Um breve sonho
— Ei... Acorda logo... Ou a gente vai chegar atrasado de novo!
O pequeno menino de cabelos negros cacheados e com algumas mechas rebeldes, ainda sonolento, abriu um de seus olhos e mesmo com as vistas levemente embaçadas, pôde ver o sorriso da menina que o sacudia em sua cama, brilhando como o amanhecer de um novo dia.
A menina pequena, com cabelos também negros do tamanho de suas costas infantil e olhos acinzentados como o resquício de uma fogueira, observava a outra criança lutando para acordar.
— Bom... Dia... – o menino bocejou entre as duas palavras e com a sua mão direita ainda coberta com o lençol fino que usara como cobertor durante a noite, começou a esfregar o olho direito, tentando espantar o sono que ali reinava.
— Finalmente! Anda e se arruma rápido, porque a gente vai ter que correr um pouco hoje! – a menina não disse mais nada e se retirou do quarto, deixando o menino sozinho no pequeno quarto.
Motivado pela pressa da menina, o garoto pulou da cama para o chão, mas se arrependeu logo em seguida, já que o lençol enroscou em uma de suas pernas, fazendo com que escorregasse e caísse, batendo com a da testa no chão.
— Merda! – o menino logo cobriu a sua boca com as duas mãos, como se tivesse feito algo errado – Eu não disse nada! A tia da aula disse que é muito feio falar palavras sujas, então eu não falei nada!
Ele se levantou e, com um pouco de dificuldade, se soltou do lençol que o fez cair.
— Se não fosse por você, eu não teria dito nada errado! Quero dizer, ainda bem que eu não falei nada. – o menino conversou com o lençol enquanto dobrava-o e colocava-o por sobre o único colchão que tinha em sua cama.
— Eu queria um travesseiro mais confortável!
Ele remexeu o bolo de roupa que usava para apoiar a cabeça à noite e retirou um short preto, e uma camisa azul escura, que usava como uniforme de escola.
— Pelo menos o uniforme que nós ganhamos é de graça!
Ele se vestiu bem rápido, e como sempre, sentiu que a roupa estava um pouco pequena para seu corpo que começara a crescer sem sua devida autorização.
— Infelizmente, a gente não pode comprar os novos...
Quando terminou de se trocar, ele tacou o pijama velho que até pouco tempo estava em seu corpo na pilha de roupas na cabeceira da cama. Ele se abaixou para procurar algo embaixo da cama, e, ao não encontrar nada além de uns arous* que comiam um queijo velho que eles provavelmente haviam roubado, se levantou, encarando a parede cinza do seu lado do quarto.
(Arous/arouraíous = ratos)
— Será que os arous comeram minhas sandálias? – ele se abaixou novamente, mas quase dando um pulo, quando um arou chiou para ele – Bem... Tomara que eles tenham uma dor de barriga!
Ele rezou baixinho para que nenhum daqueles seres o atacassem e, mesmo sem sandália, se preparou para sair do quarto. Quando se virou, reparou que o outro lado do quarto, que pertencia àquela menina que o acordara, estava muito mais arrumado que o dele.
As paredes eram pintadas de um amarelo sujo, que outrora havia reluzido como uma moeda de ouro. A cama, que também era pequena, possuía um cobertor mais grosso que o seu lençol, e até um travesseiro de verdade enfeitava a cama. As roupas dela estavam todas dobradas e empilhadas na parte inferior da cama.
— Como sempre, ela é beeeeem mais organizada do que eu!
Ele não tinha muito tempo sobrando para invejar o ânimo que a garota tinha, então, após procurar suas sandálias no lado dela e não encontrar, decidiu por sair descalço do quarto.
Do lado de fora do pequeno quarto, a menina esperava ao lado da porta, batendo o pé impaciente no chão. A garota vestia o mesmo uniforme que ele, mudando apenas que ela usava uma calça no lugar de um short.
— Leny, acho que aqueles bichos finalmente comeram minhas sandálias!
— Sinceramente, o que seria de você sem mim?! – ela jogou um par de sandálias sujas para ele, e começou a andar pelo corredor, apressada.
— Aonde elas estavam? – ele as colocou em seu pé e correu até a garota que já estava alguns metros à sua frente.
— O zelador Mark trouxe elas de noite, mas como você já estava apagado, eu resolvi não te acordar!
—Obrigado, Leny!
— Você tem que agradecer a ele depois, porque se não fosse por isso, elas estariam boiando pelo porto de Típhia agora!
— Sério?
— Sim! Não sei como alguém consegue esquecer as sandálias na beira de um rio!
— Desculpa!
— Se você quer se desculpar, começa a andar mais rápido ou a gente vai ter que aturar mais um sermão da “Santa”!
Os dois começaram a correr, atravessando todos os corredores do orfanato até chegarem em frente a uma porta, que dava passagem para a sala em que recebiam a primeira aula do dia.
— Bem... Vamos? – o garoto estava prestes a abrir a porta, quando a menina o puxou para trás.
— Eu tenho mesmo que te lembrar de lavar o rosto todo dia? – ela molhou o dedo com a ponta da língua e limpou a “areia do sono” que restava no canto do olho dele.
— Para com isso! – ele tentou afastar a mão dela, mas, com um tapa no pé da orelha, ela o fez ficar quieto.
— E esse cabelo? Por que ele tá sempre bagunçado? – ela começou a passar a mão na cabeça dele, tentando ajeitar o cabelo dele, mas aquele amontoado de fios castanhos estava mais rebelde do que nunca.
— Você já terminou?
— Não, mas isso vai ter que servir por enquanto! – assim que ela finalmente largou o garoto, começou a abaixar alguns fios em seu próprio cabelo que se levantaram durante a corrida, que, apesar de possuir algumas imperfeições, estava sempre arrumado e enrolado em uma espécie de coque, que realçava seu cabelo castanho.
— Como você consegue manter o cabelo assim? – o menino nunca foi capaz de entender o porquê dela sempre perder tempo com aquele coque, que ele achava muito ridículo – Você sempre acorda mais cedo, só pra enrolar o cabelo.
— Primeiro, isso é um coque, e eu o faço porque eu não sou desleixada com a minha aparência! – ela o analisou com os olhos de cima a baixo, resmungando alguma coisa, a cada dobra em sua camisa ou short.
— As meninas são bonitas, mas não fazem esse “coque” idiota!
— Eu sou diferente delas em muitos quesitos e esse coque é uma forma de lembrar isso para todos!
— Eu gosto de não ser diferente! – o menino falou com um pequeno sorriso em seu rosto.
— Você é idiota!
— E você é estranha!
— Vocês dois irão entrar? Ou precisam de mais um tempo para resolverem seus assuntos “pessoais”? – a voz que falava por detrás da porta fechada tinha um tom sério, mas, mesmo que controlasse a entonação, não conseguia disfarçar a ironia e deboche nas palavras dela.
Foi a menina quem abriu a porta primeiro, e, ao ver aquela mulher a encarando junto das varias crianças que seguravam o riso, ela apenas fez um gesto de desculpas com as mãos, e se apressou para sentar-se em sua cadeira.
— Será que a sua educação não ficou esperando do lado de fora, junto de seu namoradinho? – alguns risos abafados acompanharam a fala, e a mulher, que ironicamente também ria, deu ordem para que todos se calassem.
— Me perdoe, Sandra, acho que eu ainda não acordei direito!
— Dessa vez, por eu estar de ótimo humor hoje deixarei passar, mas, já te aviso garota, que na próxima, sua mão vai ganhar a mesma coloração que as pimentas plantadas na horta.
Sandra, a professora/diretora do orfanato, possuía um físico de senhora mesmo que ainda não tivesse visto trinta primaveras, e, principalmente por esse motivo, odiava sentir que alguém zombava de sua pessoa, não importando se era um recém nascido ou um idoso à beira de seu túmulo já pronto.
As crianças que moravam no orfanato Star não gostavam dela e por isso sempre a provocavam, o que também resultada em uma mão inchada depois, já que o sistema de educação dela, se chamava “RENAMS”: régua na mão sempre. As poucas crianças que não a insultavam, ou apenas riam de suas de piadas ridículas, apenas o faziam para não terem a punição dela.
— E você garoto, vai se manter aí parado feito estátua? Entra logo!
— Ok! Me desculpe pelo atraso, Santa. – o menino, que acabara esquecendo uma das regras mais importante da sala, acabou chamando a mulher pelo apelido ao qual todos a conheciam, e percebendo seu imprudente erro, tampou logo a boca com um desespero visível em seus olhos.
— O que você disse, bastardinho? – a mulher se levantou da sua cadeira na frente da turma, batendo com a mão na mesa enquanto pegava sua bendita régua de madeira reforçada. Mesmo tendo uma baixa altura, ao se colocar diante da criança ela pareceu uma fera gigante e enraivecida. – O que eu falei tantas vezes sobre esse maldito nome? Você consegue se lembrar?
— Por favor... Eu juro que não o fiz na intenção de... – ele falava com dificuldade, já que até seus olhos tremiam de medo do que iria lhe acontecer.
— Você pode chorar à vontade, porque isso apenas vai aumentar o seu castigo. Você entende isso, não é mesmo? – a mulher nem mesmo piscava ao falar e enquanto encarava o menino, bateu a régua na palma de sua própria mão, deixando a entender o que aconteceria com ele.
— Por favor...
— Se apressa, ou a sua namoradinha ali também vai participar do castigo! Afinal não seria errado, já que dentre todas as pestes, ela não parou de rir nem por um segundo.
O menino nem precisou olhar para trás, porque de imediato ele soube que a menina havia se calado com a frase.
— ANDA LOGO! – a voz dela saiu alta e forte, quase como um grito.
Relutante, o menino esticou a sua mão direita, que logo foi agarrada pela mão áspera da mulher. Ele não teve nem mesmo alguns segundos para se preparar, já que os três golpes com a régua vieram no mesmo momento, e, se contorcendo com a dor, ele se segurou para não gritar ou chorar.
— Bom... Pelo menos você aprendeu a não chorar! Vai e senta logo!
O menino se virou e seguiu para a sua mesa, que ficava bem ao lado da garota.
— Isso foi sua culpa! – ele decidiu acusá-la enquanto esfregava sua mão avermelhada, que ardia mais do que ele gostaria.
— Por quê? Foi você que a chamou de Santa!
— Sim, mas... Mas foi você que me atrasou quando eu ia entrar na sala! – ele quase chorou enquanto falava.
— Oi?! – a menina ergueu as sobrancelhas – Foi você que, novamente, dormiu mais do que o sol te permitiu, e por isso nós dois nos atrasamos!
— Por que você não veio sem mim?
— Você já sabe bem que não é assim que funciona aqui no orfanato!
— Eu sei, mas...
— Não existe um “mas”! Você é o culpado disso tudo, entendeu, Diaz?
—...
— Diaz!
— Leny?
— Acorda, Diaz! Era pra você descansar por alguns segundos, e não apagar por meia hora! – o guarda ruivo estava com a mão esquerda no ombro de Diaz, sacudindo o levemente.
— Fenrir?! – Diaz estava perplexo e um pouco afetado, sem acreditar que aquilo tudo havia sido um sonho.
— Sim, sou eu! Com o que você estava sonhando? Parece até que se esqueceu do mundo real! – Fenrir riu, debochando do estado que Diaz estava ao acordar.
— Eu sonhei com a Leny!
— Você tá falando de sua irmã adotiva? – Fenrir se esforçou para lembrar do rosto da garota, mas, não obteve sucesso.
— Sim.
— Eu esqueci de te perguntar como ela está. – Fenrir segurou a mão do outro rapaz, dando uma ajuda para que ele se levantasse – Depois desse tempo todo, ela já deve ter se casado com algum rapaz bem elegante, estou certo?
— Ela morreu!
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