Primeiro dia de muitos

  – Diaz... Diaz... ACORDA LOGO, SEU PREGUIÇOSO!! – Irritado pelo sono profundo do rapaz com quem dividia o quarto da estalagem e por causa de algumas tentativas fúteis de despertá-lo normalmente, Nick decidiu por acordar Diaz com um tapa no rosto, assim como sempre acabava fazendo todas as manhãs.

  – Mas que diabo... Por que você sempre me acorda assim, Nikolas? – Enquanto se sentava jogando os cobertores para o lado, ele massageou sua bochecha direita que agora estava um pouco vermelha.

  – Porque você sempre acaba dormindo demais! – Apesar de usar um tom de voz mais autoritário, Nick era denunciado por seus olhos castanhos que brilhavam como se aquilo tudo o divertisse.

  – Realmente precisa ser a porcaria de um tapa mesmo? Não tem um jeito melhor não?

  – Você gosta de banho frio? – Usando o polegar da mão direita, ele apontou para um copo de vidro transparente que estava em cima de uma das mesas do quarto, logo atrás dele.

  – A gente mora em frente ao mar então esse tipo de ameaça nem me assusta! – Apesar de se mostrar convicto da sua coragem, o que ele disse não passou de um simples blefe, já que se desculpou rapidamente quando Nick se virou para pegar a jarra de água que estava ao lado do copo.

  – E a sua mão esquerda? Ainda dói?

  – Queria poder dizer que está melhor, mas durante a noite acabou incomodando bastante! – Ignorando a sua bochecha que agora apenas ardia, ele abaixou a sua mão direita, e deslizou o dedo indicador levemente por cima das faixas de pano velho que cobriam um ferimento no lugar onde uma faca atravessara a palma da outra mão, algumas semanas antes.

  – Os remédios não estão ajudando? – Nick se mostrava bastante preocupado.

  – Um pouco, mas o efeito dura muito pouco tempo!

  – Eu realmente queria ajudar de alguma forma, mas nós estamos sem tempo e opções. – Com um certo nível de cuidado ele jogou para Diaz uma calça de couro desgastada que possuía alguns furos abaixo do joelho e uma camisa de pele simples e azulada com manchas vermelhas. – Se veste rápido e vamos logo para o cais, que ainda temos que ganhar o almoço!

  Nick já estava saindo do quarto, dando assim um pouco de privacidade para Diaz, quando este o chamou, interrompendo seu movimento.

  – Faz quanto tempo desde que saímos do orfanato, Nick?

  –  Acho que já estamos indo para a terceira primavera. – Ele respondeu sem se virar.

  – Nesse espaço de tempo a gente passou por algumas coisas complicadas, não é mesmo? – Um sorriso decorou seu rosto bronzeado.

  – Em certas épocas não tínhamos nem mesmo o que comer...

  – No começo não tínhamos nem uma moeda de prata para comprar qualquer remédio quando estávamos doentes...

  – Mas a gente continuou cuidando um do outro como irmãos de mães diferentes...

  – Como uma verdadeira família!

  – Diaz... Obrigado por me aturar esse tempo todo, e se um dia eu te magoar, por favor, me perdoe do fundo do seu coração! – Mesmo estando de costas, ele sabia que o outro também sorria e fez de tudo para disfarçar as pequenas lágrimas que surgiam.

  – Nós ainda vamos nos aturar por muito tempo!

  – Que os Deuses ouçam as suas preces e continuem sendo piedosos conosco! – Ele encostou as palmas das mãos uma na outra em frente ao rosto, como se fizesse uma reza, sabendo que Diaz o acompanharia, e após alguns segundos ele enxugou a última lágrima do rosto. – Agora se apressa aí, ou eu vou acabar chorando de verdade!

  Assim que a porta foi fechada completamente, Diaz se levantou da cama em um pequeno pulo, ficando em pé com a camisa em umas das mãos. No quarto que ele dividia com Nikolas todos os dias, haviam duas camas simples com cobertores de couro escuro, e aos pés de cada, um criado mudo de madeira vermelha servia de apoio para um pedaço de espelho e uma bacia de barro, que eles enchiam de água e usavam para a higiene do rosto e boca pelas manhãs.

  Diante do espelho de sua cama, Diaz jogou água fria em seu rosto para afugentar o sono que ainda restava em seus olhos acinzentados. “Faz quantos dias que eu não faço a barba?”, ele pensou enquanto olhava a pequena lâmina prata que servia de navalha, mas decidiu deixá-la para outro momento, já que o tom de sua pele ainda disfarçava a barba levemente crescida.

  Por sempre dormir sem camisa, ele podia ver os hematomas e cicatrizes que possuía no abdômen e peito, resultados de brigas e alguns acidentes no porto. A camisa escondia facilmente esses aspectos de seu corpo, evitando certas perguntas irritantes no dia a dia. Por mais que estivesse bastante em forma, Diaz sentia que a camisa ficava apertada em seus ombros e sempre reclamava sobre isso para Nick, que apenas dizia para levá-la nas módes* que atendiam mais ao centro de Típhia, mas ele nunca chegava a ir até lá, principalmente por preguiça.

(Em Típhia, módes são pessoas especializadas em costura e artesanato.)

  O reflexo do espelho também mostrava os cachos negros e bagunçados dele que iam até o pé da orelha e que sempre se embolavam durante a noite, o que era irritante de arrumar no outro dia, principalmente com o pente de madeira quase sem dentes. “ Será que deixo assim hoje?”, ele quase manteve o penteado bagunçado, mas ao passar os dentes por entre os fios e ter dificuldade para tirá-los, decidiu os pentear, o que acabou fazendo com muito esforço.

  Ao vestir a calça, teve a mesma sensação que tinha todas as manhãs de que alguém vestiu um choi* com elas, já que o couro possuía uma folga enorme entre suas pernas. Por fim, ele amarrou um par de sandálias desgastadas de tanto serem usadas e saiu pela porta, encontrando Nick sentado em uma cadeira de ferro, o esperando.

(Choi = porco)

  – Kaire, Diaz! – Ao mexer a cabeça para observar Diaz, os cabelos castanhos que agora estavam amarrados em um pequeno coque balançavam acompanhando o leve movimento.

  Se Diaz era um rapaz de pele parda escurecida pelo Sol constante do porto, Nick já parecia não ter saído de casa durante algumas estações, já que mesmo sendo pardo, ele era consideravelmente mais claro que o outro rapaz.

(Kaire: cumprimento usado normalmente entre pessoas próximas, ou que possuam respeito uma pela outra.)

  – Kaire, Nick. Parece que o dia vai ser mais produtivo hoje. –  No cômodo que servia como cozinha e sala haviam algumas pequenas janelas, de onde era possível observar as ondas do oceano que batiam contra alguns pequenos barcos, como se estivessem em uma longa e lenta dança.

  – Você diz isso exatamente por quê?

  – O sol! – No horizonte azul, marcando o limite do que podia ser visto nas águas e no céu, o brilho da majestosa estrela podia ser visto atrás de algumas nuvens, marcando o início de uma manhã calorosa.

  – Você sempre foi um louco apaixonado pelo sol, não é? – Nick acabara  de esvaziar um copo de chá doce e enquanto se levantava matou o último pedaço de pzari* que havia sido preparado na gordura. – Espero que ele também tenha se apaixonado por você depois de tantas manhã! De qualquer forma, já está na hora, vamos!

(Pzari = peixe)

  – Vamos! – Enquanto se despedia da vista de sua janela, Diaz jogou um pedaço de pão dentro da boca e saiu junto de Nick, em direção ao porto Sunny.

  No território mais ao sul do grande reino de Drum, uma enorme floresta cercava todo o litoral banhado pelo mar Warm e a partir de uma pequena clareira em meio as árvores, a cidade litorânea chamada de Típhia, foi fundada após décadas de aventuras que resultavam, na maior parte delas, em mortes violentas.

  Em Típhia, três grandes portos regem a maior parte da economia local: Sunny, Moon e Eclipse. O primeiro e também o maior, Sunny, localiza-se no extremo sul da cidade, aonde várias mercadorias de valores exorbitantes são descarregadas diariamente; Moon, o segundo maior, localizado mais ao oeste da cidade, possuindo uma estrutura mais elegante, recebe pessoas de títulos importantes toda semana, indo de reis até burgueses ricos; e Eclipse, o menor mas não menos importante, possui uma infraestrutura capaz de suportar cinco dezenas de barcos de pesca, e por se localizar ao leste, aonde as águas são mais profundas, é o principal fornecedor de recursos marinhos.

  Nos grandes cais de Sunny que se estendiam por mais de quilômetros de distância, várias barracas eram montadas todos os dias que serviam de tudo um pouco, indo de pequenos bares até mercadinhos baratos. Nick e Dias trabalhavam como thyos* em uma barraca que conseguiram no inverno anterior, três estações atrás, e suas principais vendas eram de cabeças de lykopzari* pescados no porto Eclipse.

(Thyos = peixeiros/açougueiros) e (Lykopzari = bagre)

  – Kaire, Brena! O mesmo de sempre? – Sorrindo, Nick atendia uma garota de cabelos negros e longos e de pele clara com um olhar tão azul quanto o céu da manhã, que sorria ingenuamente, deixando claro que mal havia contado oito estrelas.

  – Sim, Tio Niko! – Ela segurava uma bolsinha de couro em uma das mãos, que ao balançar fazia tinir algumas moedas de bronze, que mal pagavam um pzari inteiro – Você comprou uma roupa nova, Tio Niko?

  – Não, não, jovem senhorita, é a mesma de sempre, eu apenas a lavei melhor dessa vez! – Nick usava a mesma roupa de Diaz mas só que um pouco mais nova, e apesar de não ser muito engraçada, sua piada arrancou um sorriso torto da boca da criança – E você Brena, cortou o cabelo?

  – A mamãe cortou ontem na luz da lua cheia, você gostou? – Após colocar a bolsa na bancada de madeira, ela afastou as mechas da franja que tapavam seus olhos, mostrando a tinta que havia por cima deles – E a Tia Yuu coloriu meus olhos! Ela disse que eu fiquei igual a uma flor!

  – Ficou muito lindo, parece até uma princesa arco íris! – A menina sorriu com mais vontade ao ouvir os elogios de Nick – Pronto, esse daqui é o seu, três pzaris frescos!

  – Obrigado, Tio Niko! – Ela pegou a sacola com os pzaris da mão de Nick, e saiu correndo na direção de uma mulher que possuía a pele um pouco mais escura que a da garota, e um cabelo castanho amarrado em forma de coque – Tia Yuu, o Tio Niko disse que eu estou parecendo um arco íris!

  Enquanto as duas iam embora, conversando e rindo, Diaz observava Nick conversando amigavelmente com as pessoas que andavam pelo cais de madeira, muitas das quais apenas olhavam a barraca, mas não compravam nada.

  – Você faz isso pra ela desde quando? – Nick havia acabado de vender um pote de algas secas, e acabou sendo surpreendido pela pergunta de Diaz.

  – O que exatamente?

  – Tô falando sobre  a garota arco íris, a Brena!

  – Ah, entendi! – Ele sorriu, lembrando da conversa com a garota – Sim, sempre que ela vem aqui. A bolsinha dela não possui nada além de cinco moedas de bronze, que mal pagam uma alga seca!

  – Então, por que você dá a ela três pzaris? Não me diga que você virou padrasto e... – Diaz olhava de forma desconfiada, e felizmente, Nick não o deixou terminar a frase.

  – Não é nada tão ridículo, Diaz! A mãe dela está doente tem algum tempo, e o seu pai mal ganha cinco moedas de prata por dia, então pra ajudar eu digo que as cinco moedinhas da bolsa dela valem muito!

  – Mas a gente consegue menos que o pai dela!

  – Fica tranquilo! Apesar de eu ter feito isso sem avisar ninguém, o pai dela acabou descobrindo e com medo de ficar com alguma dívida para comigo, ele me paga o restante no final de semana sem que a filha saiba.

  – Mas e aquela mulher que tava cuidando da Brena?

  – Não vou mentir que eu não conheço de lugar algum! – Nick tentava se esforçar para lembrar do rosto da mulher, mas apenas a voz da criança dizendo Tia Yuu passava pela sua cabeça – Mas, pelo que eu sei, a família dela recebe ajuda de outras pessoas, então aquela mulher deve ser uma dessas.

  – Faz sentido! – Terminando a sua frase, o som da enorme e afiada faca batendo sobre a tábua de madeira decepando mais um pzari, assustou alguns peris*, que comiam migalhas entre as madeiras do cais.

(Peris = pombos)

  Por entre a multidão de pessoas que circulava em Sunny, alguns se destacavam entre marinheiros e turistas na grande passarela de carvalho marrom. Com suas camisas de mangas longas e negras detalhadas com finas linhas brancas atravessando de um lado a outro no tecido, vários guardas chamavam atenção para si mesmos, com suas lanças e revólveres ameaçadores. Os guardas de Típhia eram considerados os mais capacitados em todo o reino, e por isso, respeitados dentro e fora da cidade por qualquer um que seguisse a lei do papel. Dentre esses guardas, alguns conquistaram feitos dignos de nobres honrarias ou alcançaram um nível de força fora do comum, tendo assim recebido o título de asters acompanhado de um uniforme branco com adornos em formatos de curvas prateadas, feitos para lembrar o brilho de uma estrela. Não se sabe ao certo se foi uma piada no passado ou algum acontecimento que originou o título mas, ao ser nomeado como aster, a pessoa passa a ser chamada pelo nome de umas das infinitas estrelas que enfeitam o céu noturno e a imensidão do universo.

  – Deve ser legal, não é Diaz? – O olhar de Nick seguia um guarda, que possuía o colarinho da camisa dourado, mostrando que ele possuía uma patente mais alta.

  – O que exatamente? – Sem se importar muito com o assunto da conversa, Diaz continuou preparando um molho picante, que era vendido pelo dobro do preço que os pzaris.

  – Usar essas roupas! Ouvi falar que elas se adaptam a temperatura do ambiente!

  – As roupas dos guardas? Duvido.

  – De qualquer forma, todos eles são incríveis!

  – Como assim? – Ele encarou Nick, que agora sorria para as pessoas que passavam em frente a tenda.

  – Graças a essas pessoas, as que portam armas e lutam nossas guerras, nós podemos viver livres! – Nick sonhava em ser um guarda desde que ambos eram crianças, e ele sempre dizia que iria fazer de tudo que estivesse ao seu alcance para se tornar um.

  - Existe vantagem em ser “livre” e morrer de fome? – a lâmina em sua mão, agora descia com mais força sobre a tábua.

  — Já tem muito tempo que nós não passamos fome!

  — Mas e eles? – com a ponta da faca, Diaz apontou para um grupo de pessoas que dormiam sobre caixotes sujos, vestindo farrapos velhos. – Enquanto aqueles que possuem ouro no pescoço jogam o “lixo” fora, nós que vestimos couro, usamos esse “lixo” todo dia!

  — Você tem uma ideia muito generalizada das coisas! Nem tudo é assim, Diaz! – o sorriso que estava em seu rosto sumiu conforme sua voz se tornava mais séria. – Existem sim, pessoas que desfrutam de um luxo desnecessário, é verdade, mas também existem os que passaram anos de suas vidas acumulando ouro pra descansar por um tempo, então, me diga Diaz, você acha que essas pessoas nunca estiveram em nosso lugar?!

  Diaz não disse nenhuma palavra; talvez não tivesse ideia de como prosseguir, mas o silêncio que surgiu entre eles se tornou muito desconfortável.

  Por mais que ambos estivessem calados, o mundo não fazia o mesmo, tanto que o som de vidro sendo quebrado chamou a atenção deles para a barraca ao lado, aonde um homem baixo e gordo com uma calvície perceptível no topo de sua cabeça espancava um garoto de pela clara e olhos negros iguais aos seus cabelos, que não parecia ter contado nem dezoito estrelas após seu nascimento.

  — Seu merdinha imundo! Eu disse que se eu te visse novamente, nem os deuses te livrariam!

  — O que tá acontecendo? – Diaz já havia dado dois passos na direção da confusão com a intenção de evitar uma possível morte, mas Nick o deteve segurando a gola de sua camisa.

  — O de sempre, Diaz! – apesar de parecer sério, sua voz soava um pouco triste – Só mais algum garoto que está com fome.

  — Mas...

  — Você sabe o que vai acontecer se a gente se envolver, certo? Para o bem ou para o mal, se nossos nomes forem ditos, a gente perde a tenda.

  — Eu já entendi. – ele se virou, se esforçando para ignorar aquela situação, e voltou a cortar alguns pzaris, batendo sua lâmina com mais força toda vez que ouvia a voz daquele homem que era o centro daquela bagunça.

  Mesmo que ninguém movesse um dedo para ajudar, uma pequena multidão se formou ao redor da confusão. O garoto que estava quase desmaiando devido aos golpes que levou na cabeça, já nem se esforçava para se defender e em meio ao sangue que se espalhava em seu rosto, lágrimas pareciam brotar de seus olhos inchados.

  Felizmente, a confusão começou a se acalmar e o homem se levantou de cima do garoto, quando o som de uma explosão vinda de um revólver assustou a todos na pequena multidão, que voltaram a atenção para um aster de pele clara e olhos azuis com um cabelo preto penteado para trás, que tinha acabado de chegar no cais, acompanhado de dois guardas armados com lanças afiadas de quase dois metros de altura.

  — Bom, agora que tenho a atenção de todos vocês, eu só tenho uma pergunta: o que está acontecendo aqui? – o aster aumentou um pouco a sua voz para que todos pudessem ouvir, e o som de suas palavras parecia cortar o ar poluído do local.

  A multidão que antes se aglomerava no local, começou a se dissipar sem que ninguém ousasse responder o aster.

  — Vejamos, acho que vou ter que ser mais direto. – em sua mão direita, um pequeno revólver prata marcado com o símbolo de Típhia na extremidade do cano (uma esfera negra com algumas sombras brilhantes em volta) foi erguido para cima e ao fim de sua frase, disparou duas vezes, provocando um barulho ensurdecedor – Eu quero saber que merda aconteceu aqui sem a minha permissão! – a voz dela soava séria e combinava perfeitamente com a intimidação que estava fazendo.

  Várias pessoas correram para longe, fugindo da visão do aster e as poucas que restaram abriram caminho para que ele chegasse na tenda onde a confusão começou.

  — Ainda bem que você chegou! – o homem que espancava o garoto se aproximou do aster e ainda com sangue nas mãos, implorou que fosse ouvido – Aquele ladrãozinho andou me roubando nas últimas semanas, mas dessa vez eu o peguei!

  Ignorando o vermelho ferrugem que escorria entre os dedos do homem, o aster passou por ele sem olhá-lo e se dirigiu ao garoto que, entre longas e pesadas respiradas, tossia uma certa quantidade de sangue.

  — Garoto, você ainda consegue me ouvir? – enquanto depositava o revólver de volta no coldre, ele se abaixou para alcançar o garoto e limpou um pouco do sangue nos seus olhos e nariz com a mão nua – Se sim, você acha que consegue me dizer o que aconteceu?

  — Senhor! – o homem o interrompeu e dessa vez manteve suas mãos escondidas atrás do corpo – Como eu ia dizendo, ele roubou algumas de minhas mercadorias alguns dias atrás e...

  — Você tem certeza que foi ele? – o aster nem se deu ao trabalho de virar o rosto.

  — Sim!

  — Você prestou queixa? – o aster parecia se irritar com alguma coisa.

  — Não! – a voz do homem ao responder acabou saindo um pouco nervosa e trêmula.

  — Por quê? – por mais que fosse apenas uma breve pergunta, a fala do aster fez o homem se tremer.

  — Eu... eu não sei...

  — Para mim, isso significa apenas uma coisa! – o aster levantou, mas se manteve de costas para o homem – Você não deu queixa porque não sabia quem o roubava, e agora está descontando nesse garoto, certo?

  O homem se manteve calado, e enquanto apertava suas mãos atrás das costas, ficou olhando para o chão, irritado e envergonhado.

  — Eu te fiz uma pergunta! – o aster se virou, irritado com o silêncio do homem, e sem aviso prévio puxou o revólver do coldre em sua cintura com a mão direita, e apontou para o rosto dele – RESPONDA!

  — Sim... – o dono da barraca sussurrou a resposta.

  — EU NÃO OUVI DIREITO! – o click que o gatilho fez ao ser levemente pressionado assustou mais ainda o homem que simplesmente gritou, com desespero em sua voz.

  — SIM... FOI ISSO MESMO...

  — Me diga... me diga o por quê? – com um leve movimento para frente, ele encostou a boca da arma na testa do homem, que se arrepiou ao sentir o aço gelado em sua pele.

  — Eu não sei... eu só estava irritado e precisava descontar em alguém, aí eu acabei perdendo o controle quando aquele garoto tentou me roubar mais cedo, me perdoe! – em meio às palavras assustadas, lágrimas começaram a surgir nos olhos do homem que tentava se manter firme – Agora, por favor, tira isso de mim!

  — Tudo bem!

  Quando o cano frio da arma saiu de sua testa, o homem se sentiu aliviado, mas não por muito tempo, porque, com a mão esquerda, o aster o pegou pelo pescoço, enforcando o homem contra uma das vigas da barraca.

  — E se eu descontar a minha raiva em você? Vai ser bom para você ou só para mim? – a voz do aster agora estava  ameaçadora, e suas palavras possuíam uma entonação assassina – Nem precisa me responder, eu tenho certeza de que eu iria me sentir muito bem fazendo isso!

  — Por favor... não... – o homem ficava cada mais sem ar e com dificuldade de falar, à medida que a sua garganta era apertada com mais força.

  — Me diga, seu pedaço ambulante de lixo, o garoto te implorou também?

  — Por... favor... eu...

  — É bom você começar a rezar para o deus que te abençoou ao nascer! – o aster o largou abruptamente deixando que caísse sentado no chão, e deu sinal para que os guardas o tirassem dali, junto do garoto desmaiado – Porque se esse garoto morrer, eu garanto que você vai pedir perdão para ele pessoalmente!

  O aster retirou um lenço prata do bolso, e após limpar sua mão, o jogou fora como se quisesse esquecer uma lembrança ruim.

  — Agora, vamos ao assunto mais importante!

  Virando-se para a barraca aonde Nick e Diaz estavam, o aster retirou um papel de um dos bolsos internos do uniforme e começou a falar com ambos.

  — Primeiro, qual de vocês dois seria o cidadão sem sobrenome Diaz? – Foi Nick quem fez um sinal de mão apontando para Diaz.

  — Muito prazer, meu nome é Vênus e creio que já tenha ouvido falar de mim.

  — Nas aulas de astronomia os professores sempre falam sobre esse planeta. – Diaz parecia indiferente com a situação e continuou com serviço enquanto falava – Mas, também existem muitas histórias sobre Vênus, o aster que observa tudo.

  — Muitas dessas histórias não passam de exageros emotivos. – Vênus estendeu a sua mão como se quisesse cumprimentar Diaz.

  — De qualquer forma, obrigado por cuidar dessa bagunça. – ainda um pouco receoso, ele limpou sua mão em uma pano cinza que estava no canto da bancada e saiu da tenda para alcançar a mão do aster.

  Antes que Diaz pudesse segurar a mão de Vênus, dois guardas surgiram por entre as pessoas que ainda estavam no local e amarraram as mãos dele com um material parecido com uma fita flexível, mas bastante resistente.

  — O que tá acontecendo? – mesmo que quisesse resistir, ele preferiu não criar uma comoção maior.

  Enquanto os dois guardas seguravam os braços de Diaz, Vênus começou a ler o conteúdo do papel em suas mãos.

  — Bem, vejamos... Hoje, no cais de Sunny, no momento em que o sol chegou ao topo do céu, eu, aster Vênus, declaro o cidadão sem sobrenome Diaz, acusado de infringir uma das seis grandes leis: número cinco, posse de uma benção proibida. E aqui eu também declaro a prisão do mesmo.

(Em Típhia, por motivos desconhecidos, todos que nascem ou crescem em um orfanato, são chamados de sem sobrenome.)

  — Espera, isso deve ser um engano, eu nunca faria algo assim, diga para eles Nick... – a voz dele falhou quando olhou para trás e viu que Nick nem olhava para ele – Nick?

  — O seu amigo também está envolvido nisso? – um dos guardas perguntou enquanto puxava Diaz para longe da multidão.

  “ A tenda!”, um pensamento passou pela cabeça de Diaz, “ Mesmo eu sendo inocente, se ele também for envolvido, a gente vai perder a tenda, e como consequência, a nossa única fonte de renda! “

  — Não! – Diaz respondeu com um olhar cansado, e deixou que os guardas o levassem embora.

  Por mais que a prisão dele não tivesse sido escandalosa, as pessoas ao redor logo começaram a sussurrar coisas que Diaz entendia muito bem, mesmo sem ouvi-las. Ele tinha a certeza que Nikolas agora estava com uma sujeira para limpar antes que os ratos e baratas atacassem.

   Ele andou até a entrada do porto, o que era mais ou menos a um quilômetro de sua barraca, sendo puxado pelos guardas toda hora, e ao chegar lá, uma carruagem branca puxada por dois álos* negros estava parada a alguns  metros de distância do grande portão dourado que dava passagem para o porto Sunny e antes de entrar nela, Diaz resolveu perguntar uma coisa para o aster.

(Álos = cavalos)

  — Como você tem certeza de que eu consegui uma benção proibida?

  — Essa cicatriz coberta por faixas em sua mão é a prova! – Vênus apontou para a mão esquerda de Diaz.

  — Essa? Isso foi apenas um acidente com uma faca alguns dias atrás!

  — Então você não vai se importar se eu tirar as faixas? – Vênus sequer esperou por uma resposta e começou a desenrolar as faixas na mão esquerda do jovem.

  — Pode tirá-las mas você não vai encontrar nada de mais... – a voz dele falhou novamente quando viu que no local aonde era apenas uma cicatriz nojenta, agora uma tatuagem negra preenchia o dorso e a palma da mão, com círculos irregulares que pareciam estar em cima um do outro e uma espécie de lâmina que atravessa a palma de sua mão e saía nas costas da mesma.

  — É verdade que antes havia-se dúvidas, mas agora eu tenho total certeza de que você Diaz, obteve uma habilidade estritamente proibida: a Bênção de Thanatos!

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