Último Cântico para os Deuses

  Uma garota, que não possuía mais as mesmas emoções que as outras pessoas, apenas conseguia admirar o céu noturno, sob o qual dormia quase todas as noites sonhando em poder voar por entre os grandes e brilhantes corpos celestes. A garota não sentia medo, tristeza ou raiva; ela só era capaz de se sentir alegre ao observar o céu... e também inveja... inveja da liberdade que os astros possuíam, já que ela não podia caminhar para além da floresta, longe dos limites do vilarejo. Tinha inveja do brilho da lua, que mesmo na noite mais escura continuava a brilhar intensamente no céu negro, diferente dela que, sempre que o frio surgia, se via obrigada a se aninhar dentro de alguma toca, de onde não conseguia ver o mar escuro que existia acima de todo o mundo. Sentia tanta inveja da lua, que sua pele morena se tornou tão clara quanto o leite, na tentativa de competir com a grande estrela. Pequena Luna foi o apelido que ganhara no dia em que sua pele se tornou completamente de outra cor, apesar de seu nome ser diferente.

  — Ó Selene, doce Selene, por que és tão bela? E por que não me enxergas? Será que Urano, aquele que rege o grande e magnífico oceano celeste não permite que me respondas? Ó Selene, doce Selene...

  O vento da noite trazia consigo os sons que a floresta emitia, tornando a noite mais barulhenta mas não menos bela. Em meios aos sons de animais e outros seres, haviam aqueles que ela já ignorava fazia-se alguns minutos mas que ainda assim se tornavam cada vez mais próximos.

  — Pequena Thanatos, por que me ignora? – o ser que se escondia em uma sombra atrás da garota a observava atentamente como se a qualquer momento ela fosse fazer algo importante.

  — Ó belíssima Nix, com suas asas negras e decoradas de brilhantes, me carrega e me leva para longe dessa vida! Ó grandiosa Nix, com sua força infinita, destrói toda luz que brilha ao contrário e preenche esse vazio com o seu breu...

  Seu longo vestido vermelho ferrugem que se assemelhava à uma tinta de sangue fresco, se movia em ondulações suaves na medida em que ela também se movimentava em cima da pedra cinza na qual estava sentada. Em seu pescoço, um colar de joias coloridas pendia de um lado para o outro, fazendo com que ela se arrepiasse toda vez que a superfície gelada tocava em sua pele exposta da metade do seio para cima.

  — Que colar magnífico, Thanatos, digno o suficiente para ser seu! – a voz continuava tentando obter a atenção da garota, que mantinha seu olhar virado para o céu, a ignorando continuamente.

  — Ó doce Afrodite, que seu perfume intoxicante não se perca nessas névoas espessas, e chegue até o último brilho! Ó Afrodite, que sua beleza que encanta até mesmo demônios, possa ser o fim dessa sórdida guerra...

  — Se você procura um fim definitivo para seus problemas, eu posso ajudar Thanatos!

  — Eu já te disse uma vez, meu nome não é Thanatos! – apesar de falar normalmente, a voz da garota seguia o fluxo do vento, dando a entender que ela ainda cantava para o nada, sempre mantendo seus olhos fixos no céu.

  — Mas também não é “Luna”. Não é mesmo? – a voz provocava a garota, como se quisesse provar a sua afirmação.

  — Os meus amigos têm o direito de me chamar assim!

  — Você tem mesmo amigos entre esses animais?!

  — Você já teve amigos, Caçador? – apesar de tentar ignorar aquela sombra, a garota acabou se lembrando da apresentação que a voz havia feito quando surgira atrás de si, então não pôde evitar de chamá-la por seu título.

  — Eu já tive diversos amigos, mas o principal deles sempre foi você, Thanatos! – apesar de não demonstrar totalmente, a voz do Caçador pareceu falhar por um décimo de segundo.

  — Me desculpe, mas eu não posso ser sua amiga! – o olhar dela parecia ainda mais distante, talvez por saber o que o destino havia reservado para ela.

  — Eu temia essa resposta, mas não há nada que eu possa fazer! – o Caçador soltou uma adaga no chão, adaga qual possuía um cabo de madeira negra manchada de vermelho sangue, e sua lâmina afiada reluzia em prata junto ao brilho da lua.

  — Você pretende me matar, Caçador? – por um instante o olhar da garota encarou a sombra sólida que a observava, mas por não conseguir enxergar nada além do breu, voltou a observar o céu.

  — Eu queria poder escolher, mas esse é nosso destino, Thanatos! A morte é o nosso único laço! – a última palavra foi pronunciada na mesma entonação que a garota falava, o que a fez sentir-se um pouco aliviada.

  — Você parece dizer a verdade! – ela suspirou enquanto fazia uma pausa, e logo voltou a falar – Então se apresse, Caçador, pois já me cansei de te ignorar!

  — Você consegue ouvir também, não consegue? – a voz se referia aos sons que vinham do centro do vilarejo, aonde uma luz forte iluminava o local.

  — Por que eu deveria me importar com eles? Nenhuma das pessoas que estão ali se importa verdadeiramente comigo.

  — Você tem certeza disso?

  — Quando fui marcada pela Morte, todos eles desistiram de mim!

  — Eu sempre estarei ao seu lado, Thanatos! – a sombra diminuiu de tamanho por alguns segundos, como se estivesse se curvando para a garota.

  — Nós dois sabemos que nessa vida, você não é a minha salvação, Caçador! – a voz que antes soava forte, agora parecia se lamentar a cada palavra dita.

  — Por que você é tão diferente do meu Thanatos, mas ao mesmo tempo, tão semelhante?

  — Talvez eu seja a verdadeira, e você conheceu a errada!

  — É possível, mas agora não tem mais volta, eu já dei o primeiro passo! – o Caçador, se aproximou da adaga no chão, ficando a um passo de alcançá-la.

  — Quantas vezes você já “me” matou, Caçador? – o olhar dela voltou a encarar a névoa sólida, dessa vez encontrando um par de olhos vermelhos sangue repletos de ódio e tristeza.

  — Já passaram mais de quinhentas primaveras desde que você morreu pela primeira vez!

  — Quantas ainda faltam?

  — Muitas!

  A garota suspirou fundo, e voltou a observar as estrelas. O cheiro de fogo se tornou mais intenso, e a chama que queimava as casas do vilarejo se tornou totalmente visível em uma dança de calor e cinzas. Os gritos já haviam cessado, o que deixava claro que todos também já haviam morrido.

  — Só sobrou você, Luna!

  — Pensei que você não me aceitasse com esse nome?!

  — Agora não existe mais sentido em continuar com isso. – a mão humana do Caçador saiu de dentro das sombras, pegando a adaga no chão e a entregando para a garota com o cabo virado para ela – Acho que você quer fazer isso com as próprias, certo?

  — Não me resta mais nada, então pelo menos esse momento tem de ser meu! – ela pegou a adaga e enquanto passava o indicador esquerdo pela lâmina afiada, se encantou com o brilho da prata.

  Com um movimento lento, ela segurou o cabo de madeira com as duas mãos, apontando a ponta da lâmina para o seu peito e pulou da pedra onde estava, caindo de bruços no chão, com a lâmina prata cravada em seu coração. Uma poça de sangue se formou no lugar onde o corpo dela havia caído, e o líquido pareceu se tornar uma extensão do longo vestido, e antes que seu último suspiro fosse dado, um último verso de sua canção, ecoou pelas chamas vivas que queimavam o vilarejo, e adentrou a floresta escura e sombria.

  — Ó impiedoso Hades, o seu anjo negro e belo me alcançou, então o que me acontecerá agora? Ó benevolente Hades, me permita mais uma vez enxergar a bela luz das estrelas, antes que eu retorne para ti! Ó assustador Hades, se meus olhos te enxergarem, então esse será mesmo meu fim? Ó Hades, é mesmo meu fim?...

  — Esse não é seu fim, Thanatos, mas este também chegará para nós dois!

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