna no fundo do oceano, cheia de monstros, tentando resgatar meu pai e ao mesmo tempo sobreviver às investidas das criaturas e de um mago impiedoso, e agora estou aqui, enfrentando as mortes de meus pais, meu avô e, pra ferrar com tudo, minha namorada está saindo com outro cara.
— Entendo. Você pode nos dar um minuto, por favor?
— Claro, senhor policial.
O sargento Marques e o soldado Torres caminharam um pouco de modo que o que tinham pra falar não fosse ouvido pelo garoto.
— Soldado, parece que temos um problema sério aqui.
— Sim, senhor. O menino é perturbado, senhor.
— Tudo me indica que ele tenha alguns problemas psicológicos. Precisamos confirmar se houve algum problema entre ele e seu avô Walter, e se tem alguma relação com a morte do idoso. Além disso, precisamos ficar de olho nele, pois, pelo que percebi, ele tem um perfil suicida ou mesmo a relação passional entre ele a garota que diz ser sua namorada pode acabar em um crime. Você viu quando ele mencionou que ela estava "saindo com outro cara"?
— Sim, me pareceu muito suspeito.
— Bom, aguardaremos a perícia e então verificamos a necessidade de tomar o depoimento do rapaz.
Os oficiais voltaram para próximo de Frank com o cuidado para que não percebesse suas intenções. Ouviram o bater na porta e por lá entraram dois médicos paramentados com uma maca e alguns instrumentos hospitalares.
Os peritos avaliaram a situação do idoso e concluíram que Walter sofreu de mal súbito, seguido de uma parada cardíaca.
— O que pode ter causado a morte do pobre homem? — questionou o sargento.
— Foi causado por uma arritmia cardíaca. Excesso de estresse, discussões acaloradas e tristezas profundas podem ter contribuído para acelerar as frequências cardíacas do sujeito, que, pelo que me parece, sofria do coração. Encontramos vários remédios em seu quarto e muitos exames cardíacos.
— Certo, doutor. Muito obrigado pelo diagnóstico — agradeceu o oficial.
— Às ordens, Sargento — respondeu o perito médico, entregando o atestado de óbito para o policial.
Marques, ao se aproximar de Frank, que estava na cozinha se refrescando daquele calor insuportável com um copo de água gelada, explicou ao rapaz a conclusão do médico legista.
— Agora precisamos que nos acompanhe para realizarmos todos os procedimentos de velório e enterro de seu avô.
— Claro, senhor. Muito obrigado por todo o suporte. Serei eternamente grato.
O enterro foi agendado para o dia seguinte, onde muitos amigos de seu avô foram prestar a última homenagem ao grande homem que ele foi. Algumas poucas pessoas foram até o garoto prestar suas condolências, mas, na grande parte do tempo, o rapaz ficou sozinho, enquanto seu avô era o protagonista daquele fúnebre ritual de passagem.
O enterro estava chegando ao fim, sobrando apenas Frank e os policiais que o ajudaram e faziam a escolta dele, pois ainda não tinham terminado o inquérito. O garoto virou-se para trás, buscando os olhares de compaixão e o ombro caridoso de sua amiga Barbara, que ainda não havia deixado o local, mas esta viera acompanhada de uma outra pessoa, que trajava um paletó escuro, com uma camisa branca e uma gravata preta. Percebeu que se tratava de seu novo vizinho e sua efêmera paquera, pelo menos era o que esperava. Chegou perto de Barbara para trocar algumas palavras, quando se deu conta dos cabelos loiros de seu rival. Seu sangue esquentou no exato momento em que encarou seus olhos verdes e seu nariz arrebitado.
— Frank, não é? Meus sentimentos por toda a sua perda — disse o menino, estendendo sua mão em um gesto de compaixão.
— Meus sentimentos? Como você se atreve a vir até aqui, com a minha garota e ainda tirar um sarro da minha cara desse jeito? — repudiou Frank, disparando um soco que acertou o rapaz à sua frente, fazendo seu nariz sangrar imediatamente. — Você sabe muito bem que a culpa disso tudo é sua, Mark Wolf, filhinho do contra-almirante que tudo pode.
— Do que você está falando? Meu nome é Isaac, e sou filho do relojoeiro, todos sabem disso — respondeu o garoto, tentando conter o sangramento com seu lenço branco e sendo amparado por Barbara.
Os policiais, vendo a cena, correram para apartar a briga que se estabelecia e afastaram Frank dos outros para não causar mais problemas físicos a eles. Já tinham visto o bastante e essa era a prova de que precisavam para encaminhar o garoto à delegacia, onde mais tarde depuseram os fatos de que presenciaram para o juiz, que sentenciou o garoto a um tratamento em uma clínica psiquiátrica.
— Mas eu sou inocente! — gritava o garoto.
— Você disse em depoimento que seu avô tinha uma saúde de ferro, porém nossos legistas encontraram remédios para tratamento do coração, além de dezenas de exames cardíacos. Também fantasiou vidas passadas e amores que nunca existiram colocando a vida de Barbara Bell e Isaac Austim em perigo eminente. Devido aos fatos, você foi diagnosticado como esquizofrenia, por laudo do nosso médico, e sentenciado à internação em hospital psiquiátrico o quanto antes.
Frank poderia jurar que viu um sorriso de deboche do menino enquanto diziam sua sentença, deixando o garoto ainda mais agitado e perturbado, pois sabia que se sua vida tinha virado de ponta cabeça. Era sim culpa de Mark, que, de alguma forma, persuadiu a todos. Ou não? Frank não sabia mais o que era realidade ou devaneio de sua pobre mente prejudicada por tantas porradas que a vida lhe dera em tão pouco tempo.
O garoto foi transferido imediatamente para a clínica de repouso e tratamento psiquiátrico da cidade vizinha, já que onde morava não possuía algo do tipo. Seus pertences foram trancados em um armário guarda-volumes com cadeado, para que o rapaz não tivesse acesso enquanto estivesse sob tratamento médico. Recebeu uma roupa que mais parecia um uniforme, de cores brancas e sem nenhum zíper, cordões ou outro acessório com que pudesse se ferir enquanto estivesse lá, algo muito comum naquele "pacífico" lugar.
Pediram para que vestisse um uniforme e lhes entregasse suas roupas para colocar junto de seus pertences no armário. A diretora da clínica que o recepcionou ordenou para que um dos internos se aproximasse e encarregou-o de apresentar as estruturas de seu novo lar ao garoto, até que estivesse curado de suas fortes emoções, que foram julgadas perigosas para a sociedade.
— Esse é seu mais novo amigo, seu nome é Richard. Ele o guiará através de sua maravilhosa estadia aqui conosco. Seja bem-vindo, senhor Franklin Payne — disse a diretora da clínica em um tom sarcástico. — Richard, o quarto dele será o número onze.
— Número onze, dona? Mas esse não é o quarto do El Toro?
— Sim, esse mesmo. Espero que eles se tornem grandes amigos, se ele sobreviver é claro — disse batendo a porta com força.
— Bo-bom, meu nome como você já sabe, é Richard. E, co-como ela já lhe disse, seja bem-vi-vindo! — disse o rapaz com uma gagueira típica de quem está nervoso.
— Muito obrigado — disse Frank sem jeito. — Ela é sempre mal-humorada assim?
— Só quando abre os olhos de manhã — disse o interno, tentando arrancar alguma gargalhada do rosto preocupado do menino, mas sem sucesso.
— E quem é esse tal de El Toro com quem vou dividir meu quarto?
— Se-se eu fosse você, tentava não ba-bater de frente com ele. É um dos mais antigos internos aqui, assim co-como eu.
— Você está nessa clínica desde quando?
— Hum, o tempo passa meio rápido aqui, já que não temos um calendário para acompanhar as datas, mas, pelos meus cálculos, são longos dezoito anos — disse o homem mais calmo.
— Dezoito? Como assim? Está internado há mais tempo do que eu tenho de vida.
— Pra você ver como são as coisas aqui dentro — respondeu o homem de meia idade, que aparentava ter por volta dos seus cinquenta anos, mas que Frank viera a descobrir que tinha quase trinta e cinco. — Quando cheguei aqui, ainda era jovem, assim como você, e cheio de expectativas com meu tratamento, até que com o tempo deixei de pensar em sair daqui e aprendi a viver com os demais.
— Por que você está em tratamento? O que aconteceu para te internarem aqui?
— Já faz tanto tempo que não me lembro ao certo, mas tinha algo a ver com uma herança de família. Ah, sim, me lembro que um tio muito antigo havia morrido e eu e meu irmão éramos os únicos herdeiros. Ele havia nos deixado uma grande quantidade de dinheiro, além de uma linda mansão e alguns investimentos. Mas não cheguei a ver nem a cor dessa grana, já que meu irmão apareceu com um laudo assinado por um dos médicos de nossa família alegando que eu tinha problemas psicológicos e não era capaz de administrar sozinho essa herança, entrando com um pedido de internação, concedido pelo juiz que me sentenciou na época a um tratamento psiquiátrico. Desde então estou aqui, vendo pessoas entrarem malucas e saírem daqui insanas ou em um caixão.
— Que história triste!
— Nem me fale. Em relação à sua pergunta sobre o El Toro, ele é um dos internos em recuperação desde que entrou aqui. Sua agressividade excessiva o faz com que saia poucas vezes para ver a luz do Sol, estando na maior parte do tempo dentro do quarto, amarrado em sua cama com grossos cintos de couro ou então em sua camisa de força preferida.
— E é com esse maluco que a diretora quer que eu divida a cela?
— O quarto, você quer dizer? Se bem que parece mais uma cela mesmo — riu Richard com uma risada que deixaria qualquer pessoa sã com medo de se aproximar.
Frank olhou angustiado para seu novo companheiro, que parecia amigável e inofensivo à primeira vista, mas perturbado demais para uma pessoa normal, pelo tanto que devia ter sofrido durante esses longos anos. Precisava pensar em algo para fugir daquele lugar, já que não tinha a quem recorrer e a última pessoa que imaginava virar às costas para ele estava namorando seu principal inimigo.
— Preciso parar de pensar nessas coisas. Se continuar misturando fantasia com realidade, jamais irão me mandar de volta para casa — pensou alto.
— Não se preocupe, meu amigo. Aqui foram poucas as pessoas que conseguiram retornar, principalmente aquelas que não tem familiares — respondeu Richard, rindo novamente com suas gargalhadas amedrontadoras.
Algumas horas se passaram, o desajustado guia do garoto o levou para conhecer todos os cantos daquele lugar e apresentá-lo para quase todos os pacientes e funcionários.
— Está ouvindo essa campainha? É hora do jantar, e eu gosto muito de jantar! Você e eu precisamos correr, senão não iremos pegar a melhor parte do frango.
— Hum, vamos que estou precisando comer uma bela coxa de frango.
— Eca! — disse Richard, quase passando mal só de pensar. — A melhor parte do frango são os pés e a cabeça. Nunca te ensinaram isso?
— Me desculpe, meu amigo. Façamos assim, eu fico com as partes ruins e te dou as partes que você mais gosta da ave.
— Combinadíssimo! — riu Richard, agradecendo a generosidade de seu novo colega.
Chegaram o mais rápido que puderam, se postando à fila que havia acabado de se iniciar. Richard pegou dois pratos entregando um para Frank e lhe cedeu o lugar à frente, para que este se servisse primeiro.
— O que é isso, senhora?
— Ensopado de frango, não está vendo, moleque?
— Sim, mas onde está o frango?
— Ficou com nojo dessa gororoba e saiu correndo — gargalhou a mulher, que servia os pobres pacientes interditados. — Agora não me amole e agradeça por ter esse maravilhoso jantar para comer. Tem dias que o frango cospe no prato antes de sair correndo, se é que você me entende!
Frank saiu bufando com seu prato na mão enquanto enchia um copo de plástico de água quente, que parecia chá e não refresco de laranja.
— Como ela te falou, agradeça por ter o que comer, meu rapaz. Às vezes passam dias sem que a campainha toque anunciando o jantar. É triste, mas é a realidade aqui.
O menino quis entender Richard e a importância daquilo tudo para eles, mas não conseguiu nem tocar em sua comida, entregando para seu novo colega que raspou até a última gota daquele creme verde amarelado. Era tudo muito recente e sua vida acabara de ser arrancada abruptamente. Ainda não tinha parado para pensar onde estava se metendo quando chegou ao tenebroso quarto onze. A porta estava fechada como de costume e seu principal hóspede encontrava-se deitado com suas amarras marrons, atravessando seu corpo na transversal.
O menino tentou não acordar o temível El Toro, andando nas pontas de seus pés, sentando-se levemente sobre sua cama, onde havia apenas um travesseiro por cima de um colchão sujo e descosturado. Aliás, Frank sentiu um forte cheiro de urina vindo das espumas e se perguntou quando foi a última vez que colocaram aquele colchão para tomar um Sol ou desinfetaram com algum produto químico, chegando à rápida conclusão de que nada daquele ambiente sentira ao menos uma vez o calor do Sol. Lembrou das palavras de Richard, dizendo que El Toro quase nunca saía de seu quarto, impregnado pelo cheiro acre de suor e excrementos fisiológicos.
Tentou pegar no sono como pôde, mas não conseguia, imaginava que a qualquer momento seu companheiro de quarto o pegaria desprevenido e tentaria alguma maldade. Foi uma das noites mais compridas de sua vida.
O dia amanheceu e Frank, que não pregara os olhos nenhuma vez, estava com uma dor de cabeça insuportável. Olhou para o lado e percebeu El Toro na mesma posição em que esteve toda a noite. Parecia que não estava respirando, mas não quis pagar para conferir. Calçou seu chinelo e saiu o quanto antes da habitação.
Encontrou Richard conversando com algumas pessoas que, assim como ele, deveriam estar internadas há um bom tempo. Eram pessoas de mais idade, ou aparentavam ter.
— Ei, garoto! — gritou o antigo paciente. — Venha se juntar a nós. Estamos jogando baralho.
— Mas cadê as cartas?
— Não tem nenhuma carta.
— Mas como estão jogando baralho sem cartas? — questionou o amigo.
— Ué, cada um imagina o que tem nas mãos e fazem pares. Ganha quem tiver a maior quantidade de pares. De onde você vem não jogam baralho?
— Sim, mas com cartas. Ah, deixa pra lá! Continuem jogando.
— E me diga, conseguiu dormir com o El Toro bufando em sua orelha?
— Pois nem me fale. Não consegui fechar os dois olhos ao mesmo tempo. Fechava primeiro um, depois o outro e minha noite foi dessa maneira.
— Fica tranquilo, rapaz. Ele toma medicação pesada e nunca acorda de madrugada.
— Agora que você me fala isso? Por que não me alertou ontem? Fiquei como um louco sem dormir por medo.
— Ora, você não me perguntou nada, como eu iria saber? — respondeu Richard, rindo orgulhoso da combinação de baralhos que havia feito.
O dia passou lentamente para o rapaz. Infelizmente, logo em seu segundo dia, pôde comprovar a teoria de Richard que disse haver dias em que a campainha não tocava, indo para a cama sem seu jantar se sentindo fraco e com muita fome. Ao menos, sabia que seu companheiro de quarto não iria lhe incomodar e aproveitaria a noite para colocar em dia seus pensamentos e o sono merecido.
Deitou-se com cuidado, para não fazer muito barulho, e com a cabeça sobre seu travesseiro, fechou seus olhos. O cheiro de urina ainda continuava muito forte, mas resolveu que teria que acostumar-se. Imaginou um dia saindo daquele lugar cheio de doidos e voltar ao seu lar, ver o mar, sua casa e lembrou-se de seu avô. Sim, Walter já não estava mais lá. A vida não seria a mesma coisa sem seu companheiro, seu avô querido e caridoso. Aliás, também não tinha mais ao seu lado sua grande amiga Barbara. Desde que lhe contou seu sonho, parecia ter despertado na garota um sentimento de repulsa, ainda mais depois de ter acertado um soco em seu namoradinho.
O garoto já sentia seu corpo começar a relaxar como quando se está entrando no primeiro sonho quando seus pelos da nuca se arrepiaram. Uma lufada de vento percorreu entre seu pescoço e sua bochecha direita, quando então ouviu uma voz baixa e grave ao pé de seu ouvido:
— Como ousa entrar em meu quarto e ainda por cima dormir em minha cama?
Frank abriu seus olhos, espantado, e viu um rosto completamente enfurecido a poucos centímetros de distância. Jogou-se para o outro lado, tentando fugir do alcance de El Toro.
— O-olá. Meu nome é Frank e parece que sou seu novo colega de quarto. — respondeu o garoto sem firmeza em suas palavras.
— Colega de quarto? Eu não tenho companhia. Sabe o que fiz com o último colega de quarto?
Frank tentou não ouvir o que aquele homem tinha para falar, mas a curiosidade se fez maior, se arrependendo na sequência.
— Quebrei todos os ossos dele, pois se recusou a me limpar após usar o banheiro. Desde então, não tive outros companheiros, mas já que você está todo solícito em sermos amigos, faço questão de lhes dar as boas-vindas.
— Er, obrigado? — respondeu o garoto sem saber o que dizer.
— Pois bem, está vendo aquele banheiro ali? — apontou El Toro para um espaço minúsculo ao lado direito de sua cama. — Pois bem, há dias que ninguém o limpa, então vá agora desobstruir aquele vaso porque vou usá-lo novamente em alguns minutos. Quero que tudo esteja limpo! — gritou o asqueroso homem, atirando um pano velho e imundo em seu rosto.
— Agora?
— E você está pensando o quê? Que está passando férias nos Alpes Suíços? Que vai usufruir dessa maravilhosa estadia de graça? E quero que esteja limpo agora, porque já estou sentindo um rebuliço aqui dentro depois dessa gororoba que comi da sobra de ontem.
Frank não tinha reparado que o prato de comida de El Toro, que estava cheio quando saiu pela manhã, se encontrava vazio. Desceu de sua cama, foi até o banheiro improvisado e viu a situação daquele vaso sanitário, se era que podia chamá-lo assim. Era um buraco no chão, onde se encontrava uma cadeira sem o assento, sendo sustentada por cordas de aço penduradas no teto. O chão estava totalmente imundo, já que todos os excrementos se espalhavam. Frank teve vontade de vomitar com a cena, passando mal no mesmo instante.
El Toro, encarando Frank com aquela cara de assassino torturador de crianças, se aproximou do rapaz, perguntando se já estava limpo porque precisava usar com urgência, mas viu o garoto se segurando para não passar mal. O brutamontes o empurrou com tudo para o lado, arriou suas calças e mandou ver. Frank ficou horrorizado com a cena e com o fedor que vinha daquele ser humano nojento e asqueroso. Tentou, mas não evitou aquele embrulho no estômago, lavando assim a cama onde dormia o homem que se tornaria seu carrasco.
El Toro se levantou em um pulo, gritando com o rapaz, que a essa hora se sentia ainda pior. Com seu punho direito fechado, acertou a rosto de Frank que rodopiou e caiu naquele chão imundo. Por sorte não tinha caído sobre as fezes de El Toro e tentou, com as forças que ainda lhe restavam, se arrastar para o mais longe possível do assassino demoníaco.
— Não adianta se esconder, garoto. Agora você vai sentir a minha ira e entrar para as estatísticas.
— Me deixe em paz! — gritou Frank, tentando chutar de qualquer jeito para se livrar dos braços fortes do interno.
— Não tem como escapar, menino. Vai ser melhor assim. Logo estará sem oxigênio pra respirar e então se livrará dessa vida sem sentido. Quem mandou se meter com o temível El Toro?
Antes que Frank tentasse outra investida contra aquele monstruoso homem, recebeu um forte soco contra sua cabeça, tombando quase que imediatamente. El Toro, sem se dar por satisfeito, agarrou o pescoço do garoto, enforcando-o para que este não respirasse mais, acelerando sua morte.
Frank já não tinha mais seus sentidos, não conseguia ouvir, ver nem sentir mais nada. Parecia ter entrado em um estado de transe mental. Sua mente se encontrava em um vácuo, onde só se viam paredes brancas. Lembrou-se que vivera algo parecido poucos dias antes, na verdade, naquele pesadelo em que esteve preso durante o coma. Será que ainda estava no hospital e este era somente mais um pesadelo? Mas parecia tão real.
Então, quando tudo parecia perdido, Frank ouviu uma voz cantando uma música bem baixinha, como se alguém a estivesse sussurrando em seu ouvido. O volume aos poucos foi aumentando até a ponto de Frank reconhecer a melodia. Na verdade, ele tinha certeza que já a escutara algumas vezes, mas não se lembrava de onde. Em sua cabeça, aquilo não fazia sentido algum.
Não era uma música conhecida, nem um grande sucesso tocado nas rádios. Mas ainda assim lhe parecia familiar. Sim, familiar, mas não conseguia se lembrar, nem identificar de onde ou de quem era a voz. A música foi ficando cada vez mais próxima, e, junto dela, Frank reconheceu também um cheiro, agradável e ao mesmo tempo inebriante. Também lhe era muito familiar, mas não sabia de onde conhecia essa fragrância, se é que poderia chamá-la assim. E aquela voz? Tão doce e reconfortante. Seus medos pareciam ter fugido de sua cabeça, e nem a presença de El Toro, que continuava o enforcando, Frank sentia, estando apenas mergulhado e imerso em seus pensamentos. Então a misteriosa voz se pôs a chamá-lo:
— Frank, preciso que você preste atenção no que tenho para lhe dizer — falou a voz misteriosa calmamente. — "Amadores cairão rapidamente, enquanto determinados inquietos treinarão exaustivamente"
— Quem é você? O que quer de mim?
— Você não nasceu para ser amador! Eles precisam de você! Eu preciso de você. Levante e seja quem realmente nasceu para ser, o herói que esse planeta tanto precisa.
— "Amadores cairão rapidamente, enquanto determinados inquietos treinarão exaustivamente". Onde foi que eu vi isso mesmo? — repetiu para si mesmo, tentando sincronizar a frase com seus pensamentos.
Os batimentos cardíacos de Frank foram aumentando à medida que ele repetia a frase.
— Essa voz! Esse cheiro. Essa frase!
— "Amadores Cairão Rapidamente. Enquanto Determinados Inquietos Treinarão Exaustivamente" — repetiu novamente Frank em sua cabeça, tentando reorganizar as palavras e as letras iniciais. — A.C.R.E.D.I.T.E !
Então, seu coração levou um sobressalto, não podia imaginar que fosse essa pessoa de verdade.
— Na-não pode ser! É você mesmo, mamãe?!
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top